quarta-feira, 19 de novembro de 2014

Palavras de 11 a 14

CEU Cantos do Amanhecer

Artista-Educadora: Laura Marques de Souza Salvatore
Linguagem: Teatro


      Quando cheguei à turma, eles estavam em meio a um processo de propostas inspiradas em palavras. Já haviam passado por algumas e iríamos ainda propor mais.

     Poesia dadaísta. Desconstruir a história. Ler. Colar palavras no papel e ler. Colar palavras na parede e fazer formas, traços, desenhos, riscos, sons, movimentos. Fazer para os outros. Permitir-se ser visto. Enxergar e deixar-se penetrar pelos traços do outro. Mostramos vídeos da poesia Ursonate de Kurt Schwitters, artista dadaísta, a qual sugere uma sonoridade sinfônica à sua leitura; e também a poesia concretista de Haroldo de Campos, que é som, é quadro, é crítica.

“O homem é um vivente com palavra. O homem é palavra, todo ser humano tem a ver com a palavra, se dá em palavra, está tecido em palavra. Por isso, atividades como considerar as palavras, criticar as palavras, eleger as palavras, cuidar das palavras, inventar palavras, jogar com as palavras, impor palavras, proibir palavras, transformar palavras etc não são atividades ocas ou vazias, não são mero palavrório. Quando fazemos coisas com as palavras, do que se trata é de como damos sentido ao que somos e ao que nos acontece”. (LARROSA, 2002, P. 21)

      Nesse momento, "perdi a amizade". Não era assim que esta turma se relacionava com as palavras. Para eles, era mero palavrório, sim. Este é um dos desafios que a relação com arte, artistas-educadores e crianças implica: de que forma atravessá-los como o Larrosa nos atinge ao lermos um de seus textos?

     Embora a equipe estivesse preocupada em aderir ao repertório musical dos jovens, ao discutir o assunto em reunião e questionando a comumente atitude dos artistas em geral em impor os seus repertórios em arte às crianças como se fossem melhores. Pesquisamos o conhecido "Passinho do Romano" e pensamos propostas de diálogo sobre o mesmo (Quais as palavras presentes em cada versão da música? O que essas palavras nos revelam? Podemos identificar algum tipo de preconceito? Por quê? Etc.); mesmo assim, não teve jeito. Neste momento demonstraram não só desinteresse, mas também aversão às palavras.

     Para não deixar registrado que foi de todo ruim, houveram momentos de entrega, mas o movimento imperante foi o de resistência devido ao cansaço/preguiça em trabalhar com o tema proposto. Nos viam com palavras e saiam correndo, alguns batiam os pés, outros reclamavam que só propúnhamos as mesmas coisas: práticas com palavras. Não via o porquê insistir. Além disso, relacionavam o momento de desgosto com a saída da professora Helena, que eles tanto admiravam. Helena escolheu sair do programa devido ao típico excesso de atividades na vida cotidiana. Graças à decisão dela, eu entrei. Mas, não foi fácil ganhar espaço dentro desta atual conjuntura.

      Este foi um momento um tanto complexo, pois além de nunca ter passado por isso, essa questão foi muito discutida nos encontros de equipe. Como caminhamos até essa situação? Será que a despedida da Helena foi muito dramatizada? (Festas e festas de despedida). As crianças gostam dos artistas-educadores, mas não costumam se apegar dessa maneira. Além disso, é normal sentir saudade de uma pessoa que lhes marcou a vida, mas atribuir ao outro a falta de alguém como se essa ação a trouxesse de volta? 

      Mesmo porque, desde antes à minha entrada na equipe, as artistas-educadoras dessa turma de 11 a 14 anos já tinham problemas com a falta de interesse em geral e da dificuldade em propor um trabalho que exigisse processo e continuidade.

      Inspiradas nas palavras de Jorge Larrosa (2002) que diz que a experiência é o que nos passa, o que nos acontece, o que nos toca; que a cada dia se passam muitas coisas, porém, ao mesmo tempo, quase nada nos acontece; e que nunca se passaram tantas coisas, mas a experiência é cada vez mais rara; pensamos: "É isso! Precisamos preparar o terreno para criar espaço à experiênica. Precisamos conseguir atravessá-los."

