Uma escolha estrutural mais ou menos dramática para um ensaio de
pesquisa-ação pelo envolvimento tocante e enternecedor da artista-educadora com
o PIÁ
CEU Sapopemba
AE: Maryah dos Santos
Figueiredo
Prólogo - prolongado
Desde que me mudei para São
Paulo, em fevereiro de 2013, soube de imediato do Programa de Iniciação
Artística (PIÁ) por procurar projetos artísticos e educativos na cidade e a
referência do PIÁ ser sempre muito presente e vibrante; amigos e colegas ex-AEs
ou AEs que falavam do Programa de maneira muito carinhosa, afetuosa. Duas das
amigas do grupo de dança que integro, o [-MOS], Karime Nivoloni, que foi
artista-educadora do PIÁ até 2012 e Valeska artista-educadora da EMIA,
aproximavam-me de alguma forma do PIÁ. Como ensaiamos com nosso grupo duas
vezes por semana desde o ano passado na EMIA, observava as crianças brincando
no parque (entre folhagens bem verdes e suculentas, formigas grandes, ar que se
conecta com a terra), os timbres dos instrumentos que se repetiam, lenços
dançantes através dos vidros das janelas, ateliês de pintura... E os papos de
criação e improvisação permeados pelas crianças. As crianças! Sentia muita
falta de estar mais em contato com elas. E o edital do PIÁ abriria só em
dezembro. Minha ansiedade em achar grupos de trabalhos artísticos, escolas,
possibilidades de emprego para me manter na cidade fez dos meus dias cinzentos
e neuróticos, como o centro da cidade, local que resido até hoje.
A minha maior alegria
do início do ano (2014) foi ver meu nome na lista da primeira fase do Edital de
Chamamento para Credenciamento de Artistas nos Programas de Divisão Artística e
Cultural como artista-educadora do PIÁ. E estava novamente na segunda-fase,
fiquei em 19ª colocação. E chamaram até a 19ª da lista, e... Quase. Dois artistas-educadores
recorreram e fui para 21ª colocação. À espera de desistências, pedia às forças
terrenas e siderais para que os possíveis contratados encontrassem incríveis
outros trabalhos, porque eu queria muito o PIÁ, estava até então em paixão
platônica quase desesperada.
PIÁ - ATO I – apresentação,
recepção, primeiros contatos
Entrei para o Programa de
Iniciação Artística (PIÁ) no CEU Sapopemba, em junho para substituir a AE[1] Martina. A coordenadora
artista-educadora Ana Paula entrou em contato comigo e me reuni com a equipe
(Ana Paula, Marília e Fabio) neste CEU uma semana antes de iniciar os encontros
com as crianças. Na minha agenda anotei a partir da conversa que tivemos: “Terça-feira
– turma de CCA (a mais complicada)*, de 5 a 10 anos, das 9h às 12h (8h30 às
11h), dupla: Fabio; Quarta-feira manhã - 8 a 10 anos das 9h às 12h, dupla Ana
Paula; Quarta-feira à tarde – 8 a 10 anos (turma agitada) das 13h às 16h,
dupla: Fabio; Quinta-feira – (menor turma) 8 a 10 anos, das 9h às 12h , dupla:
Marília; Sexta-feira – Reunião de equipe das 9h às 13h.”
* A questão CCA[2]:
A falta de inscrição de crianças, especificamente na terça-feira, fez com que
Moisés (NAC) sugerisse uma ida ao CCA Guadalupe, para conhecer as crianças. Caso
os AEs achassem que coubesse ao Programa, proporiam uma parceria com o CCA. Nos
primeiros encontros os AEs Fabio e Martina iam até o CCA e lá desenvolviam as
atividades. Depois de conhecer as crianças, os AEs dialogaram e chegaram a um
acordo com a Marta (assistente social do CCA) que eles poderiam levar para o
CEU Sapopemba no máximo 19 crianças (que teriam as fichas de inscrição com
autorização dos pais e, Marta assumir-se-ia como responsável pelas crianças).
