domingo, 23 de novembro de 2014

A Imaginação como experiência artística

                                                                                                              Bruna Rodella                          

 Tratando- se de arte e infância, existem muitos lugares, como escolas, projetos sociais e diversas instituições, onde as linguagens artísticas de dança, teatro, música e artes visuais são trabalhadas dentro do sistema “ensino-aprendizagem”, buscando a formação dessas crianças e na maioria das vezes um incentivo à escolha de uma linguagem única para se especializar. 
 Há seis anos no PIÁ (Programa de Iniciação Artística da Secretaria Municipal de Cultural de São Paulo que é oferecido atualmente em 18 equipamentos na cidade de São Paulo) venho vivenciando, dentro do campo de arte e infância, um espaço de permissão de experiências artísticas e não a busca por uma formação.
 Tendo como base as artes integradas com crianças de 05 a 14 anos, a proposta artística no PIÁ, surge como uma experiência através de trocas entre dois artistas e um grupo de crianças. Ou seja, ao invés de formação busca-se um espaço de experimentação, aonde não venham comandos dos adultos, mas provocações e acolhimento das proposições das próprias crianças.
 Certo que nem sempre esse espaço ideal acontece, principalmente pela dificuldade dentro de alguns grupos de crianças de se ouvirem e aceitarem escolhas que não as suas. Mas apenas pelo fato da família não esperar que seu filho tenha necessariamente uma formação e o artista educador não ter a obrigação de “passar um conhecimento” diante de conteúdos pré-estabelecidos, esse espaço já é de certa forma livre e acolhedor.
 Diante disso, tendo em mãos um espaço de autonomia e liberdade enquanto artista e educadora vêm à questão: como atuar? O que fazer para propiciar esse espaço de experimentação artística?
 Partindo dessa pergunta e tendo como norte uma turma de 8 a 10 anos da biblioteca Padre José de Anchieta, a escolha se deu no caminho de propiciar e incentivar a Imaginação.
 Após dois meses de experimentações diversas, como brincadeiras, conversas e a saída de algumas crianças da turma, a quinta- feira de manhã se caracterizou com cinco crianças de 9 e 10 anos. Dança? Teatro? Artes Visuais? Música? Não.
 Desentendimentos e até brigas eram muito frequentes, pelo motivo de um não escutar o outro, nem ceder a outras ideias e iniciativas. Enquanto propositoras, propúnhamos jogos, dinâmicas e materiais, mas tudo que se iniciava acabava em brigas e no desinteresse de continuar. O curioso era que mesmo assim na semana seguinte estavam ali, esperando na porta da biblioteca ansiosos para mais uma manhã. Na função de artistas educadoras nos colocamos no papel de mediação, procurando instaurar a percepção de coletividade, com diálogos frequentes buscando a importância da escuta e aceitação da opinião do outro.
 E então esse espaço tornou-se um lugar de encontro de sete pessoas, sendo cinco crianças e duas artistas educadoras. Discussões, conversas, risadas, confidências e com o passar do tempo aproximação, mesmo com as brigas pelas diferentes escolhas.
 As propostas vinham de todos e um dia surgiu a vontade de criar uma história. Com tecidos e cadeiras construímos nosso barco e então surgiram personagens dentro de uma aventura de navio Pirata. Com muitos desejos e até o objetivo de gravar um filme foi criado o roteiro, com desenhos das ilhas a serem percorridas, o que se tornou o mapa do tesouro. 

“A criança performer é a criança cujo gesto imaginativo saltou para a qualidade criativa, para dentro do âmbito do inusitado, do nonsense, da intensidade dos fluxos, do improviso e da expressividade...” (MARCONDES, Marina 2010)

 Porém na semana seguinte toda aquela vontade tinha acabado e enquanto educadoras sentimos a necessidade de interferir de alguma forma. Aproveitando o fato de que não encontravam o mapa do tesouro que havia sido guardado deixamos com que isso se tornasse um mistério. Quem havia pegado o mapa? Intrigados, chegaram à conclusão de que o mapa tinha sido escondido para eles encontrarem, e que isso era um tipo de travessura. E foi assim que nossa turma passou a ter mais um integrante, um ser imaginário: o saci. 

