segunda-feira, 17 de novembro de 2014

Uma escolha estrutural mais ou menos dramática para um ensaio de pesquisa-ação pelo envolvimento tocante e enternecedor da artista-educadora com o PIÁ

Uma escolha estrutural mais ou menos dramática para um ensaio de pesquisa-ação pelo envolvimento tocante e enternecedor da artista-educadora com o PIÁ

CEU Sapopemba
AE: Maryah dos Santos Figueiredo

Prólogo - prolongado
Desde que me mudei para São Paulo, em fevereiro de 2013, soube de imediato do Programa de Iniciação Artística (PIÁ) por procurar projetos artísticos e educativos na cidade e a referência do PIÁ ser sempre muito presente e vibrante; amigos e colegas ex-AEs ou AEs que falavam do Programa de maneira muito carinhosa, afetuosa. Duas das amigas do grupo de dança que integro, o [-MOS], Karime Nivoloni, que foi artista-educadora do PIÁ até 2012 e Valeska artista-educadora da EMIA, aproximavam-me de alguma forma do PIÁ. Como ensaiamos com nosso grupo duas vezes por semana desde o ano passado na EMIA, observava as crianças brincando no parque (entre folhagens bem verdes e suculentas, formigas grandes, ar que se conecta com a terra), os timbres dos instrumentos que se repetiam, lenços dançantes através dos vidros das janelas, ateliês de pintura... E os papos de criação e improvisação permeados pelas crianças. As crianças! Sentia muita falta de estar mais em contato com elas. E o edital do PIÁ abriria só em dezembro. Minha ansiedade em achar grupos de trabalhos artísticos, escolas, possibilidades de emprego para me manter na cidade fez dos meus dias cinzentos e neuróticos, como o centro da cidade, local que resido até hoje.

A minha maior alegria do início do ano (2014) foi ver meu nome na lista da primeira fase do Edital de Chamamento para Credenciamento de Artistas nos Programas de Divisão Artística e Cultural como artista-educadora do PIÁ. E estava novamente na segunda-fase, fiquei em 19ª colocação. E chamaram até a 19ª da lista, e... Quase. Dois artistas-educadores recorreram e fui para 21ª colocação. À espera de desistências, pedia às forças terrenas e siderais para que os possíveis contratados encontrassem incríveis outros trabalhos, porque eu queria muito o PIÁ, estava até então em paixão platônica quase desesperada.


PIÁ - ATO I – apresentação, recepção, primeiros contatos
Entrei para o Programa de Iniciação Artística (PIÁ) no CEU Sapopemba, em junho para substituir a AE[1] Martina. A coordenadora artista-educadora Ana Paula entrou em contato comigo e me reuni com a equipe (Ana Paula, Marília e Fabio) neste CEU uma semana antes de iniciar os encontros com as crianças. Na minha agenda anotei a partir da conversa que tivemos: “Terça-feira – turma de CCA (a mais complicada)*, de 5 a 10 anos, das 9h às 12h (8h30 às 11h), dupla: Fabio; Quarta-feira manhã - 8 a 10 anos das 9h às 12h, dupla Ana Paula; Quarta-feira à tarde – 8 a 10 anos (turma agitada) das 13h às 16h, dupla: Fabio; Quinta-feira – (menor turma) 8 a 10 anos, das 9h às 12h , dupla: Marília; Sexta-feira – Reunião de equipe das 9h às 13h.”
* A questão CCA[2]: A falta de inscrição de crianças, especificamente na terça-feira, fez com que Moisés (NAC) sugerisse uma ida ao CCA Guadalupe, para conhecer as crianças. Caso os AEs achassem que coubesse ao Programa, proporiam uma parceria com o CCA. Nos primeiros encontros os AEs Fabio e Martina iam até o CCA e lá desenvolviam as atividades. Depois de conhecer as crianças, os AEs dialogaram e chegaram a um acordo com a Marta (assistente social do CCA) que eles poderiam levar para o CEU Sapopemba no máximo 19 crianças (que teriam as fichas de inscrição com autorização dos pais e, Marta assumir-se-ia como responsável pelas crianças). Quem levaria? Os AEs e mais duas responsáveis do CCA. Um trajeto de 10 minutos que inclui a travessia da Av. Sapopemba. Quem escolheu as 19 crianças, entre mais de 30, que iriam para o PIÁ? As assistentes sociais do CCA. Como estavam acontecendo as idas para o CEU? Só uma assistente social do CCA estava acompanhando os AEs para levar as crianças e não duas responsáveis, como havia sido acordado. Os AEs estavam dispostos a abarcar o CCA no PIÁ, mesmo em tais condições. Para mim foi muito difícil quando soube o que vinha a assumir, falei no mesmo dia que não teria aceitado esse tipo de acordo, principalmente pela travessia, que no meu ver, é muito perigosa e não cabia essa responsabilidade no que eu acreditava ser minha função no PIÁ. Sinceramente, era como se eu não tivesse escolha, embora a equipe jamais tenha me imposto algo do tipo: “você vai ter que assumir isso, não há outro jeito”. Esse caso foi colocado para mim como algo para se refletir. A Ana perguntou o que eu achava... Mas começando o Programa de Iniciação Artística, só era meu primeiro dia, decidi encarar e começar a minha relação com o CCA estendendo a relação PIÁ-CCA que já havia iniciado. Deixei claro para a equipe que tal condição não era confortável para mim e esta se mostrou aberta a conversas e trocas, que eu me sentisse no processo o qual poderia ser revisto e adaptado.