Quem levaria? Os AEs e mais duas responsáveis do CCA. Um trajeto de 10 minutos
que inclui a travessia da Av. Sapopemba. Quem escolheu as 19 crianças, entre
mais de 30, que iriam para o PIÁ? As assistentes sociais do CCA. Como estavam
acontecendo as idas para o CEU? Só uma assistente social do CCA estava
acompanhando os AEs para levar as crianças e não duas responsáveis, como havia
sido acordado. Os AEs estavam dispostos a abarcar o CCA no PIÁ, mesmo em tais
condições. Para mim foi muito difícil quando soube o que vinha a assumir, falei
no mesmo dia que não teria aceitado esse tipo de acordo, principalmente pela
travessia, que no meu ver, é muito perigosa e não cabia essa responsabilidade
no que eu acreditava ser minha função no PIÁ. Sinceramente, era como se eu não
tivesse escolha, embora a equipe jamais tenha me imposto algo do tipo: “você
vai ter que assumir isso, não há outro jeito”. Esse caso foi colocado para mim
como algo para se refletir. A Ana perguntou o que eu achava... Mas começando o
Programa de Iniciação Artística, só era meu primeiro dia, decidi encarar e
começar a minha relação com o CCA estendendo a relação PIÁ-CCA que já havia
iniciado. Deixei claro para a equipe que tal condição não era confortável para
mim e esta se mostrou aberta a conversas e trocas, que eu me sentisse no processo
o qual poderia ser revisto e adaptado.
A primeira semana de PIÁ se
resumiu na terça-feira e quarta-feira (03 e 04 de junho) porque quinta-feira os
metrôs entraram em greve o que se estendeu para sexta-feira, e a cidade entrou
em caos geral, pessoas “superlotando” os ônibus demorando de 4 a 5 horas pra
chegar aos seus trabalhos, isso quando conseguiam. Conversamos entre equipe e
achamos melhor avisar aos pais que o encontro de quinta-feira seria cancelado.
Terça-feira quando cheguei
no CCA, as crianças me receberam imediatamente e carinhosamente com abraços. A
manhã foi intensa, qualidade furacão, explosivo, perigoso. No caminho até o
CEU, a tensão de olhos por todos os poros atentos para as crianças que seguiam
conosco agitadas, falantes, sedentas. No CEU brincamos com algumas propostas
corporais que variavam os níveis no espaço (alto-médio-baixo), entre outras
tentativas as quais duravam no máximo 2 minutos (essa foi minha sensação)... E
o caos tomava conta (brigas entre eles, lutinhas, xingamentos, gritos,
corre-corre para todos os lados). Fotografamos autorretratos em P&B das
crianças, os imprimimos e depois elas pintaram essas fotografias com tinta
acrílica, revelando cores e intensidades dos seus rostos, brincando com
figura-fundo, traços, colagens, “facetagens”. Elas tinham sede pelas tintas,
lambuzavam-se, espalhavam o material, faziam rasgos, rabiscavam por cima umas
das outras. Era agressivo, destrutivo, reconstrutivo. Contato vivo e feroz com
aquele material a ser revelado, universo borrante e berrante. Muitas delas
pedindo, chamando ao mesmo tempo, um tumulto: “o meu está bom?”, “e o meu?”,
“eu pedi primeiro”, “eu sou feia.”, “estragaram o meu!”, choros, vontades,
prazer no acontecimento, na ação, naquilo que surgia como que urgente, o que era
necessário ser feito. E eu quase não conseguia nem olhar para o Fabio e estava
ali com as crianças, ouvindo, ajudando, tentando entender, buscando, pedindo,
chamando... e no final, Raíssa olhando bem séria para mim perguntou: “e aí
professora, gostou da nossa turma?”, a sala toda virada em cores, do avesso.
Respondi: “é, não foi muito fácil hoje. mas acho que gosto de vocês.”.
No dia seguinte,
quarta-feira, depois do turbilhão do dia anterior, não sentia dificuldade em
estar com aquelas crianças que acabava de conhecer, me senti acolhida pela
equipe e por ambas as turmas.
De manhã depois de nos
apresentarmos, com contações de histórias e instrumentos para se criar com as
narrativas, Gabrielle (11 anos) ao fim do encontro me passou a letra e a música
de funk que seu irmão Gustavo compôs (da turma de quarta-feira à tarde do PIÁ
que logo iria conhecer):
“E eu Gustavo, ‘gora’ não gosto mais
Moro no Sapopemba
com minha mãe e com meu pai
E eu Gustavo, ‘gora’ não gosto mais
Moro no Sapopemba
quebrada zica demais
A vida é dura
só pra quem é mole
mas quem não tem medo, é
não se encolhe
Acreditar
e nunca desistir
Grite forte, cante alto
para todo mundo ouvir”
MC_GTO (Gustavo, 10 anos)
Anotei a letra no meu
caderninho e ela me passou a coreografia que havia criado com a ex-AE Martina
para que eu aprendesse, além de sugerir instrumentos musicais para variar o
estilo do funk. Foi surpreendente.
