Programa
de Iniciação Artística 2014
Ensaio de Pesquisa-Ação
Carolina
Bagnara Fernandes
Artista Educadora - Teatro
(CEU Parque Bristol)
Artista Educadora - Teatro
(CEU Parque Bristol)
Apresentação
No
contexto da Educação Infantil, debruçando-se sobre o tema da
documentação na Pedagogia da Infância, esse ensaio pretende
discutir dois aspectos que se relacionam: a intencionalidade das
práticas docentes e a valorização das experiências educacionais
através do registro e da reflexão.
A
partir das contribuições de alguns autores pesquisadores da
temática da documentação, o texto abordará a importância de
documentar pelo viés do engajamento e da profissionalização do
trabalho docente. Considerando as propostas educativas do norte da
Itália, da região da Reggio Emília, é notório o avanço
qualitativo da educação infantil presente nos relatos dos
educadores, desde as formulações teóricas até a transformação
das práticas e interações de aprendizagem. Essa observação nos
permite afirmar a intrínseca relação entre a documentação
reflexiva e a valorização do currículo que, flexibilizado e atento
às descobertas surgidas ao longo dos processos vividos pelas turmas,
é enriquecido de sentido e autenticidade. Para completar, o efeito
da presença do registro nas
experiências educativas
reverbera
ainda em
outros dois instrumentos metodológicos: o planejamento e a
avaliação, colocando-os em maior concordância com as necessidades
reais das crianças.
Por
todos esses aspectos, a reflexão proposta desemboca na defesa de que
a documentação deve ser encarada como ferramenta essencial à
prática educacional, seja
ela formal, como é o caso das creches e pré escolas, seja no
contexto de outros programas públicos, como é o caso do PIÁ.
Documentando
e compartilhando a prática educacional.
Nas
últimas décadas, investido de interesse por grande parte dos
pesquisadores e professores da educação infantil, o papel da
documentação tem ganhado um espaço inédito dentre as produções
e publicações da área. Muito influenciado pela experiência
italiana, esse campo apresenta-se como um caminho de estruturação
de uma atividade docente crítica, consciente e carregada de
intencionalidade educativa. As experiências vividas no cotidiano das
creches, pré escolas e demais programas de educação infantil, tais
como o PIÁ, necessitam ser pensadas, avaliadas e significadas. Para
isso, torna-se imprescindível retomar o cotidiano postumamente ao
tempo real, possibilitando
o
distanciamento do olhar daquele
que viveu a prática
educativa.
É neste ponto que a materialização da experiência, proporcionada
pelos diferentes meios de registro, permite que essa reflexão ocorra
ancorada na observação ativa do educador.
Existem
muitas possibilidades e combinações de recursos a serem utilizados
no processo de documentação. Anotações rápidas, textos, fotos,
vídeos, desenhos, gravação de sons etc. Cada um desses meios têm
suas especificidades, potenciais,
limitações e, por isso mesmo, atendem a diferentes demandas. Quando
o educador documenta sua prática educativa, ele está
impreterivelmente realizando escolhas. Ao optar por um ou outro
instrumento, ao escolher as palavras que melhor representam seu
pensamento, ao focar a câmera neste ou naquele ângulo, ao priorizar
uma fala da criança ou outra, ao ligar e desligar o gravador quando
sente ser aquele o momento certo, o educador desenvolve sua
capacidade de seleção. Nenhum registro é literal e desprovido de
subjetividade. Mesma a fotografia é um recorte, uma perspectiva
única e pessoal de seu autor. Desta forma, aquele que registra
compromete-se, concomitantemente, com seu trabalho. Em outros termos,
não é possível que um bom registro seja realizado mecanicamente. A
presença do educador é amplamente convocada na medida em que ele
necessita de uma aguda percepção de seu trabalho para que possa
realizar boas escolhas sobre o
que e
como
registrar.
Ao
mesmo tempo, por mais que esteja atento no
momento de seu encontro com as crianças,
o registro, quando
revisitado,
tende a revelar surpresas ao educador, e neste ponto reside um dos
tesouros dessa prática. Ao rever
os
acontecimentos,
através da contemplação do registro, o educador poderá descobrir
outras camadas, pistas, que não estavam
perceptíveis anteriormente. A documentação, como base de um
trabalho de pesquisa, reflexão e construção de teorias, é o que
direciona os próximos passos a serem tomados. Fugindo a todo tipo de
arbitrariedade, os processos educacionais embasados desta forma são
processos que rumam a um “aprendizado respeitoso” (GANDINI, 2002,
p.150). Isso que dizer que, partindo de uma concepção específica
sobre a infância, o educador que recorre às descobertas e reflexões
que seus registros proporcionam, prioriza compreender de que maneira
pode estimular suas crianças a desenvolverem-se, respeitando as
curiosidades, dificuldades e potencialidades que sinalizam. O
currículo flexibiliza-se na medida em que se constrói
coletivamente, levando em consideração as contribuições das
crianças e dos educadores-pesquisadores que compartilham pontos de
vista sobre o material documentado.
