quinta-feira, 20 de novembro de 2014

EDUCADOR-PESQUISADOR - Reflexões sobre a documentação na pedagogia da infância.

Programa de Iniciação Artística 2014
Ensaio  de Pesquisa-Ação


Carolina Bagnara Fernandes
Artista Educadora -  Teatro 
(CEU Parque Bristol)

Apresentação

No contexto da Educação Infantil, debruçando-se sobre o tema da documentação na Pedagogia da Infância, esse ensaio pretende discutir dois aspectos que se relacionam: a intencionalidade das práticas docentes e a valorização das experiências educacionais através do registro e da reflexão.

A partir das contribuições de alguns autores pesquisadores da temática da documentação, o texto abordará a importância de documentar pelo viés do engajamento e da profissionalização do trabalho docente. Considerando as propostas educativas do norte da Itália, da região da Reggio Emília, é notório o avanço qualitativo da educação infantil presente nos relatos dos educadores, desde as formulações teóricas até a transformação das práticas e interações de aprendizagem. Essa observação nos permite afirmar a intrínseca relação entre a documentação reflexiva e a valorização do currículo que, flexibilizado e atento às descobertas surgidas ao longo dos processos vividos pelas turmas, é enriquecido de sentido e autenticidade. Para completar, o efeito da presença do registro nas experiências educativas reverbera ainda em outros dois instrumentos metodológicos: o planejamento e a avaliação, colocando-os em maior concordância com as necessidades reais das crianças.
Por todos esses aspectos, a reflexão proposta desemboca na defesa de que a documentação deve ser encarada como ferramenta essencial à prática educacional, seja ela formal, como é o caso das creches e pré escolas, seja no contexto de outros programas públicos, como é o caso do PIÁ.

Documentando e compartilhando a prática educacional.

Nas últimas décadas, investido de interesse por grande parte dos pesquisadores e professores da educação infantil, o papel da documentação tem ganhado um espaço inédito dentre as produções e publicações da área. Muito influenciado pela experiência italiana, esse campo apresenta-se como um caminho de estruturação de uma atividade docente crítica, consciente e carregada de intencionalidade educativa. As experiências vividas no cotidiano das creches, pré escolas e demais programas de educação infantil, tais como o PIÁ, necessitam ser pensadas, avaliadas e significadas. Para isso, torna-se imprescindível retomar o cotidiano postumamente ao tempo real, possibilitando o distanciamento do olhar daquele que viveu a prática educativa. É neste ponto que a materialização da experiência, proporcionada pelos diferentes meios de registro, permite que essa reflexão ocorra ancorada na observação ativa do educador.

Existem muitas possibilidades e combinações de recursos a serem utilizados no processo de documentação. Anotações rápidas, textos, fotos, vídeos, desenhos, gravação de sons etc. Cada um desses meios têm suas especificidades, potenciais, limitações e, por isso mesmo, atendem a diferentes demandas. Quando o educador documenta sua prática educativa, ele está impreterivelmente realizando escolhas. Ao optar por um ou outro instrumento, ao escolher as palavras que melhor representam seu pensamento, ao focar a câmera neste ou naquele ângulo, ao priorizar uma fala da criança ou outra, ao ligar e desligar o gravador quando sente ser aquele o momento certo, o educador desenvolve sua capacidade de seleção. Nenhum registro é literal e desprovido de subjetividade. Mesma a fotografia é um recorte, uma perspectiva única e pessoal de seu autor. Desta forma, aquele que registra compromete-se, concomitantemente, com seu trabalho. Em outros termos, não é possível que um bom registro seja realizado mecanicamente. A presença do educador é amplamente convocada na medida em que ele necessita de uma aguda percepção de seu trabalho para que possa realizar boas escolhas sobre o que e como registrar.

Ao mesmo tempo, por mais que esteja atento no momento de seu encontro com as crianças, o registro, quando revisitado, tende a revelar surpresas ao educador, e neste ponto reside um dos tesouros dessa prática. Ao rever os acontecimentos, através da contemplação do registro, o educador poderá descobrir outras camadas, pistas, que não estavam perceptíveis anteriormente. A documentação, como base de um trabalho de pesquisa, reflexão e construção de teorias, é o que direciona os próximos passos a serem tomados. Fugindo a todo tipo de arbitrariedade, os processos educacionais embasados desta forma são processos que rumam a um “aprendizado respeitoso” (GANDINI, 2002, p.150). Isso que dizer que, partindo de uma concepção específica sobre a infância, o educador que recorre às descobertas e reflexões que seus registros proporcionam, prioriza compreender de que maneira pode estimular suas crianças a desenvolverem-se, respeitando as curiosidades, dificuldades e potencialidades que sinalizam. O currículo flexibiliza-se na medida em que se constrói coletivamente, levando em consideração as contribuições das crianças e dos educadores-pesquisadores que compartilham pontos de vista sobre o material documentado.