À tarde embarcamos no faz-de-conta com brincadeiras de teatro, mímica e
improvisação (inspirações do Théâtre
du Soleil de Mnouchkine e a
lembrança comum a nós AEs de Jean-Jacques Lemêtre o qual conhecemos em cursos,
em lugares e momentos diferentes: eu em Curitiba e Fabio em São Paulo). Abrimos
cortinas pesadas, tocamos instrumentos invisíveis, pegamos voos turbulentos,
visitamos festas e casamentos, muita dança, trânsito, diferentes cenários e
figurinos.
PIÁ – Seis meses de
atos, depoimentos, manifestos, exposições, danças, cenas, clímax vários, sem
desenlace, sem desfecho. Abrem-se cortinas, paredes, olhares, pensamentos,
falas, possibilidades...
(Turma de quarta-feira de
manhã)
O cenário se compõe através
de figuras geométricas: triângulos, retângulos, círculos, semicírculos e
pintinhas em várias cores: azul, laranja, rosa, verde, roxo, amarelo...
Combinamos essas figuras que vão sendo criadas, deslocadas, sobrepostas.
Chama-se a isto Trocoscópio[4] e entendemos seu sentido pela história
que vai sendo contada, recontada, modificada e pelo “trocoscoPIÁ” - o ato de
recortarmos em e.v.a. nossas próprias figuras e com elas construirmos histórias
paralelas, que se entrecruzam e estão abertas a subtrairmos, adicionarmos,
desconstruirmos e construirmos peças, revelando diversos caminhos e sentidos.
Na floresta as lambisgoias
despertam, depois ouvimos as tribos tocando chocalho, afoxé, apitos, máquina de
trovão. Contamos histórias da mata, do sol, da lua, do rio com os sons. Às
vezes mexendo e remexendo o esqueleto partimos para a escuridão da noite, e os
contos de terror erguem-se das catacumbas.
Em algumas manhãs bolinhas
invisíveis visitam e passeiam por nossos corpinhos. Às vezes estão leves e nos
fazem levitar, outras vezes pesam muito e temos que fazer muito esforço para
nos sustentar ou então aproveitamos a gravidade para quedas divertidas e
derramamentos pelo chão.
Criamos trajetórias pelo CEU
com fita crepe, pedaços de madeira, pedras, tijolos. Passar por elas não é tão
fácil para pessoas comuns, mas para aventureiros corajosos, saltadores a
distância, voadores, corredores, rastejadores, é “supimpa”.
Deixamos impressões por onde
passamos. Carimbamos, no chão, partes do corpo: ora mão, ora cotovelo, ora topo
da cabeça, orelha, coluna, ombros... E dançamos como sapos, cobras, cachorros,
macacos, onças bravas, aranhas... Multiplicamos nossos apoios, ou nos
equilibramos em um, aceleramos e desaceleramos. Transformamo-nos em bonecos de
pano, de lata, de barro. Pulamos fogueiras, aumentamos o fogo.
Surge um livro de caixinhas.
Construímos cabeças de caixinhas, abrimos para ver se tem algo dentro delas:
imaginação. Criamos outras partes do corpo, encaixamos e desencaixamos: o pé
ocupa o lugar da orelha, o nariz da boca, as mãos das pernas e por aí vai!
Não podemos esquecer-nos dos
diferentes tipos de tesouros que foram enterrados, escondidos pelo CEU. A
constante saga de esconder e achar; se perder, se encontrar; cuidar do que é
precioso; confiar; cavar buracos juntos; fazer o rito da terra, água, ar e
fogo; colher flores em agradecimento; acreditar que o segredo está guardado.
Grupo III – Queremos fazer
teatro e... Protesto!
(turma de quarta-feira à
tarde)
“Nós queremos apresentar uma
peça!”
“Nós queremos fazer teatro!”
Vontade coletiva de
montagem, criação de cenas, improvisação. Descobrimos o teatro através da
música, da dança, da criação visual, estética, da literatura, e do próprio
teatro. Uma frase no jogo como estímulo-resposta desencadeia diferentes
maneiras de se ouvir e falar, ao repeti-la. Instrumentos percussivos modificam
o ritmo das narrativas. As narrativas são corporais. E os corpos são
brincantes, poéticos, revolucionários!