A primeira semana de PIÁ se resumiu na terça-feira e quarta-feira (03 e 04 de junho) porque quinta-feira os metrôs entraram em greve o que se estendeu para sexta-feira, e a cidade entrou em caos geral, pessoas “superlotando” os ônibus demorando de 4 a 5 horas pra chegar aos seus trabalhos, isso quando conseguiam. Conversamos entre equipe e achamos melhor avisar aos pais que o encontro de quinta-feira seria cancelado.
Terça-feira quando cheguei no CCA, as crianças me receberam imediatamente e carinhosamente com abraços. A manhã foi intensa, qualidade furacão, explosivo, perigoso. No caminho até o CEU, a tensão de olhos por todos os poros atentos para as crianças que seguiam conosco agitadas, falantes, sedentas. No CEU brincamos com algumas propostas corporais que variavam os níveis no espaço (alto-médio-baixo), entre outras tentativas as quais duravam no máximo 2 minutos (essa foi minha sensação)... E o caos tomava conta (brigas entre eles, lutinhas, xingamentos, gritos, corre-corre para todos os lados). Fotografamos autorretratos em P&B das crianças, os imprimimos e depois elas pintaram essas fotografias com tinta acrílica, revelando cores e intensidades dos seus rostos, brincando com figura-fundo, traços, colagens, “facetagens”. Elas tinham sede pelas tintas, lambuzavam-se, espalhavam o material, faziam rasgos, rabiscavam por cima umas das outras. Era agressivo, destrutivo, reconstrutivo. Contato vivo e feroz com aquele material a ser revelado, universo borrante e berrante. Muitas delas pedindo, chamando ao mesmo tempo, um tumulto: “o meu está bom?”, “e o meu?”, “eu pedi primeiro”, “eu sou feia.”, “estragaram o meu!”, choros, vontades, prazer no acontecimento, na ação, naquilo que surgia como que urgente, o que era necessário ser feito. E eu quase não conseguia nem olhar para o Fabio e estava ali com as crianças, ouvindo, ajudando, tentando entender, buscando, pedindo, chamando... e no final, Raíssa olhando bem séria para mim perguntou: “e aí professora, gostou da nossa turma?”, a sala toda virada em cores, do avesso. Respondi: “é, não foi muito fácil hoje. mas acho que gosto de vocês.”.
No dia seguinte, quarta-feira, depois do turbilhão do dia anterior, não sentia dificuldade em estar com aquelas crianças que acabava de conhecer, me senti acolhida pela equipe e por ambas as turmas.
De manhã depois de nos apresentarmos, com contações de histórias e instrumentos para se criar com as narrativas, Gabrielle (11 anos) ao fim do encontro me passou a letra e a música de funk que seu irmão Gustavo compôs (da turma de quarta-feira à tarde do PIÁ que logo iria conhecer):

E eu Gustavo, ‘gora’ não gosto mais
Moro no Sapopemba
com minha mãe e com meu pai

E eu Gustavo, ‘gora’ não gosto mais
Moro no Sapopemba
quebrada zica demais

A vida é dura
só pra quem é mole
mas quem não tem medo, é
não se encolhe

Acreditar
e nunca desistir
Grite forte, cante alto
para todo mundo ouvir”

