As terças-feiras à tarde de 2014
Carla
Casado
A.E.
Coordenadora do CEU Jardim Paulistano
Como já sugere o título, este ensaio
de pesquisa-ação teve o foco num dia da semana, o dia em que o encontro era com
uma das turmas do PIÁ com idade de 08 a 10 anos. Considerando que a pesquisa
inicia-se com o levantamento de questões a partir das práticas alinhadas aos
princípios norteadores do programa, foi com essas crianças que surgiram muitas
questões sobre a relação da vivência com os tais princípios.
O primeiro desafio foi da percepção
sobre a importância do coletivo, isso porque as crianças não conseguiam
realizar ações em grupo, inclusive as brincadeiras. Nas ações, cada uma dava
uma ideia e queria que ela prevalecesse e não abriam mão e em outras propostas
ficavam igualmente brigando ao invés de embarcar na experimentação.
A autora Marina Marcondes Machado,
aborda a criança como performer e
nesse sentido de poder ler o desejo de um sorvete, uma crise de birra, uma
sonolência no ônibus como atos performativos. No convívio com as crianças, as
brigas, como encará-las?
Entre alguns fatos que ocorreram,
estão de um soco na cara do outro, o ataque ao pescoço que provocou vermelhidão
e arranhões por conta de uma cadeira dentro de uma cena ao contar uma história,
entre outros.
Os desentendimentos nessa turma eram
tão grandes que tudo que se iniciava se rompia por uma briga. Por uma
necessidade, tivemos que instituir a roda de conversa, porque em outros
momentos do encontro, percebemos que era inviável a conversa acontecer. A roda
não foi um momento da artista educadora dar “lição de moral”, mas questionar,
ouvir o que tinham a dizer sobre o que ocorria, o que pensavam disso, seus
motivos. E assim, refletimos e construímos regras coletivamente, mas que alguns
desrespeitavam por não saberem lidar com um combinado onde não havia punição.
A insistência do diálogo, um dos
princípios no PIÁ, esteve presente, nos combinados e para a relação entre as
crianças e as artistas educadoras acontecerem. O diálogo no programa significa a escuta e a inter-relação
entre pessoas, ideias, e linguagens artísticas.
Um outro princípio é o processo
criativo que significa valorizar os acontecimentos criativos como parte de um
processo dinâmico e em constante movimento, a partir de um espaço-tempo de
sensibilidade e acolhimento. Como instaurar processos criativos num ambiente
sem acolhimento do outro, já mencionando um outro princípio que é o de perceber
os ritmos, estados e pulsações de cada encontro no que diz respeito à
alteridade e aos espaços-tempos instaurados.
O desafio constante foi de instaurar
estados e pulsações diferentes nos encontros, já que a pulsação que traziam não
apontavam para construção. As relações que demonstravam era de preconceito, de
violência verbal e física constante, negação da ideia do outro, entre outras. Foi
necessário tentar construir outras referências de relação, era preciso embarcar
na “ideia do outro” para que depois o outro embarcasse na “minha ideia” e com o
tempo não valorizar tanto de quem é a ideia inicial, mas o que todos poderiam
fazer a partir dessa ideia. Era preciso perceber que sem isso, nada se
concretizaria, não aconteceria nenhuma brincadeira a não ser as solitárias e
não estavam sozinhos. A grande experimentação dessa turma foi a de se
relacionar com o outro e nesse sentido, muitas vezes, o nosso principal papel
foi de mediação de conflitos.
Quando Marina Marcondes trata sobre
a criança performer, cita o Dicionário Teatro organizado por Patrice Pavis
(1999), na qual aparece o performer
como aquele que realiza uma encenação de seu próprio eu.
E assim elas foram performes de si e nesse contexto, a
autora ainda ressalta o pensar as crianças a partir de si próprias. Cita
Sarmento ao abordar “criança sociológica” que significa pensar as crianças como
seres sociais que integram um grupo social distinto.
Além de pensar as crianças como um
grupo, cada turma demonstrou as diferenças entre elas. Assim, a palavra social
ressaltou em meus questionamentos, não no sentido de elaborar atividades com
temas sociais, mas de ouvir o que expressavam em suas atitudes, no corpo, nas
necessidades, além de suas falas.
A arte tem a ver com isso? Quem faz
a arte? Considerando que quem faz são seres humanos culturalmente sociais, não
nos construímos sozinhos.
Em um dos objetivos do PIÁ divulgado
no site da Prefeitura de São Paulo, consta promover
uma aprendizagem baseada no fazer artístico, na criatividade e expressividade,
no conhecimento histórico, no senso crítico e estético, no respeito pelas
diferenças e pelas diferentes culturas.
Nessa perspectiva é preciso ouvir,
perceber as necessidades salientadas. Assim, essa turma em especial, que
demonstrava a relação permeada pela agressividade e a dificuldade de conviver
em grupo, instalou-se o desafio da realização das ações e propostas. Na
prática, sem uma boa convivência, todas as ações sofriam rupturas ou nem se
iniciavam pela falta de consenso e disponibilidade para a experimentação.
Os conflitos que apareciam não eram
somente casos isolados, o grupo todo era atingido. Não permitiam esquecê-los e
passar adiante, eles resultavam no não fazer, não realizar, não deixar
acontecer.
