terça-feira, 25 de novembro de 2014

As terças-feiras à tarde de 2014

As terças-feiras à tarde de 2014
Carla Casado
A.E. Coordenadora do CEU Jardim Paulistano

            Como já sugere o título, este ensaio de pesquisa-ação teve o foco num dia da semana, o dia em que o encontro era com uma das turmas do PIÁ com idade de 08 a 10 anos. Considerando que a pesquisa inicia-se com o levantamento de questões a partir das práticas alinhadas aos princípios norteadores do programa, foi com essas crianças que surgiram muitas questões sobre a relação da vivência com os tais princípios.
            O primeiro desafio foi da percepção sobre a importância do coletivo, isso porque as crianças não conseguiam realizar ações em grupo, inclusive as brincadeiras. Nas ações, cada uma dava uma ideia e queria que ela prevalecesse e não abriam mão e em outras propostas ficavam igualmente brigando ao invés de embarcar na experimentação.
            A autora Marina Marcondes Machado, aborda a criança como performer e nesse sentido de poder ler o desejo de um sorvete, uma crise de birra, uma sonolência no ônibus como atos performativos. No convívio com as crianças, as brigas, como encará-las?
            Entre alguns fatos que ocorreram, estão de um soco na cara do outro, o ataque ao pescoço que provocou vermelhidão e arranhões por conta de uma cadeira dentro de uma cena ao contar uma história, entre outros.
            Os desentendimentos nessa turma eram tão grandes que tudo que se iniciava se rompia por uma briga. Por uma necessidade, tivemos que instituir a roda de conversa, porque em outros momentos do encontro, percebemos que era inviável a conversa acontecer. A roda não foi um momento da artista educadora dar “lição de moral”, mas questionar, ouvir o que tinham a dizer sobre o que ocorria, o que pensavam disso, seus motivos. E assim, refletimos e construímos regras coletivamente, mas que alguns desrespeitavam por não saberem lidar com um combinado onde não havia punição.
            A insistência do diálogo, um dos princípios no PIÁ, esteve presente, nos combinados e para a relação entre as crianças e as artistas educadoras acontecerem. O diálogo no programa significa a escuta e a inter-relação entre pessoas, ideias, e linguagens artísticas.
            Um outro princípio é o processo criativo que significa valorizar os acontecimentos criativos como parte de um processo dinâmico e em constante movimento, a partir de um espaço-tempo de sensibilidade e acolhimento. Como instaurar processos criativos num ambiente sem acolhimento do outro, já mencionando um outro princípio que é o de perceber os ritmos, estados e pulsações de cada encontro no que diz respeito à alteridade e aos espaços-tempos instaurados.
            O desafio constante foi de instaurar estados e pulsações diferentes nos encontros, já que a pulsação que traziam não apontavam para construção. As relações que demonstravam era de preconceito, de violência verbal e física constante, negação da ideia do outro, entre outras. Foi necessário tentar construir outras referências de relação, era preciso embarcar na “ideia do outro” para que depois o outro embarcasse na “minha ideia” e com o tempo não valorizar tanto de quem é a ideia inicial, mas o que todos poderiam fazer a partir dessa ideia. Era preciso perceber que sem isso, nada se concretizaria, não aconteceria nenhuma brincadeira a não ser as solitárias e não estavam sozinhos. A grande experimentação dessa turma foi a de se relacionar com o outro e nesse sentido, muitas vezes, o nosso principal papel foi de mediação de conflitos.
            Quando Marina Marcondes trata sobre a criança performer, cita o Dicionário Teatro organizado por Patrice Pavis (1999), na qual aparece o performer como aquele que realiza uma encenação de seu próprio eu.
            E assim elas foram performes de si e nesse contexto, a autora ainda ressalta o pensar as crianças a partir de si próprias. Cita Sarmento ao abordar “criança sociológica” que significa pensar as crianças como seres sociais que integram um grupo social distinto.
            Além de pensar as crianças como um grupo, cada turma demonstrou as diferenças entre elas. Assim, a palavra social ressaltou em meus questionamentos, não no sentido de elaborar atividades com temas sociais, mas de ouvir o que expressavam em suas atitudes, no corpo, nas necessidades, além de suas falas.
            A arte tem a ver com isso? Quem faz a arte? Considerando que quem faz são seres humanos culturalmente sociais, não nos construímos sozinhos.
            Em um dos objetivos do PIÁ divulgado no site da Prefeitura de São Paulo, consta promover uma aprendizagem baseada no fazer artístico, na criatividade e expressividade, no conhecimento histórico, no senso crítico e estético, no respeito pelas diferenças e pelas diferentes culturas.
            Nessa perspectiva é preciso ouvir, perceber as necessidades salientadas. Assim, essa turma em especial, que demonstrava a relação permeada pela agressividade e a dificuldade de conviver em grupo, instalou-se o desafio da realização das ações e propostas. Na prática, sem uma boa convivência, todas as ações sofriam rupturas ou nem se iniciavam pela falta de consenso e disponibilidade para a experimentação.
            Os conflitos que apareciam não eram somente casos isolados, o grupo todo era atingido. Não permitiam esquecê-los e passar adiante, eles resultavam no não fazer, não realizar, não deixar acontecer.
            Um dos temas colocados em uma das reuniões regionais foi o acontecimento X planejamento. Se foi apresentado como um “versus” o outro, isso revelou diferentes opiniões quanto aos procedimentos metodológicos dentro do Programa. O acontecimento foi colocado e defendido por alguns artistas educadores como deixar vir do encontro, sem pré-estabelecer propostas planejadas anteriormente e o planejamento por outro lado foi colocado como algo necessário, mas com flexibilidade para dialogar com o que acontece no encontro.
Na prática e considerando o objetivo de aprendizagem no fazer artístico, o planejamento traz um momento de organizar os quereres, de trocar saberes com as crianças, bem como possibilita a reflexão e o senso crítico sobre a prática e no que ela dialoga com o conhecimento tanto dos artistas educadores como das crianças.
A questão é qual a visão sobre o planejamento, já que a palavra é carregada de uma experiência escolar de algo estático e de roteiro a ser seguido, muito diferente da perspectiva do Programa. Tanto o planejamento, quanto o acontecimento colaboraram, pois se complementam na prática artístico-pedagógica.
Com relação a turma mencionada e os desafios dessa convivência, não deixamos de instiga-los por conta de suas decisões negativas quanto a experimentar. Insistimos e, nesse sentido, respeitar o “não” e o que eles impunham era deixar com que todos os dias saíssem machucados e ser conivente com a violência em seus vários aspectos e não somente física. Como exemplo, o racismo explícito por xingamentos, o furto de objetos, dentre outras.
Conquistamos a conversa que não existia, antes as crianças diziam somente no grito e como artista educadora fui solicitada a gritar, por uma criança; ela disse “você tem que gritar com a gente”.
O tempo do encontro, como um dos princípios, não é somente o tempo respeitado de cada um em realizar algo. A aprendizagem dessa prática demonstrou que o tempo do encontro é também o de terem contato com outras referências e que com o passar dos dias, vão compreendendo por exemplo que não era preciso gritar.
Outra aprendizagem que construímos com as crianças foi que liberdade não significa poder agredir o outro e destruir se quiser o que o outro fez. A liberdade só é possível coletivamente, pois se eu cerceio o outro eu acabo de instituir que também poderei ser cerceado.
Com essa convivência, a imagem pré-concebida da criança que brinca, imagina, espontânea, dentre outras; se modificou. Infelizmente existem crianças que por serem violadas do seu direito de serem crianças, desaprenderam a brincar, não permitem o espontâneo acontecer e se defendem. Algumas já carregam uma maneira de se comportar, por entender que qualquer relação com um adulto é vertical, que a atenção que podem ganhar vem de algo que desagrade esse adulto.
Foram muitos desafios colocados, e nesse processo artístico, o que ressaltou foi a relação conquistada de diminuírem a agressão física e conseguirem se reunir e dialogar.
A sensação de persistência, sim, não desistimos! E para não desistir foi preciso equilibrar e não preconceber nenhuma das formas e “receitas” do como fazer. Sim! foi preciso as vezes construir limites para irem mais além, como também foi preciso acabar com regras para sentirem a possibilidade de ser livremente.
Não! Foi preciso romper os “nãos” que traziam antes de qualquer experimentação, foi preciso construir os “sins” insistidos e se não fossem estimulados não teria havido outras sensações antes não vivenciadas.
O reflexo dessa relação ficou explícita quando em um único dia que não haveria o encontro porque a caixa d’água do CEU teria que ser consertada e todos lamentaram, queriam se encontrar, nem que fosse em outro lugar, o encontro teria que acontecer.
E ao mesmo tempo em que essa turma teve dificuldades de relacionamento, foi um grupo que se manteve durante o ano, dificilmente faltavam, queriam se relacionar, queriam aprender e estarem juntos.