Um momento para um
manifesto: escolha do grupo em vestir a máscara que cada um fez para seu
personagem e sair pelo CEU gritando “PROTESTO! PROTESTO!”. As máscaras são
feitas de sacos de pão (doados pela padaria próxima ao CEU e à Avenida
Sapopemba) e transformadas, desenhadas, coladas, pintadas, cada qual inspirada
nos personagens experenciados por cada um.
Depois das improvisações
conversamos sobre o que emergiu, o que sentimos, o que achamos que pode
melhorar. Um por vez se coloca para falar na roda. Aprendemos a ouvir, esperar,
controlar ansiedade, respeitar. Como construímos um diálogo? Como ampliamos a
escuta do grupo?
Mergulhamos fundo e nos
damos conta que podemos nos tornar um cardume, um corpo só que realiza algumas
ações no espaço. Ampliamos nossa consciência de grupo, de tempo, de seguir o
fluxo, permanecer no fluxo, ser fluxo.
Desdobramentos teatrais
(quem são os personagens, quando acontece, onde acontece, como acontece):
teatro de bonecos em caixa de teatro feita de papelão; personagens com máscaras
e o foco está nos corpos os quais se apresentam sem a expressão facial e sem
fala; múltiplos ambientes e cenários para que os personagens se abram para
diferentes sensações: estar numa festa, no meio de uma onda, no deserto,
debaixo da terra, na via láctea, dentro da barriga da mãe, entre outros lugares;
desfile dos personagens estimulado por uma ficha descritiva (escrita e
desenhada) sobre as características de cada um: nome, que comida mais gosta, do
que tem medo, onde nasceu, manias, poderes e outros; inspirações em soundpainting[5] ; construção de roteiros, brincando com diálogos que começam sua
frase e seguem em ordem alfabética - memorizá-los e / ou improvisá-los em um
grupo enquanto o outro assiste e depois trocar; teatro do “congela”, e quem
assiste aponta magicamente para o grupo que entra em ação de acordo com a
vontade do participante/plateia; teatro do caos; teatro do absurdo; teatro do
grito; teatro que é troca, experiência propositiva e acolhedora.
Referências que emocionaram
e estimularam o Grupo III: Grupo Galpão, Teatro de Sombras Attraction, e
Peeping Tom!
.
Grupo IV – Arte
“compentorânea”[6],
muita poesia!
(turma de quinta-feira de
manhã)
Um grupo pequeno. Eram
cinco: Ana Júlia, Ellen, Amanda, Mike, Thainá, sendo estes três últimos irmãos.
Depois eram três: Ana Júlia, Ellen e seu primo João. Entraram as irmãs
Francielle e Kamily, voltava a ser cinco; saem Ellen e João, entra Isabellie. E
por fim são quatro: Ana Júlia, Francielle, Kamily e Isabellie.
Diferente das outras turmas
que são maiores, com este grupo há mais silêncio, desdobramento de uma mesma
coisa, tema, poema. Há um tempo que se esgaça e se engraça. Somos parceiros,
estamos muito próximos e somos todos muito propositivos, criativos, inquietos.
Dançamos de olhos abertos e
fechados. Compartilhamos sensações. Dançamos a dois: um da dupla com um leque
simula sopros, ventos, ventanias, vendavais e o outro recebe às escuras em
diferentes partes do corpo do ar que se move ao redor e faz mover os corpos.
Improvisações com tambor acelerando o ritmo sanguíneo. Queremos saber o que tem
dentro do corpo. Tocamo-nos, dos pés à cabeça, localizando ossos, órgãos,
cartilagens, nervos, músculos, gordura, pele. Surpresas, cosquinhas,
estranhamentos, revelações. Procuramos livros de anatomia na biblioteca,
queremos mais imagens de como é/pode ser por dentro. Construímos imagens também
através do toque e troca de fluxos. De olhos fechados desenhamos sem tirar o
lápis do papel, com pausas que se estabelecem no grupo. Cada pausa, um ponto de
lápis no papel... Abrimos os olhos e observamos os traços, os pontos, como
ocupamos o papel, o espaço, como extrapolamos o limite da folha, como ficamos
centralizados e possíveis ligações que podemos fazer. Ligamos os pontos e
surgem figuras. Abstrações que se concretizam em formas conhecidas. Formas que
se acham tão conhecidas, mas que muito se tem ainda para descobrir.