MC_GTO (Gustavo, 10 anos)

Anotei a letra no meu caderninho e ela me passou a coreografia que havia criado com a ex-AE Martina para que eu aprendesse, além de sugerir instrumentos musicais para variar o estilo do funk. Foi surpreendente.
À tarde embarcamos no faz-de-conta com brincadeiras de teatro, mímica e improvisação (inspirações do Théâtre du Soleil de Mnouchkine e a lembrança comum a nós AEs de Jean-Jacques Lemêtre o qual conhecemos em cursos, em lugares e momentos diferentes: eu em Curitiba e Fabio em São Paulo). Abrimos cortinas pesadas, tocamos instrumentos invisíveis, pegamos voos turbulentos, visitamos festas e casamentos, muita dança, trânsito, diferentes cenários e figurinos.

PIÁ  Seis meses de atos, depoimentos, manifestos, exposições, danças, cenas, clímax vários, sem desenlace, sem desfecho. Abrem-se cortinas, paredes, olhares, pensamentos, falas, possibilidades...
Grupo II[3]  Aventureiros, inventores e contadores de histórias
(Turma de quarta-feira de manhã)
O cenário se compõe através de figuras geométricas: triângulos, retângulos, círculos, semicírculos e pintinhas em várias cores: azul, laranja, rosa, verde, roxo, amarelo... Combinamos essas figuras que vão sendo criadas, deslocadas, sobrepostas. Chama-se a isto Trocoscópio[4] e entendemos seu sentido pela história que vai sendo contada, recontada, modificada e pelo “trocoscoPIÁ” - o ato de recortarmos em e.v.a. nossas próprias figuras e com elas construirmos histórias paralelas, que se entrecruzam e estão abertas a subtrairmos, adicionarmos, desconstruirmos e construirmos peças, revelando diversos caminhos e sentidos.
Na floresta as lambisgoias despertam, depois ouvimos as tribos tocando chocalho, afoxé, apitos, máquina de trovão. Contamos histórias da mata, do sol, da lua, do rio com os sons. Às vezes mexendo e remexendo o esqueleto partimos para a escuridão da noite, e os contos de terror erguem-se das catacumbas.
Em algumas manhãs bolinhas invisíveis visitam e passeiam por nossos corpinhos. Às vezes estão leves e nos fazem levitar, outras vezes pesam muito e temos que fazer muito esforço para nos sustentar ou então aproveitamos a gravidade para quedas divertidas e derramamentos pelo chão.
Criamos trajetórias pelo CEU com fita crepe, pedaços de madeira, pedras, tijolos. Passar por elas não é tão fácil para pessoas comuns, mas para aventureiros corajosos, saltadores a distância, voadores, corredores, rastejadores, é “supimpa”.
Deixamos impressões por onde passamos. Carimbamos, no chão, partes do corpo: ora mão, ora cotovelo, ora topo da cabeça, orelha, coluna, ombros... E dançamos como sapos, cobras, cachorros, macacos, onças bravas, aranhas... Multiplicamos nossos apoios, ou nos equilibramos em um, aceleramos e desaceleramos. Transformamo-nos em bonecos de pano, de lata, de barro. Pulamos fogueiras, aumentamos o fogo.
Surge um livro de caixinhas. Construímos cabeças de caixinhas, abrimos para ver se tem algo dentro delas: imaginação. Criamos outras partes do corpo, encaixamos e desencaixamos: o pé ocupa o lugar da orelha, o nariz da boca, as mãos das pernas e por aí vai!
Não podemos esquecer-nos dos diferentes tipos de tesouros que foram enterrados, escondidos pelo CEU. A constante saga de esconder e achar; se perder, se encontrar; cuidar do que é precioso; confiar; cavar buracos juntos; fazer o rito da terra, água, ar e fogo; colher flores em agradecimento; acreditar que o segredo está guardado.