O
currículo é visto como decorrente das observações dos professores
sobre as ideias e os interesses das crianças, mas também é
elaborado conforme os professores pensam que poderá contribuir para
o crescimento delas. Portanto, professores e crianças constroem
juntos um plano flexível. Progettazione
é,
assim, um processo dinâmico baseado na comunicação que gera
documentação e que é reciclado por ela. (GANDINI, 2002, p.154,
grifo do autor)
Outros
dois instrumentos metodológicos para os quais transbordam esses
avanços são o planejamento e a avaliação. Entre muitos modelos de
planejamentos, é comum notar a presença de aspectos burocráticos e
artificiais que desvirtuam as práticas educacionais de seus reais
objetivos. Isso é, o planejamento do educador se reduz a uma
listagem de atividades pré-programadas e muitas vezes esvaziadas de
sentido e atratividade para as crianças. Quando há uma desconexão
entre o planejamento e a documentação, ou seja, o acompanhamento do
percurso do processo de aprendizagem, a intencionalidade do trabalho
é gravemente prejudicada. O cotidiano educacional fica refém de uma
concepção alienada das práticas educativas. O que expressa, na
verdade, certa concepção de criança e de educação infantil que
foge ao desejado. Nesses casos, “poderíamos assinalar que a
criança que aparece é uma criança passiva, sem particularidades ou
necessidades específicas, que espera pelo atendimento do adulto, sem
nada a dizer ou expressar.” (OSTETTO, 2000, p.180). Em
contrapartida, um planejamento ancorado na prática da reflexão
sobre o cotidiano é valorizado pela capacidade de interagir do
educador que, mais do que atividades, planeja um contexto educativo,
prevendo
situações significativas que
viabilizem experiências das crianças com o mundo físico e social,
em torno das quais se estruturem interações qualitativas entre
adultos e crianças, entre crianças e objetos/mundo físico.
(OSTETTO, 2000, p.193, grifo nosso)
O
mesmo movimento de democratização e participação coletiva pode
ser observado em relação aos processos avaliativos. A avaliação
deve ser vista como um instrumento de reflexão sobre o processo de
aprendizagem do qual as crianças fazem parte, assim como os
educadores. É triste verificar que na maioria das vezes isso não
acontece. “Geralmente, a avaliação é uma tarefa apenas para os
adultos: os professores comunicam
aos pais um parecer sobre os seus filhos, e as crianças sabem que
algo acontece, mas não fazem parte desse processo.” (BARBOSA e
HORN, 2008, p.114, grifo nosso). Compartilhar o material documentado
com as crianças e seus pais é uma oportunidade de refletir
coletivamente sobre a experiência vivida. Quando entram em contato
com o registro de suas práticas, as crianças percorrem um caminho
de conscientização do próprio processo e valorização de si
mesmas enquanto participantes do grupo. Em relação aos pais, além
da semelhante sensação de acolhimento, pode-se proporcionar uma
maior confiança entre a família e os educadores que, muitas vezes,
acompanham as crianças de perto naquilo que os próprios pais não
podem presenciar diretamente (GANDINI, 2002). Nesse sentido,
compartilhar do processo das crianças é um direito da família e
deve ser atendido em toda sua complexidade que vai muito além de
convites para reuniões mensais ou esparsos eventos sócias temáticos
que pouco dizem respeito à realidade cotidiana dos pequenos. A
avaliação coletiva deve se debruçar à contemplação ativa da
documentação, dos registros, das reflexões apontadas por todos os
participantes da comunidade de aprendizagem.
Considerações
finais – Educadores assumindo seus lugares de pesquisadores.
Como
vimos, documentar as práticas educacionais na escola da infância é
um processo que vai muito além do tomar nota. Ele nos proporciona um
espaço de reflexão íntima e, ao mesmo tempo, transcende a dimensão
individual quando agrega todo o coletivo composto pelos educadores,
crianças e familiares. Trata-se, como já foi dito acima, de uma
atividade docente bastante autoral. Nela, o educador se expõe,
desafiando a si mesmo quando se permite olhar para a própria prática
criticamente e compartilhar pontos de vista, dividir angústias,
ouvir análises críticas, opiniões, refazer o caminho. Gandini
(2002) afirma que a documentação permite aos educadores um contínuo
crescimento profissional. Dialogando com essa ideia, é importante
colocar também a dimensão do esforço e da coragem presente no
texto de Ostetto.