O outro lado[7]: nome do livro que a AE Marília compartilha conosco. Brincamos a
partir dele com a relação perto – longe, onde nosso olhar se aproxima e se
afasta. Usamos lupa, binóculos, venda, espelho. Olhamos plantinhas de perto,
observamos os desenhos em suas folhas. Avançamos até o ponto mais alto do CEU,
subindo o barranco, para perceber o que há de mais longe, horizontal, vertical,
transversal. Olhamo-nos, nos reconhecemos no outro. Escolhemos alguém para uma
caminhada dançante e temos que nos aproximar ao máximo do escolhido e depois
distanciar ao máximo espacialmente. “Tarefas” em grupo que não são feitas para
se estabilizarem e sim, para uma constante busca. O grupo se modifica, transforma-se.
Não pára de se mover, de propor tentativas para manter a regra, mesmo sabendo
esta ser impossível se for levada ao pé da letra.
E por falar em letra...
PIAnenses como nos identificamos nesse grupo, as crianças compuseram um trecho
de uma letra para cantar (uma paródia de Asa Branca para o PIÁ): “Você sabe o
que é o PIÁ? Vou lhe dar uma explicação: é tudo aquilo que vem do povo e nasce
livre do coração.”
Manoel de Barros, Arnaldo
Antunes “As Coisas”, Mário Quintana, Drummond... Lemos, relemos, sorteamos
frases, palavras, construímos, adicionando-sobrepondo-combinando versos, nossas
próprias poesias PIÁ-dadá:
A gente devia acreditar
Só deveria haver escolas para meninos-poetas
Soltos no ar
---
Mulheres perdem o equilíbrio
E o vento é perigoso
A espiritualidade é verdade
---
O que é poesia?
As crianças respondem:
“verbos, palavras que rimam, mais ou menos românticas.”
O que é romântico?
As crianças respondem:
“meigo, feminino...”
O que seria masculino?
...
O que se precisa para se
fazer poesia?
As crianças respondem:
“palavras que são iguais no início e no fim; não precisa ter rima, mas tem que
ter sentido; não precisa ser romântica, pode ser comédia ou de terror; versos,
estrofes, aspas... Imaginação, letras.”.
E letras formam o que?
As crianças respondem:
“um desenho”
“uma palavra”
Poesia pode ser imagem e/ou
palavra. Escolhemos palavras distraídas, agitadas, longas, gordas, dorminhocas
para compor frases / desenhos. Criamos coletivamente. As palavras são escritas
em papéis picados. Guardamos as palavras na caixinha do PIÁ, lá elas se
namoram, estranham-se, embaralham-se, afastam-se e se reencontram... Com tantas
inspirações criamos diferentes livros e monotipias! Ao som de jazz, baião, João
Bosco ou Arnaldo Antunes, cantamos enquanto recortamos, desenhamos, pintamos...
Uma pausa para uma dança. Voltamos e continuamos a buscar outras palavras,
descolá-las das páginas dos livros e com elas viajar e nos encontramos
inusitadamente pequenos poetas!
A sombra de um Disco Voador
A casa está morta
Dou um pulo
Não: a casa é um fantasma
Eu subo em árvores
Mas com uma chaminé em cima
A casa está sonhando
Ela pára no ar
---
Grupo I – “...vem me dê a
mão / a gente agora já não tinha medo”[8]
(turma de terça-feira de
manhã – CCA Guadalupe)
Do fim ao princípio. Cenas
selvagens, catastróficas, quase apoteóticas. O caos é a lama e a lama, o caos.
A organização só para desorganizar. Os órgãos estão expostos e gritam.
Corremos, fugimos, nos escondemos, usamos cordas e pulamos cada vez mais alto e
caímos e somos bons na queda. Enfrentamos a inércia, nos protegemos, tentamos
diálogos mesmo sabendo haver tantas línguas e talvez nenhuma servir. Um abraço
de urso bem forte. Onde podemos ser intensos sem machucar? Como estar perto sem
ferir o outro? Como amar na ausência? O intervalo de um tempo verbal pretérito
imperfeito evocando o agora.
Por ser agora, por ser
urgente. Palavras, palavrões do tamanho do desejo de serem ouvidas,
compreendidas, acolhidas. Muitas pessoas nas ruas olham com repressão. As
crianças não se intimidam. Cantam funk pornográfico em grupo, gritam,
arrancam flyers de postes, catam
coisas no chão, acumulam essas coisas e competem para ver quem possui mais tralha.