Entre brigas e descompassos
Insistimos no passo
E no meio de tantos rompimentos
O processo criativo
Poético na superação do que se conturbava
O diálogo no lugar do grito
O coletivo no lugar do individualismo
E para tudo que não acontecia, aconteceu!
Intervenção com sombras na Bienal de Artes
Figurino, cenário para festa do terror
Corredor do medo inventado
Encenação da vontade de encenar
Obra com folhas e artes recolhidas do espaço
Brincadeira de circo
Semana de PIÀ de integração entre as diversas idades
Máscaras e histórias
A cor e movimento do som
O encontro com as famílias
As cadeiras jogadas
O espaço do brincar
O espaço de ser livre
O espaço de conhecer o outro
Os vários espaços conquistados
A saudade e nas crianças a vontade de ter tudo de novo.




Referências:
MACHADO, Marina Marcondes. Fazer surgir antiestruturas: abordagem em espiral para pensar um currículo em arte. Revista e-curriculum, São Paulo, v.8 n.1 abril de 2012. Link: http://revistas.pucsp.br/index.php/curriculum

MACHADO, Marina Marcondes. A Criança é Performer. Educação & Realidade. 35(2) p. 115-137. Maio/agosto de 2010.

OSTROWER, Fayga. Criatividade e processos de criação. 23ª Ed. Petrópolis, RJ: Editora Vozes, 2008.

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