     Como promover o espaço da experiência àquele que constantemente se põe, se opõe, se impõe e se propõe? Segundo Larrosa (2002), "é incapaz de experiência aquele a quem nada lhe passa, a quem nada lhe acontece, a quem nada lhe sucede, a quem nada o toca, nada lhe chega, nada o afeta, a quem nada o ameaça, a quem nada ocorre". Buscávamos encontrar que mote era esse que os afetaria a ponto de fazê-los querer estar ali, se entregarem e se deixarem ser atravessados.

      A contradição, então, está dada, pois é no mínimo duvidoso pensar que jovens de 11 a 14 anos não desejem ser tocados, afetados. Recorro, novamente, ao Larrosa, quando nos diz que:

"Em qualquer caso, seja como território de passagem, seja como lugar de chegada ou como espaço do acontecer, o sujeito da experiência se define não por sua atividade, mas por sua passividade, por sua receptividade, por sua disponibilidade, por sua abertura. Trata-se, porém, de uma passividade anterior à oposição entre ativo e passivo, de uma passividade feita de paixão, de padecimento, de paciência, de atenção, como uma receptividade primeira, como uma disponibilidade fundamental, como uma abertura essencial". (Larrosa, 2002, p. 19)

      É isso! Lhes falta essa passividade feita de paixão, de padecimento, de paciência e de atenção de que fala Larrosa. Mas, não podemos nos render a essa dificuldade da modernidade. Está lançado o desafio.


      Para falar sobre isso, farei uma breve introdução sobre a proposta que levei ao chegar no PIÁ: como me apresentar a eles? Então, fiz um apanhado de materiais que tenho que revelam um pouco da minha trajetória na arte. No nosso primeiro encontro, fui vestida com o figurino da "Coragem" (uma personagem que fiz para uma peça de teatro em 2005), vestindo uma máscará neutra (que criei do meu próprio rosto), com fotos de peças que participei, e poesias que entregava a eles. Li essa história:

"Perguntais-me como me tornei louco. Aconteceu assim: Um dia, muito tempo antes de muitos deuses terem nascido, despertei de um sono profundo e notei que todas as minhas máscaras tinham sido roubadas – as sete máscaras que eu havia confeccionado e usado em sete vidas – e corri sem máscara pelas ruas cheias de gente gritando: “Ladrões, ladrões, malditos ladrões!” Homens e mulheres riram de mim e alguns correram para casa, com medo de mim. E quando cheguei à praça do mercado, um garoto trepado no telhado de uma casa gritou: “É um louco!” Olhei para cima, para vê-lo. O sol beijou pela primeira vez minha face nua. Pela primeira vez, o sol beijava minha face nua, e minha alma inflamou-se de amor pelo sol, e não desejei mais minhas máscaras. E, como num transe, gritei: “Benditos, benditos os ladrões que roubaram minhas máscaras!” Assim me tornei louco. “E encontrei tanto liberdade como segurança em minha loucura: a liberdade da solidão e a segurança de não ser compreendido, pois aquele que nos compreende escraviza alguma coisa em nós."
O Louco de Khalil Gibran
(1883 – 1931; ensaísta, filósofo, prosador, poeta, conferencista e pintor de origem libanesa)

      Notamos que a magia da máscara lhes trouxe medo, curiosidade etc. Os vimos sendo afetados por algo. Não deixamos a oportunidade passar, e sugerimos a criação de máscaras: primeiro em bexigas e depois a máscara neutra (feita com gesso, o que exigiria maior tempo, dedicação e comprometimento deles) passando por todas as etapas, tanto as de confecção do negativo (que implica paciência para fazer no outro ao colocar pedaço a pedaço da gaze gessada no rosto do outro; e depois, imersão em si próprio, tranquilidade e atenção à respiração para ficar com o rosto todo tampado de gesso, apenas com as narinas descobertas; além de confiança no outro e entrega); o positivo (confecção da massa de gesso, acertar o ponto e espera até o próximo encontro para secar); e empapelamento da máscara (que também exige paciência para colar papel a papel no positivo); e depois de todo esse processo, ver ganhar forma o próprio rosto fora de si.

      Batata! Iniciamos, então, um processo que se trata das singularidades deles.