Olham as vitrines com tênis, roupas, joias. Dizem possuir esses produtos ou que
futuramente vão ganhar no Natal. Brigam, machucam-se, fazem-se chantagens
violentas. A regra é para ser quebrada. O que já está dado é para ser disputado
e/ou destruído.
Como nos conquistamos? Como
nos confiamos? Como perceber que não há autoritarismo no PIÁ? Como acreditar
que não vamos desprezá-los, inferioriza-los, humilhá-los?
(pausa)
As terças-feiras eram
esperadas com uma energia “samurai”, atenção voraz. Nossas propostas dificilmente
eram aceitas e o que as crianças propunham entre elas também não era
respeitado. Espera e escuta. Uma canção com três crianças, uma improvisação de
movimentos com quatro, ou duas... Parecia difícil avançar.
A Boneca Dinorá (nome dado
pelo grupo, para uma performance que
fiz juntamente com o AE Fabio o qual me apresentava e eu era uma boneca
marionete) foi uma passagem que marcou profundamente a todos, acredito. No
teatro do CEU eu, já vivendo a boneca marionete com figurino e maquiagem
cobrindo todo o meu corpo, me escondi e comecei a pedir socorro porque estava
presa, de brincadeira, em um nicho da coxia. As crianças exaltadas corriam,
gritavam. Não sabiam o que fazer com aquela situação. Comecei a caminhar com
passos largos de boneca e elas se agitaram ainda mais. Pareciam não saber agir
diante daquela estranha boneca. Uns se assustavam, não me reconheciam, outros
ficavam me puxando para brincar de pega-pega e outros queriam lutar comigo. Corporalmente
de várias maneiras tentei propor danças, mímica, diálogo. Tentei suavizar,
demonstrar meu carinho, e o Fabio me ajudou musicalmente para um momento de
brincar no palco. Mas tudo foi ficando cada vez mais violento... Arrancaram-me
parte da luva, arrancaram pedaço do sapato, me empurraram, me chutaram, me
machucaram. Pedia na “voz da boneca” para que parassem e eles não paravam. Deixei-me
chegar ao limite, ao meu esgotamento. Sentei e chorei verdadeiramente. Pouco a
pouco algumas crianças começaram a se aproximar, querer me ajudar, falar para
eu não ficar triste, me dar carinho, me entregar pedrinhas como presente, até
por fim, juntamente com o Fabio, algumas tocaram instrumentos musicais para
incentivar que a boneca voltasse a dançar. Aos poucos, me senti fortalecida com
o apoio delas e dançamos juntos. Já estava na hora de finalizar o encontro do
dia. Eu estava muito mexida com tudo o que aconteceu. Nunca tinha vivido
situação semelhante. Era hora de parar, repensar os encontros, repensar minhas
expectativas e limites. Perceber as diferenças como potência de mover, de
transgredir.
Passado esse episódio,
conversamos em equipe e decidimos dividir as crianças em dois grupos (9 crianças
em cada grupo): Grupo 1 com crianças de 5 a 7 anos e o Grupo 2 com crianças de
8 a 10 anos. Cada semana passamos a levar um grupo para o CEU, encontrando,
assim, cada grupo quinzenalmente. Desde então, pela nossa “lei”, a gente era
obrigado a ser feliz.
Brincamos de cowboy, rei,
princesa, juiz e tantos outros. Criamos, por meio de jogos, maneiras de
modificar o espaço e as relações de acordo com as pessoas que passavam pelo
CEU, com proposições que disparavam ações coletivas. Apresentamos
espontaneamente uma peça de teatro improvisada para crianças de três a quatro
anos, através do desfile de personagens fantásticos. Exploramos o CEU, as
fronteiras, as distâncias. Encontramos o barranco e foram muitos rolamentos das
alturas, escorregadelas, escorregões... Um ajudando o outro para subir e
descer. Coletamos flores, folhas secas, galhos e sementes para compor quadros
vivos, hortas, esculturas! Um brinquedo sonoro! Encontramos um tesouro de
argila para criar as nossas preciosidades. E chegamos muito perto e ficamos
muito juntinhos para ouvir histórias dos monstros, um livro.