Grupo III – Queremos fazer teatro e... Protesto!
(turma de quarta-feira à tarde)
“Nós queremos apresentar uma peça!”
“Nós queremos fazer teatro!”
Vontade coletiva de montagem, criação de cenas, improvisação. Descobrimos o teatro através da música, da dança, da criação visual, estética, da literatura, e do próprio teatro. Uma frase no jogo como estímulo-resposta desencadeia diferentes maneiras de se ouvir e falar, ao repeti-la. Instrumentos percussivos modificam o ritmo das narrativas. As narrativas são corporais. E os corpos são brincantes, poéticos, revolucionários!
Um momento para um manifesto: escolha do grupo em vestir a máscara que cada um fez para seu personagem e sair pelo CEU gritando “PROTESTO! PROTESTO!”. As máscaras são feitas de sacos de pão (doados pela padaria próxima ao CEU e à Avenida Sapopemba) e transformadas, desenhadas, coladas, pintadas, cada qual inspirada nos personagens experenciados por cada um.
Depois das improvisações conversamos sobre o que emergiu, o que sentimos, o que achamos que pode melhorar. Um por vez se coloca para falar na roda. Aprendemos a ouvir, esperar, controlar ansiedade, respeitar. Como construímos um diálogo? Como ampliamos a escuta do grupo?
Mergulhamos fundo e nos damos conta que podemos nos tornar um cardume, um corpo só que realiza algumas ações no espaço. Ampliamos nossa consciência de grupo, de tempo, de seguir o fluxo, permanecer no fluxo, ser fluxo.
Desdobramentos teatrais (quem são os personagens, quando acontece, onde acontece, como acontece): teatro de bonecos em caixa de teatro feita de papelão; personagens com máscaras e o foco está nos corpos os quais se apresentam sem a expressão facial e sem fala; múltiplos ambientes e cenários para que os personagens se abram para diferentes sensações: estar numa festa, no meio de uma onda, no deserto, debaixo da terra, na via láctea, dentro da barriga da mãe, entre outros lugares; desfile dos personagens estimulado por uma ficha descritiva (escrita e desenhada) sobre as características de cada um: nome, que comida mais gosta, do que tem medo, onde nasceu, manias, poderes e outros; inspirações em soundpainting[5] ; construção de roteiros, brincando com diálogos que começam sua frase e seguem em ordem alfabética - memorizá-los e / ou improvisá-los em um grupo enquanto o outro assiste e depois trocar; teatro do “congela”, e quem assiste aponta magicamente para o grupo que entra em ação de acordo com a vontade do participante/plateia; teatro do caos; teatro do absurdo; teatro do grito; teatro que é troca, experiência propositiva e acolhedora.
Referências que emocionaram e estimularam o Grupo III: Grupo Galpão, Teatro de Sombras Attraction, e Peeping Tom!
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Grupo IV – Arte “compentorânea”[6], muita poesia!
(turma de quinta-feira de manhã)
Um grupo pequeno. Eram cinco: Ana Júlia, Ellen, Amanda, Mike, Thainá, sendo estes três últimos irmãos. Depois eram três: Ana Júlia, Ellen e seu primo João. Entraram as irmãs Francielle e Kamily, voltava a ser cinco; saem Ellen e João, entra Isabellie. E por fim são quatro: Ana Júlia, Francielle, Kamily e Isabellie.
Diferente das outras turmas que são maiores, com este grupo há mais silêncio, desdobramento de uma mesma coisa, tema, poema. Há um tempo que se esgaça e se engraça. Somos parceiros, estamos muito próximos e somos todos muito propositivos, criativos, inquietos.
Dançamos de olhos abertos e fechados. Compartilhamos sensações. Dançamos a dois: um da dupla com um leque simula sopros, ventos, ventanias, vendavais e o outro recebe às escuras em diferentes partes do corpo do ar que se move ao redor e faz mover os corpos. Improvisações com tambor acelerando o ritmo sanguíneo. Queremos saber o que tem dentro do corpo. Tocamo-nos, dos pés à cabeça, localizando ossos, órgãos, cartilagens, nervos, músculos, gordura, pele. Surpresas, cosquinhas, estranhamentos, revelações. Procuramos livros de anatomia na biblioteca, queremos mais imagens de como é/pode ser por dentro. Construímos imagens também através do toque e troca de fluxos. De olhos fechados desenhamos sem tirar o lápis do papel, com pausas que se estabelecem no grupo. Cada pausa, um ponto de lápis no papel... Abrimos os olhos e observamos os traços, os pontos, como ocupamos o papel, o espaço, como extrapolamos o limite da folha, como ficamos centralizados e possíveis ligações que podemos fazer. Ligamos os pontos e surgem figuras. Abstrações que se concretizam em formas conhecidas. Formas que se acham tão conhecidas, mas que muito se tem ainda para descobrir.
O outro lado[7]: nome do livro que a AE Marília compartilha conosco. Brincamos a partir dele com a relação perto – longe, onde nosso olhar se aproxima e se afasta. Usamos lupa, binóculos, venda, espelho. Olhamos plantinhas de perto, observamos os desenhos em suas folhas. Avançamos até o ponto mais alto do CEU, subindo o barranco, para perceber o que há de mais longe, horizontal, vertical, transversal. Olhamo-nos, nos reconhecemos no outro. Escolhemos alguém para uma caminhada dançante e temos que nos aproximar ao máximo do escolhido e depois distanciar ao máximo espacialmente. “Tarefas” em grupo que não são feitas para se estabilizarem e sim, para uma constante busca. O grupo se modifica, transforma-se. Não pára de se mover, de propor tentativas para manter a regra, mesmo sabendo esta ser impossível se for levada ao pé da letra.
E por falar em letra... PIAnenses como nos identificamos nesse grupo, as crianças compuseram um trecho de uma letra para cantar (uma paródia de Asa Branca para o PIÁ): “Você sabe o que é o PIÁ? Vou lhe dar uma explicação: é tudo aquilo que vem do povo e nasce livre do coração.”
Manoel de Barros, Arnaldo Antunes “As Coisas”, Mário Quintana, Drummond... Lemos, relemos, sorteamos frases, palavras, construímos, adicionando-sobrepondo-combinando versos, nossas próprias poesias PIÁ-dadá:

A gente devia acreditar
Só deveria haver escolas para meninos-poetas
Soltos no ar

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Mulheres perdem o equilíbrio
E o vento é perigoso
A espiritualidade é verdade
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O que é poesia?
As crianças respondem: “verbos, palavras que rimam, mais ou menos românticas.”
O que é romântico?
As crianças respondem: “meigo, feminino...”
O que seria masculino?
...
O que se precisa para se fazer poesia?
As crianças respondem: “palavras que são iguais no início e no fim; não precisa ter rima, mas tem que ter sentido; não precisa ser romântica, pode ser comédia ou de terror; versos, estrofes, aspas... Imaginação, letras.”.
E letras formam o que?
As crianças respondem:
“um desenho”
“uma palavra”

Poesia pode ser imagem e/ou palavra. Escolhemos palavras distraídas, agitadas, longas, gordas, dorminhocas para compor frases / desenhos. Criamos coletivamente. As palavras são escritas em papéis picados. Guardamos as palavras na caixinha do PIÁ, lá elas se namoram, estranham-se, embaralham-se, afastam-se e se reencontram... Com tantas inspirações criamos diferentes livros e monotipias! Ao som de jazz, baião, João Bosco ou Arnaldo Antunes, cantamos enquanto recortamos, desenhamos, pintamos... Uma pausa para uma dança. Voltamos e continuamos a buscar outras palavras, descolá-las das páginas dos livros e com elas viajar e nos encontramos inusitadamente pequenos poetas!

A sombra de um Disco Voador
A casa está morta
Dou um pulo
Não: a casa é um fantasma
Eu subo em árvores
Mas com uma chaminé em cima
A casa está sonhando
Ela pára no ar

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Grupo I – “...vem me dê a mão / a gente agora já não tinha medo”[8]
(turma de terça-feira de manhã – CCA Guadalupe)
Do fim ao princípio. Cenas selvagens, catastróficas, quase apoteóticas. O caos é a lama e a lama, o caos. A organização só para desorganizar. Os órgãos estão expostos e gritam. Corremos, fugimos, nos escondemos, usamos cordas e pulamos cada vez mais alto e caímos e somos bons na queda. Enfrentamos a inércia, nos protegemos, tentamos diálogos mesmo sabendo haver tantas línguas e talvez nenhuma servir. Um abraço de urso bem forte. Onde podemos ser intensos sem machucar? Como estar perto sem ferir o outro? Como amar na ausência? O intervalo de um tempo verbal pretérito imperfeito evocando o agora.
Por ser agora, por ser urgente. Palavras, palavrões do tamanho do desejo de serem ouvidas, compreendidas, acolhidas. Muitas pessoas nas ruas olham com repressão. As crianças não se intimidam. Cantam funk pornográfico em grupo, gritam, arrancam flyers de postes, catam coisas no chão, acumulam essas coisas e competem para ver quem possui mais tralha. Olham as vitrines com tênis, roupas, joias. Dizem possuir esses produtos ou que futuramente vão ganhar no Natal. Brigam, machucam-se, fazem-se chantagens violentas. A regra é para ser quebrada. O que já está dado é para ser disputado e/ou destruído.

