segunda-feira, 17 de novembro de 2014

sobre espaços e lugares

 Fomos com as crianças ao MAC (Museu de Arte Contemporânea) e para o Parque do Ibirapuera. O ônibus atrasou 50 minutos para chegar no CEU e a essa altura já considerávamos um plano B para tentar lidar com tantas frustrações vestidas para passear. Quando chegou, éramos um bolo transbordante de ansiedade. Um percurso longo, mas com a sensação de que estar a caminho continua sendo mesmo sempre a melhor parte: os motoristas e motoqueiros que vem atrás e respondem aos acenos, os novos hits de sucesso que entoam num coro de vozeszinhas estridentes, a expectativa de chegar logo misturada com a vontade de que demore, que dure, que não acabe.
Gosto de observar as mudanças da paisagem ao longo desses percursos. Sair de Sapopemba, chegar no Ibirapuera. De lá pra cá, diminui consideravelmente o número de farmácias, de lojas de plástico a partir de R$1,99 ou de roupas com araras na calçada, casas só no reboco, calçadas quebradas, fios. Tentei chamar atenção para os grafites na 23 de Maio, mas não obtive muito sucesso. A Thifanny me fez notar num canteiro em obras: por que eles tiram a grama para depois plantar mais grama?
           Chegamos ao museu.
Eu, que trabalhei em várias exposições como educadora, dessa que recebe o grupo por pouco mais de uma hora, conversa, olha, pede para não tocar e vai embora, estava numa expectativa grande de estar do outro lado, em ser a pessoa que leva o grupo ao invés da que o recebe.
Descemos do ônibus. As crianças estavam em polvorosa.
Nos dividimos em pequenos grupos para conversar antes de entrar no museu. Fiquei com a turma do fundão, os mais velhos e impacientes. Eu achava importante que todos soubessem onde estávamos, o que faríamos e veríamos ali, como funciona aquele lugar. Trabalhar em museus e espaços expositivos me fez adquirir certa aversão a esses espaços e uma necessidade de sempre chamar a atenção para sua arquitetura, sua lógica disciplinar e apartada do mundo, assegurando o bem estar daquilo que já foi legitimado como arte dentro das paredes brancas. Eu espero pelo desconforto dos corpos que não foram constrangidos a esses lugares de bons modos e etiquetas e classe, porque não é raro esse desconforto vir. Eu sinto nesse desconforto, que antes de tudo é meu, a diferença do desconforto do corpo constrangido pela arquitetura escolar, do corpo que se adequa aos ruídos e a falta de espaços num lugar de grandes dimensões como o CEU, do corpo sempre de passagem sem pedir licença
.
- A gente já sabe: na pode por a mão, não pode comer, não pode respirar.

[NÃO PODE RESPIRAR] 

           - Vocês sabem o que é arte contemporânea?
           - Por que a gente não entra logo e descobre? Me respondeu a Natália, certamente mais impaciente com a conversa enquanto as paredes de vidro já denunciavam o que nos aguardava do lado de dentro do museu, do que de fato querendo saber o que era a tal da  arte contemporânea. O que talvez pudesse ser a mesma coisa…

           TRANSARQUITETÔNICA
A obra do Henrique Oliveira, que ocupa um andar inteiro do prédio do MAC, é uma construção, um labirinto que contorna as pilastras do prédio e começa (ou termina, depende do ponto de vista) com paredes de alvenaria, pintadas de branco (e se confundem com as do museu) e depois ficam só no reboco, tijolos, madeira até chegar nos troncos de árvore na saída da outra extremidade. Aquilo pra mim poderia ser aquele percurso de Sapopemba até o museu. Das raízes até as paredes brancas ensimesmadas, geladas.
Lá dentro esqueci um pouco que estava num museu cercada por tais paredes. Se eu esqueci, acho que as crianças sequer lembraram. Gritos e correria. Se perder para se encontrar e perder de novo. A graça de nunca chegar. Descobertas. O corpo sujeito pelo teto baixo, o corpo sujeito pelas formas propostas e impostas pela arquitetura. Lá dentro era muito quente e faltava um pouco de ar.

   - Se fosse uma casa, quem moraria aqui? ou ali?
   - Aqui mora índio, ali mora gente...
   - Mas índio não é gente?

          Entrar e sair até aprender todos os caminhos. Só mais uma vez. E mais uma. À exaustão.

Nos reunimos do lado de fora da obra. Algumas crianças deitaram no chão do museu para descansar de toda agitação. Os seguranças reforçaram o estado de alerta em que se colocaram desde que chegamos, mas nada disseram.
Ao vê-los ali deitados no chão do museu, entendi que aquela vivência tinha proporcionado a eles uma outra forma de se relacionar com aquele espaço normalmente ostensivo, "silencioso", "quieto" e repressor. Uma experiência diferente das tantas que tive como educadora e como visitante, com as quais me habituei aos "nãos" em primeiro lugar.


Podia respirar mesmo faltando um pouco de ar lá dentro.
Lembrei que enquanto planejávamos o passeio, a Aninha (7 anos) disse que queria ir a um lugar que fosse livre. Será que aquele foi um lugar de liberdade para
ela? Será que foi para mim?
Acredito que essa obra ocupe a lógica museológica de forma a transformá-la em algo que precisa ser explorado, preenchido e não só observado de longe. Desde então tenho pensado nas condições que os "nossos" espaços impõem aos nossos corpos e como respondemos a eles. Volto ao pertencimento, mas agora pensando em tudo o que fizemos para caber nesse espaço que nos diz respeito (o CEU), mas que constantemente nos expulsou com seus ruídos altíssimos, sua falta de sombra, de piso confortável para sentarmos no frio, as distâncias infinitas entre os prédios que compõem todo o equipamento CEU. Penso que lá em Sapopemba não estamos fora da lógica da nossa cidade que constrói as pessoas para seus espaços e não o contrário. Uma lógica que privilegia a máquina, a passagem, o isolamento. As pessoas que frequentam o CEU puxam os bancos pra conversar, estão ali diariamente usando seus espaços, mas ele permanece seco, hostil e barulhento.
Uma das definições de lugar no Dicionário Michaellis é “espaço ocupado por um corpo”. Seria o CEU um lugar? Um lugar desses que pede para ser preenchido e explorado, ocupado pelas pessoas a seu modo? Será que mesmo a despeito da hostilidade arquitetada, as crianças conseguem deitar (e rolar) no chão e tomar esse espaço pra si e nos ensinar a fazer isso também, mesmo que “apesar de…”? Acho importante acreditarmos e sabermos que sim, mas sem esquecermos que não precisamos tirar a grama para por mais grama.
Ainda sobre nossa visita ao MAC, depois nos reunimos novamente com nossos grupos, eu com a "turma do fundão". Novamente eles não estavam muito pra papo, queriam correr ou comer, mas consegui perguntar se tinham descoberto o que era então a arte contemporânea:
         - Uma arte que mistura tudo, porque aí tinha pintura, escultura e a gente podia entrar dentro. Foi a resposta que a Pamela me deu.
As coisas que a gente pode perceber com o corpo, não só pela palavra: que o espaço que nosso corpo ocupa pode ser um lugar que nos dá mais espaço para o corpo perceber o que pode ser. E que pode ser mais.



[do oitavo andar do MAC, a vista panorâmica de um lado da cidade]




marília carvalho
ceu sapopemba

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