 “A lenda do Saci é uma das mais difundidas no Brasil, segundo muitos autores, o Saci é um menino travesso de cor negra que possui apenas uma perna, usa uma carapuça ou gorro vermelho na cabeça e fica o tempo todo fumando cachimbo, costuma correr atrás dos animais para afugentá-los, gosta de montar em cavalos e dar nó em suas crinas. O Saci Pererê pode também aparecer e desaparecer misteriosamente, é muito irrequieto e não para um instante sequer, pois fica pulando de um lugar para outro e toda vez que apronta as suas travessuras, ele dá risadas alegres e agudas e gosta de assobiar principalmente quando não existem as noites de luar. Ao Saci Pererê são atribuídas às coisas que dá errado, ele entra nas casas e apaga o fogo, faz queimar as comidas das panelas, seca a água das vasilhas, dá muito trabalho às pessoas escondendo os objetos que dificilmente serão encontrados novamente, seu principal divertimento é atrapalhar as pessoas para se perderem.” (MORAES, Rosalina)

 O grupo chegou a conclusão de que precisavam se corresponder com o saci através de cartas. E nessas cartas (escritas por nós educadoras) o saci fazia propostas, perguntas e pedia para que inventassem travessuras e brincadeiras com as outras turmas. As brincadeiras e conversas com saci permearam os funcionários da biblioteca e as demais crianças do Programa. Vieram à tona histórias de outros personagens do folclore, e a cada semana com as trocas de cartas a imaginação ficava mais fértil e o encontro com um ar de prazer e mistério.
Decidimos então terminar de fazer o filme da aventura Pirata colocando o saci como personagem da história, responsável por fazer o navio se perder e mudar o rumo. Passamos pelas ilhas do dragão, das sereias, do rei e ilha do terror, enfrentamos desafios e enfim encontramos nosso tesouro.
 Assim, finalizando o filme da aventura pirata e o ano chegando ao fim, veio à necessidade de um fechamento nesse grupo e suas histórias de 2014. Em forma de uma despedida poética, espalhamos cartas pela biblioteca, uma para cada criança, onde o Saci deixava uma mensagem para cada um, enfatizando as características individuais e uma mensagem para todo o grupo:

 “Queridos amigos, parabéns pela produção do filme e trabalho em equipe. Gostei muito de conhecê-los e acompanhar mesmo escondido as aventuras e brincadeiras. Espero que, aqui no PIÁ ou fora, vocês continuem brincando e se divertindo, e que a amizade permaneça! A gente se vê por aí!”

 A vivência nesses oito meses do despertar da imaginação, tendo como estímulo um personagem imaginário, porém ativo no processo artístico, foi uma experiência rica enquanto artista e educadora. Instaurou-se um lugar de encontro, acolhimento, partilhas, amizades e com certeza de futura saudade, de dias de piquenique, brincadeiras, choro, medo, risadas, rodas de conversas e principalmente de vontade de estar e criar junto.




 “Nada mais rico do que viver a vida imaginativa como uma das formas de ler o mundo compartilhado. Permitir às crianças esta leitura, dialogar com ela é apresentar-se, como concebe Winnicott (1989), um adulto” suficiente bom”, concomitantemente perto e longe, nem ausente, a ponto de causar uma sensação de não pertença ou abandono, nem excessivamente presente, o que estragaria o momento de descoberta e autonomia: perto o suficiente para ser percebido pela criança, longe o suficiente para deixa-lá ser o que ela é.” ( MARCONDES, Marina 2010)

 Referências Bibliográficas:

 MACHADO, Marina Marcondes. A poética do Brincar. São Paulo: Edições Loyola, 1998. MACHADO, Marina Marcondes. O Imaginário Infantil como trabalho em processo, 2010. ANDRADE, Rudá; ROCHA Sylvio- Documentário “Somos todos sacis” https://www.youtube.com/watch?v=hVxhMrazjPA
 MORAES, Rosalina Rosa Araújo- http://www.infoescola.com/folclore/a-lenda-do-saci-perere

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