              
             

  Mas como conectar o sentido que nós, artistas educadoras, encontramos na confecção de máscaras para aquela turma específica com a real situação que estávamos vivendo? LARROSA (2002) escreve que pensar é sobretudo dar sentido ao que somos e ao que nos acontece. Pensar não é somente calcular, argumentar ou raciocinar. As palavras determinam o pensamento, pois pensamos a partir delas. Portanto, procuramos dar sentido àquela prática. E lá vamos nós às referências: levamos o poema "Retrato" de Cecília Meireles; quadros do artista surrealista belga René Magritte (aqueles que há relação com os rostos); e propusemos discussões, criações de histórias, encenação das histórias criadas por eles...


Kauane em processo de confecção da Máscara Neutra.

    Durante o fruir de quatro meses de encontro, identifico um modo de lidar com as turmas de jovens e crianças. Cada grupo tem suas especificidades, as quais descobrimos aos poucos quais são elas – descoberta fundamental para o sucesso da negociação entre educadores e crianças. Essa é uma palavra que gostaria de destacar: Negociação.

    Enquanto educadores(as) necessitamos ir além dos padrões de aula, levar em consideração todas as características possíveis: contexto histórico e político do local de encontro e das pessoas que o frequentam; em sala com as crianças: escutá-las, conhecer seus desejos e sua unidade como grupo e, a partir dessas informações, apresentar propostas. Então, temos o início do processo. A busca não pode esgotar-se. Temos que analisar o que deu certo e o que não deu certo na proposta que apresentamos. O que devemos repetir com o grupo e qual o momento exato de não propor, de apenas ouvir suas propostas, respostas. Não há fórmulas, há um processo de estudo. E quanto mais tempo se tem para tal, mais potentes, artisticamente e socialmente falando, serão os encontros.



Experiência anexa:


Caça ao Tesouro - 5 a 7 anos


Palavras de 5 a 7

Laura (artista-educadora): Você sabe o dia em que nasceu?
Fernanda (5 anos): Numa quinta.
                    ***
Fernanda: Eu sou mais velha que a Paola.
Laura: Quantos anos vocês tem?
Fernanda: 5, mas eu sou mais velha porque sou mais alta.
                    ***
Angelina, 5 anos (após ser picada por uma formiga): Minha mão está doendo, mas sabe o que eu vou fazer? Esperar, pois eu lavei minha mão e a formiga morreu afogada, então é a mesma coisa.
                    ***
Abner, 5 anos: Se eu sujar minha roupa, meu pai me mata.
Laura, 27 anos: Seu pai te deu vida, agora ele vai te matar?
Abner: Não foi meu pai quem me deu vida, foi Deus!
Laura: Quem é Deus?
Lucca, 5 anos: Ixi. Ela não sabe quem é Deus...
Abner (apontando o dedo indicador para o céu): Deus é o senhor que reina nesse céu azul. Lá é a casa dele.
Lucca: Não é casa, é castelo!
Laura: Tem privada no castelo de Deus?
Abner: Esse papo me deixou com vontade de fazer xixi... (sai correndo) 

Um encontro de sexta (Atividade Artístico-Pedagógica: Reunião – 4 horas)

Passeio 09 de outubro – perdemos o ônibus (só há um ônibus para o passeio de três céus, então, rolou um sorteio e só um equipamento vai. Perdemos). Pedir o ônibus para a Fátima (Gestora). Piscina – reservar a semana de piscina do piá. Reunião de quinta dos coordenadores – que tal revezarmos entre nós? Como recuperar o coletivo? Ana topou a troca de ter/manhã para a qui/tarde. Os diálogos com os ambientes externos à sala de aula (trocas na EMEI/EMEF) fortaleceram a turma de qui/tarde. Setembro: 50 horas/aula; 16 horas/reunião; 6 horas/ação cultural (7 hs a mais). Turmas de qua/manhã – longas discussões. O planejamento está fraco ou eles querem contrariar porque são adolescentes, etc? R. Um pouco de cada. Chegar sem proposta (vazio) e ver o que acontece. Marilena Freire fez isso. Mostrar o filme “Entre os muros da escola” (talvez mais pra frente). Trabalho de psicomotricidade (da espanha) oferecer coisas para eles destruírem (pilha de colchões, papeis para rasgar, bexigas para estourar). Após tudo destruído, pedir para eles criarem outra coisa com os objetos destruídos.

Referência Bibliográfica
BONDÍA, Jorge Larrosa. Notas sobre a experiência e o saber de experiência. Tradução de João Wanderley Geraldi. IN Revista brasileira de educação N. 19, 2002.

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