Um dos temas colocados em uma das
reuniões regionais foi o acontecimento X planejamento. Se foi apresentado como
um “versus” o outro, isso revelou diferentes opiniões quanto aos procedimentos
metodológicos dentro do Programa. O acontecimento foi colocado e defendido por
alguns artistas educadores como deixar vir do encontro, sem pré-estabelecer
propostas planejadas anteriormente e o planejamento por outro lado foi colocado
como algo necessário, mas com flexibilidade para dialogar com o que acontece no
encontro.
Na prática e considerando o objetivo de aprendizagem no fazer
artístico, o planejamento traz um momento de organizar os quereres, de trocar
saberes com as crianças, bem como possibilita a reflexão e o senso crítico
sobre a prática e no que ela dialoga com o conhecimento tanto dos artistas
educadores como das crianças.
A questão é qual a visão sobre o planejamento, já que a
palavra é carregada de uma experiência escolar de algo estático e de roteiro a
ser seguido, muito diferente da perspectiva do Programa. Tanto o planejamento,
quanto o acontecimento colaboraram, pois se complementam na prática
artístico-pedagógica.
Com relação a turma mencionada e os desafios dessa
convivência, não deixamos de instiga-los por conta de suas decisões negativas
quanto a experimentar. Insistimos e, nesse sentido, respeitar o “não” e o que
eles impunham era deixar com que todos os dias saíssem machucados e ser
conivente com a violência em seus vários aspectos e não somente física. Como
exemplo, o racismo explícito por xingamentos, o furto de objetos, dentre
outras.
Conquistamos a conversa que não existia, antes as crianças
diziam somente no grito e como artista educadora fui solicitada a gritar, por
uma criança; ela disse “você tem que gritar com a gente”.
O tempo do encontro, como um dos princípios, não é somente o
tempo respeitado de cada um em realizar algo. A aprendizagem dessa prática
demonstrou que o tempo do encontro é também o de terem contato com outras
referências e que com o passar dos dias, vão compreendendo por exemplo que não
era preciso gritar.
Outra aprendizagem que construímos com as crianças foi que liberdade
não significa poder agredir o outro e destruir se quiser o que o outro fez. A
liberdade só é possível coletivamente, pois se eu cerceio o outro eu acabo de
instituir que também poderei ser cerceado.
Com essa convivência, a imagem pré-concebida da criança que
brinca, imagina, espontânea, dentre outras; se modificou. Infelizmente existem
crianças que por serem violadas do seu direito de serem crianças, desaprenderam
a brincar, não permitem o espontâneo acontecer e se defendem. Algumas já
carregam uma maneira de se comportar, por entender que qualquer relação com um
adulto é vertical, que a atenção que podem ganhar vem de algo que desagrade
esse adulto.
Foram muitos desafios colocados, e nesse processo artístico,
o que ressaltou foi a relação conquistada de diminuírem a agressão física e conseguirem
se reunir e dialogar.
A sensação de persistência, sim, não desistimos! E para não
desistir foi preciso equilibrar e não preconceber nenhuma das formas e
“receitas” do como fazer. Sim! foi preciso as vezes construir limites para irem
mais além, como também foi preciso acabar com regras para sentirem a
possibilidade de ser livremente.
Não! Foi preciso romper os “nãos” que traziam antes de
qualquer experimentação, foi preciso construir os “sins” insistidos e se não fossem
estimulados não teria havido outras sensações antes não vivenciadas.
O reflexo dessa relação ficou explícita quando em um único
dia que não haveria o encontro porque a caixa d’água do CEU teria que ser
consertada e todos lamentaram, queriam se encontrar, nem que fosse em outro
lugar, o encontro teria que acontecer.
E ao mesmo tempo em que essa turma teve dificuldades de
relacionamento, foi um grupo que se manteve durante o ano, dificilmente
faltavam, queriam se relacionar, queriam aprender e estarem juntos.
Entre brigas e descompassos
Insistimos no passo
E no meio de tantos
rompimentos
O processo criativo
Poético na superação do que
se conturbava
O diálogo no lugar do grito
O coletivo no lugar do
individualismo
E para tudo que não
acontecia, aconteceu!
Intervenção com sombras na
Bienal de Artes
Figurino, cenário para festa
do terror
Corredor do medo inventado
Encenação da vontade de
encenar
Obra com folhas e artes
recolhidas do espaço
Brincadeira de circo
Semana de PIÀ de integração
entre as diversas idades
Máscaras e histórias
A cor e movimento do som
O encontro com as famílias
As cadeiras jogadas
O espaço do brincar
O espaço de ser livre
O espaço de conhecer o outro
Os vários espaços
conquistados
A saudade e nas crianças a
vontade de ter tudo de novo.
Referências:
MACHADO, Marina Marcondes. Fazer surgir antiestruturas: abordagem em
espiral para pensar um currículo em arte. Revista e-curriculum, São Paulo,
v.8 n.1 abril de 2012. Link: http://revistas.pucsp.br/index.php/curriculum
MACHADO, Marina Marcondes. A Criança é Performer. Educação &
Realidade. 35(2) p. 115-137. Maio/agosto de 2010.
OSTROWER, Fayga. Criatividade e
processos de criação. 23ª Ed. Petrópolis, RJ: Editora Vozes, 2008.
Links:
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