O currículo é visto como decorrente das observações dos professores sobre as ideias e os interesses das crianças, mas também é elaborado conforme os professores pensam que poderá contribuir para o crescimento delas. Portanto, professores e crianças constroem juntos um plano flexível. Progettazione é, assim, um processo dinâmico baseado na comunicação que gera documentação e que é reciclado por ela. (GANDINI, 2002, p.154, grifo do autor)

Outros dois instrumentos metodológicos para os quais transbordam esses avanços são o planejamento e a avaliação. Entre muitos modelos de planejamentos, é comum notar a presença de aspectos burocráticos e artificiais que desvirtuam as práticas educacionais de seus reais objetivos. Isso é, o planejamento do educador se reduz a uma listagem de atividades pré-programadas e muitas vezes esvaziadas de sentido e atratividade para as crianças. Quando há uma desconexão entre o planejamento e a documentação, ou seja, o acompanhamento do percurso do processo de aprendizagem, a intencionalidade do trabalho é gravemente prejudicada. O cotidiano educacional fica refém de uma concepção alienada das práticas educativas. O que expressa, na verdade, certa concepção de criança e de educação infantil que foge ao desejado. Nesses casos, “poderíamos assinalar que a criança que aparece é uma criança passiva, sem particularidades ou necessidades específicas, que espera pelo atendimento do adulto, sem nada a dizer ou expressar.” (OSTETTO, 2000, p.180). Em contrapartida, um planejamento ancorado na prática da reflexão sobre o cotidiano é valorizado pela capacidade de interagir do educador que, mais do que atividades, planeja um contexto educativo,

prevendo situações significativas que viabilizem experiências das crianças com o mundo físico e social, em torno das quais se estruturem interações qualitativas entre adultos e crianças, entre crianças e objetos/mundo físico. (OSTETTO, 2000, p.193, grifo nosso)

O mesmo movimento de democratização e participação coletiva pode ser observado em relação aos processos avaliativos. A avaliação deve ser vista como um instrumento de reflexão sobre o processo de aprendizagem do qual as crianças fazem parte, assim como os educadores. É triste verificar que na maioria das vezes isso não acontece. “Geralmente, a avaliação é uma tarefa apenas para os adultos: os professores comunicam aos pais um parecer sobre os seus filhos, e as crianças sabem que algo acontece, mas não fazem parte desse processo.” (BARBOSA e HORN, 2008, p.114, grifo nosso). Compartilhar o material documentado com as crianças e seus pais é uma oportunidade de refletir coletivamente sobre a experiência vivida. Quando entram em contato com o registro de suas práticas, as crianças percorrem um caminho de conscientização do próprio processo e valorização de si mesmas enquanto participantes do grupo. Em relação aos pais, além da semelhante sensação de acolhimento, pode-se proporcionar uma maior confiança entre a família e os educadores que, muitas vezes, acompanham as crianças de perto naquilo que os próprios pais não podem presenciar diretamente (GANDINI, 2002). Nesse sentido, compartilhar do processo das crianças é um direito da família e deve ser atendido em toda sua complexidade que vai muito além de convites para reuniões mensais ou esparsos eventos sócias temáticos que pouco dizem respeito à realidade cotidiana dos pequenos. A avaliação coletiva deve se debruçar à contemplação ativa da documentação, dos registros, das reflexões apontadas por todos os participantes da comunidade de aprendizagem.

Considerações finais – Educadores assumindo seus lugares de pesquisadores.

Como vimos, documentar as práticas educacionais na escola da infância é um processo que vai muito além do tomar nota. Ele nos proporciona um espaço de reflexão íntima e, ao mesmo tempo, transcende a dimensão individual quando agrega todo o coletivo composto pelos educadores, crianças e familiares. Trata-se, como já foi dito acima, de uma atividade docente bastante autoral. Nela, o educador se expõe, desafiando a si mesmo quando se permite olhar para a própria prática criticamente e compartilhar pontos de vista, dividir angústias, ouvir análises críticas, opiniões, refazer o caminho. Gandini (2002) afirma que a documentação permite aos educadores um contínuo crescimento profissional. Dialogando com essa ideia, é importante colocar também a dimensão do esforço e da coragem presente no texto de Ostetto.