Depois de muito perguntarem
sobre a Boneca Dinorá, “como ela está?” “ela vai voltar?”, “a boneca era você,
tia?” combinei com o Fabio e fizemos um encontro no CCA com todas as crianças
onde Dinorá apareceu e explicou que precisou ir à costureira e ao médico para
se recuperar de toda aquela confusão, mas que estava de volta para contar umas
histórias engraçadas de uma menina que ela conheceu - Josete[9], para cantar e dançar.
Todos ouviram as histórias com os olhinhos vivos, curiosos, que se divertiam.
Dançamos juntos uma dança maluca. Cantamos juntos, Fabio no pandeiro, o Funk do
PIÁ - letra das crianças do CCA em parceria com o Gustavo da turma de
quarta-feira:
'É o funk! É o funk!
É o funk do PIÁ
Quando toca esse funk
todo mundo quer dançar
A vida é dura só pra quem é
mole
Mas quem não tem medo é,
não se encolhe
Acreditar e nunca desistir
Grite forte, cante alto
para todo mundo ouvir!...”
Dionorá se despediu: viajou
para Romênia. Enviou uma carta contando suas aventuras por lá. Teve sonhos com
eles... Eu tenho sonhos (muitos!) com essas crianças, diariamente. Tomando
banho, de repente, desatino a chorar. Sei que os amo profundamente. Incrível a
confiança, o carinho que conquistamos entre nós! Como nos transformamos! Por
ser intenso, avassalador, a gente
agora já não tinha medo.
Falso Epílogo – termina, mas
não acaba. Rastros poéticos...
É estranho interromper um
processo que começa a se aprofundar, se afinar nas relações entre equipe,
turmas, crianças, funcionários, pais, parceiros, o próprio espaço do CEU.
Sinto-me num trânsito, nem ir, nem vir, mas entre (entre-territórios, entre
culturas, entre valores, entre verbos). Entre o Centro e Sapopemba, entre o CEU
e o CCA, entre as salas barulhentas onde escutamos os sons que reverberam do
ginásio e o espaço ao ar livre, mas que não é tão livre, entre a gestão e os
pais, entre a alegria que se descobre no presente e o rompimento do Programa, à
espera do amanhã, das “águas de março”, sob incertezas.
Penso que experiências
abertas com as crianças são importantes para a nossa humanização. No PIÁ as
crianças se deparam com a experiência do corpo num tempo-espaço que se alarga -
a descoberta do sensível - através de trocas e provocações na convivência.
Ampliamos a percepção nos processos criativos. Sinto-me assim como
artista-educadora. Nos grupos que integro: [-MOS] (dança), COMO clube (performance) e Teatro de Transeuntes
procuro me posicionar de maneira aberta para o mundo, onde sou capaz de expandir,
de pensar outras possíveis realidades e histórias na relação indivíduo –
coletivo. Desse modo somos impulsionados a nos relacionarmos com o mundo como
seres de intervenção, de transgressão. O exercício do diálogo, entre as
pessoas, ideias e linguagens artísticas, proporciona o aprendizado da escuta,
através do qual reconheço o outro como sujeito - não o discrimino - estou
aberta e disponível a aprender com ele.
A arte coincide com a vida
desde que a vida seja uma vida intensa, que se desdobra, mais que isso, atua
com as coisas que nos atravessam.
[1] AE
= Artista-educador
[2] Centro
para Criança e Adolescente Nossa Senhora de Guadalupe
[3] O
Grupo I (turma de terça-feira se encontra depois do Grupo IV, por uma escolha
da sequência dos acontecimentos e percepções que desejo falar).
[4] Livro
da Editora Tangerina, autor Bernardo P. Carvalho.
[5] Soundpainting é uma língua de sinais para direção de composição ao vivo. Foi criado em
1974 pelo compositor Walter Thompson (New York) para músicos, bailarinos,
atores, poetas, artistas visuais.
[6] Ana
Júlia tentando lembrar o nome do museu que visitamos (na Ação Cultural do PIÁ)
falou: “Museu de Arte Compentorânea” e o grupo todo consentiu.
[7] Texto
e ilustração do húngaro Istvan Banyai, editora Cosac Naify.
[8] Trecho
da letra João e Maria de Chico Buarque.
[9] Apresentei
a contação de história do livro Contos de Ionesco para Crianças, de Eugène
Ionesco.
Que ensaio lindo! Transformador, inteligente, atravessado de afeto e urgência. Muito especial! Parabéns!
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