Como nos conquistamos? Como nos confiamos? Como perceber que não há autoritarismo no PIÁ? Como acreditar que não vamos desprezá-los, inferioriza-los, humilhá-los?
(pausa)
As terças-feiras eram esperadas com uma energia “samurai”, atenção voraz. Nossas propostas dificilmente eram aceitas e o que as crianças propunham entre elas também não era respeitado. Espera e escuta. Uma canção com três crianças, uma improvisação de movimentos com quatro, ou duas... Parecia difícil avançar.
A Boneca Dinorá (nome dado pelo grupo, para uma performance que fiz juntamente com o AE Fabio o qual me apresentava e eu era uma boneca marionete) foi uma passagem que marcou profundamente a todos, acredito. No teatro do CEU eu, já vivendo a boneca marionete com figurino e maquiagem cobrindo todo o meu corpo, me escondi e comecei a pedir socorro porque estava presa, de brincadeira, em um nicho da coxia. As crianças exaltadas corriam, gritavam. Não sabiam o que fazer com aquela situação. Comecei a caminhar com passos largos de boneca e elas se agitaram ainda mais. Pareciam não saber agir diante daquela estranha boneca. Uns se assustavam, não me reconheciam, outros ficavam me puxando para brincar de pega-pega e outros queriam lutar comigo. Corporalmente de várias maneiras tentei propor danças, mímica, diálogo. Tentei suavizar, demonstrar meu carinho, e o Fabio me ajudou musicalmente para um momento de brincar no palco. Mas tudo foi ficando cada vez mais violento... Arrancaram-me parte da luva, arrancaram pedaço do sapato, me empurraram, me chutaram, me machucaram. Pedia na “voz da boneca” para que parassem e eles não paravam. Deixei-me chegar ao limite, ao meu esgotamento. Sentei e chorei verdadeiramente. Pouco a pouco algumas crianças começaram a se aproximar, querer me ajudar, falar para eu não ficar triste, me dar carinho, me entregar pedrinhas como presente, até por fim, juntamente com o Fabio, algumas tocaram instrumentos musicais para incentivar que a boneca voltasse a dançar. Aos poucos, me senti fortalecida com o apoio delas e dançamos juntos. Já estava na hora de finalizar o encontro do dia. Eu estava muito mexida com tudo o que aconteceu. Nunca tinha vivido situação semelhante. Era hora de parar, repensar os encontros, repensar minhas expectativas e limites. Perceber as diferenças como potência de mover, de transgredir.
Passado esse episódio, conversamos em equipe e decidimos dividir as crianças em dois grupos (9 crianças em cada grupo): Grupo 1 com crianças de 5 a 7 anos e o Grupo 2 com crianças de 8 a 10 anos. Cada semana passamos a levar um grupo para o CEU, encontrando, assim, cada grupo quinzenalmente. Desde então, pela nossa “lei”, a gente era obrigado a ser feliz.
Brincamos de cowboy, rei, princesa, juiz e tantos outros. Criamos, por meio de jogos, maneiras de modificar o espaço e as relações de acordo com as pessoas que passavam pelo CEU, com proposições que disparavam ações coletivas. Apresentamos espontaneamente uma peça de teatro improvisada para crianças de três a quatro anos, através do desfile de personagens fantásticos. Exploramos o CEU, as fronteiras, as distâncias. Encontramos o barranco e foram muitos rolamentos das alturas, escorregadelas, escorregões... Um ajudando o outro para subir e descer. Coletamos flores, folhas secas, galhos e sementes para compor quadros vivos, hortas, esculturas! Um brinquedo sonoro! Encontramos um tesouro de argila para criar as nossas preciosidades. E chegamos muito perto e ficamos muito juntinhos para ouvir histórias dos monstros, um livro.
Depois de muito perguntarem sobre a Boneca Dinorá, “como ela está?” “ela vai voltar?”, “a boneca era você, tia?” combinei com o Fabio e fizemos um encontro no CCA com todas as crianças onde Dinorá apareceu e explicou que precisou ir à costureira e ao médico para se recuperar de toda aquela confusão, mas que estava de volta para contar umas histórias engraçadas de uma menina que ela conheceu - Josete[9], para cantar e dançar. Todos ouviram as histórias com os olhinhos vivos, curiosos, que se divertiam. Dançamos juntos uma dança maluca. Cantamos juntos, Fabio no pandeiro, o Funk do PIÁ - letra das crianças do CCA em parceria com o Gustavo da turma de quarta-feira:

'É o funk! É o funk!
É o funk do PIÁ
Quando toca esse funk
todo mundo quer dançar

A vida é dura só pra quem é mole
Mas quem não tem medo é,
não se encolhe

Acreditar e nunca desistir
Grite forte, cante alto
para todo mundo ouvir!...”

Dionorá se despediu: viajou para Romênia. Enviou uma carta contando suas aventuras por lá. Teve sonhos com eles... Eu tenho sonhos (muitos!) com essas crianças, diariamente. Tomando banho, de repente, desatino a chorar. Sei que os amo profundamente. Incrível a confiança, o carinho que conquistamos entre nós! Como nos transformamos! Por ser intenso, avassalador, a gente agora já não tinha medo.



Falso Epílogo – termina, mas não acaba. Rastros poéticos...
É estranho interromper um processo que começa a se aprofundar, se afinar nas relações entre equipe, turmas, crianças, funcionários, pais, parceiros, o próprio espaço do CEU. Sinto-me num trânsito, nem ir, nem vir, mas entre (entre-territórios, entre culturas, entre valores, entre verbos). Entre o Centro e Sapopemba, entre o CEU e o CCA, entre as salas barulhentas onde escutamos os sons que reverberam do ginásio e o espaço ao ar livre, mas que não é tão livre, entre a gestão e os pais, entre a alegria que se descobre no presente e o rompimento do Programa, à espera do amanhã, das “águas de março”, sob incertezas.
Penso que experiências abertas com as crianças são importantes para a nossa humanização. No PIÁ as crianças se deparam com a experiência do corpo num tempo-espaço que se alarga - a descoberta do sensível - através de trocas e provocações na convivência. Ampliamos a percepção nos processos criativos. Sinto-me assim como artista-educadora. Nos grupos que integro: [-MOS] (dança), COMO clube (performance) e Teatro de Transeuntes procuro me posicionar de maneira aberta para o mundo, onde sou capaz de expandir, de pensar outras possíveis realidades e histórias na relação indivíduo – coletivo. Desse modo somos impulsionados a nos relacionarmos com o mundo como seres de intervenção, de transgressão. O exercício do diálogo, entre as pessoas, ideias e linguagens artísticas, proporciona o aprendizado da escuta, através do qual reconheço o outro como sujeito - não o discrimino - estou aberta e disponível a aprender com ele.
A arte coincide com a vida desde que a vida seja uma vida intensa, que se desdobra, mais que isso, atua com as coisas que nos atravessam. 





[1] AE = Artista-educador
[2] Centro para Criança e Adolescente Nossa Senhora de Guadalupe
[3] O Grupo I (turma de terça-feira se encontra depois do Grupo IV, por uma escolha da sequência dos acontecimentos e percepções que desejo falar).
[4] Livro da Editora Tangerina, autor Bernardo P. Carvalho.
[5] Soundpainting é uma língua de sinais para direção de composição ao vivo. Foi criado em 1974 pelo compositor Walter Thompson (New York) para músicos, bailarinos, atores, poetas, artistas visuais.
[6] Ana Júlia tentando lembrar o nome do museu que visitamos (na Ação Cultural do PIÁ) falou: “Museu de Arte Compentorânea” e o grupo todo consentiu.
[7] Texto e ilustração do húngaro Istvan Banyai, editora Cosac Naify.
[8] Trecho da letra João e Maria de Chico Buarque.
[9] Apresentei a contação de história do livro Contos de Ionesco para Crianças, de Eugène Ionesco.  

Um comentário:

  1. Que ensaio lindo! Transformador, inteligente, atravessado de afeto e urgência. Muito especial! Parabéns!

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