(…) olhar para o cotidiano educativo e escrever o vivido implica igualmente esforço e coragem. Esforço: porque exige disciplina, disposição para novas aprendizagens, desalojando certezas, convivendo com a dúvida e o movimento. (…) Coragem: porque, ao refletirmos sobre o vivido, marcando na escrita a experiência, nosso campo de visão se alarga e conquistamos a possibilidade de enxergar além do nosso sucesso, (…) podemos ficar frente a frente com nossos limites, nossas faltas, nossas angústias, nosso não saber. (OSTETTO, 2008, p.24)

Acrescentado a isso, há ainda uma grande dificuldade em escrever presente entre os educadores. Ostetto (2008) sugere que o motivo da resistência em documentar talvez esteja atrelado à falta de incentivo da escrita durante todo o caminho escolar que, ao contrário do desejado, não relaciona as atividades literárias ao exercício do livre pensamento e da autoria crítica. Indo além, a não familiaridade com a linguagem escrita pode potencializar o medo da exposição das ideias e pensamentos, uma vez que, quando materializados no papel, ficam ainda mais vulneráveis, porque podem ser retomados futuramente.

Frente a essa questão, é interessante observarmos o quanto a socialização dos fazeres pedagógicos está relacionada à qualidade da relação construída pelo grupo.

A socialização, a partilha, é, sem dúvida, necessária e recomendável, mas é processo que se articula à conquista do trabalho coletivo, no qual as singularidades devem ser respeitadas à medida que evidenciadas. Ambientes livres de tensão, pautados na confiança mútua que se estabelece no contínuo trabalho do grupo, construindo identidade, certamente são ambientes para o cultivo dessa prática. (OSTETTO, 2008, p.28)

É preciso construir, entre os educadores, um círculo de pesquisa no qual haja cumplicidade e todos partilhem de um objetivo educacional prioritário. As discussões não devem ser evitadas, pelo contrário, tratando-se de uma experiência educativa, é desejável que se apresentem diferentes perspectivas. Discutindo o valor do conflito intelectual, Edwards destaca que “o foco de uma discussão não é apenas ventilar pontos de vista diversos, mas, em vez disso, prosseguir até ficar claro que todos aprenderam algo e avançaram um pouco em seu pensamento” (EDWARDS, 1999, p.167). Ela ainda nos conta que presenciou alguns encontros entre os educadores da Escola Diana, na Reggio Emilia, nos quais pôde notar a falta de defensibilidade com que as educadoras recebiam longas crítica, percebendo que “(...) entre eles mesmos, aceitam entrar em discordâncias e esperam uma discussão extensa e críticas construtivas; isso é visto como o melhor meio de avançar.” (EDWARDS, 1999, p.168)

É estimulante olhar para esse e outros exemplos positivos do uso da documentação em benefício da qualidade das práticas da educação infantil. Mais do que uma sugestão, a presença do registro e da análise reflexiva do fazer docente é condição para que haja um trabalho coerente e engajado em sua intencionalidade pedagógica. Não se pode refletir, principalmente coletivamente, sobre o que não está ao alcance de ser revisitado. Por isso, a documentação deve, cada vez mais, ser considerada enquanto premissa de qualquer processo de aprendizagem. Deve ser valorizada no âmbito da formação dos educadores expandindo “nossa identidade de cuidadores de crianças e estimuladores do desenvolvimento infantil para incluir a de teóricos e pesquisadores” (GANDINI, 2002, p.168). Em outros termos, apoiar a disseminação desta prática é também lutar pelo protagonismo dos educadores em suas próprias formações profissionais, elevando sua autoestima e acrescentando sentido ao seu trabalho, ao seu cotidiano com as crianças, à sua pesquisa contínua.



REFERÊNCIAS

BARBOSA, M.C.S Da avaliação ao acompanhamento. IN: BARBOSA, M.C.S; HORN, Maria da G.S. Projetos Pedagógicos na educação infantil. Porto Alegre: Artmed, 2008, p.103-116.

EDWARDS, C. Parceito, promotor de crescimento e guia – os papéis dos professores de Reggio em ação. In: EDWARDS, C; GANDINI, L.; FORMANG,G. As cem linguagens da criança. A abordagem de Reggio Emilia na Educação da primeira infância. Porto Alegre: Artes Médicas, 1999, p.159-176.

GANDINI, L. Duas reflexões sobre a Documentação. In: GANDINI, L; EDWARDS, C. (orgs.) Bambini: a abordagem italiana à educação infantil. Porto Alegre: Artmed, 2002, p.150-169.

OSTETTO, L.E. Planejamento na Educação Infantil: mais que atividade, a criança em foco. In: OSTETTO, L.E (orgs.) Encontros e encantamentos na educação infantil. Campinas: Papirus, 2000. p.175-200.

_______________ Observação, registro e documentação: nomear e significar as experiências. In: OSTETTO, L.E. Educação Infantil: saberes e fazeres da formação de professores. Campinas: Papirus, 2008, p. 13-22.


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