(…)
olhar para o cotidiano educativo e escrever o vivido implica
igualmente esforço e coragem. Esforço: porque exige disciplina,
disposição para novas aprendizagens, desalojando certezas,
convivendo com a dúvida e o movimento. (…) Coragem: porque, ao
refletirmos sobre o vivido, marcando na escrita a experiência, nosso
campo de visão se alarga e conquistamos a possibilidade de enxergar
além do nosso sucesso, (…) podemos ficar frente a frente com
nossos limites, nossas faltas, nossas angústias, nosso não saber.
(OSTETTO, 2008, p.24)
Acrescentado
a isso, há ainda uma grande dificuldade em escrever presente entre
os educadores. Ostetto (2008) sugere que o motivo da resistência em
documentar talvez esteja atrelado à falta de incentivo da escrita
durante todo o caminho escolar que, ao contrário do desejado, não
relaciona as atividades literárias ao exercício do livre pensamento
e da autoria crítica. Indo além, a não familiaridade com a
linguagem escrita pode potencializar o medo da exposição das ideias
e pensamentos, uma vez que, quando materializados no papel, ficam
ainda mais vulneráveis, porque podem ser retomados futuramente.
Frente
a essa questão, é interessante observarmos o quanto a socialização
dos fazeres pedagógicos está relacionada à qualidade da relação
construída pelo grupo.
A
socialização, a partilha, é, sem dúvida, necessária e
recomendável, mas é processo que se articula à conquista do
trabalho coletivo, no qual as singularidades devem ser respeitadas à
medida que evidenciadas. Ambientes livres de tensão, pautados na
confiança mútua que se estabelece no contínuo trabalho do grupo,
construindo identidade, certamente são ambientes para o cultivo
dessa prática. (OSTETTO, 2008, p.28)
É
preciso construir, entre os educadores, um círculo de pesquisa no
qual haja cumplicidade e todos partilhem de um objetivo educacional
prioritário. As discussões não devem ser evitadas, pelo contrário,
tratando-se de uma experiência educativa, é desejável que se
apresentem diferentes perspectivas. Discutindo o valor do conflito
intelectual, Edwards destaca que “o foco de uma discussão não é
apenas ventilar pontos de vista diversos, mas, em vez disso,
prosseguir até ficar claro que todos aprenderam algo e avançaram um
pouco em seu pensamento” (EDWARDS, 1999, p.167). Ela ainda nos
conta que presenciou alguns encontros entre os educadores da Escola
Diana, na Reggio Emilia, nos quais pôde notar a falta de
defensibilidade com que as educadoras recebiam longas crítica,
percebendo que “(...) entre eles mesmos, aceitam entrar em
discordâncias e esperam uma discussão extensa e críticas
construtivas; isso é visto como o melhor meio de avançar.”
(EDWARDS, 1999, p.168)
É
estimulante olhar para esse e outros exemplos positivos do uso da
documentação em benefício da qualidade das práticas da educação
infantil. Mais do que uma sugestão, a presença do registro e da
análise reflexiva do fazer docente é condição para que haja um
trabalho coerente e engajado em sua intencionalidade pedagógica. Não
se pode refletir, principalmente coletivamente, sobre o que não está
ao alcance de ser revisitado. Por isso, a documentação deve, cada
vez mais, ser considerada enquanto premissa de qualquer processo de
aprendizagem. Deve ser valorizada no âmbito da formação dos
educadores expandindo “nossa identidade de cuidadores de crianças
e estimuladores do desenvolvimento infantil para incluir a de
teóricos e pesquisadores” (GANDINI, 2002, p.168). Em outros
termos, apoiar a disseminação desta prática é também lutar pelo
protagonismo dos educadores em suas próprias formações
profissionais, elevando sua autoestima e acrescentando sentido ao seu
trabalho, ao seu cotidiano com as crianças, à sua pesquisa
contínua.
REFERÊNCIAS
BARBOSA,
M.C.S Da avaliação ao acompanhamento. IN: BARBOSA, M.C.S; HORN,
Maria da G.S. Projetos
Pedagógicos na educação infantil. Porto
Alegre: Artmed, 2008, p.103-116.
EDWARDS,
C. Parceito, promotor de crescimento e guia – os papéis dos
professores de Reggio em ação. In: EDWARDS, C; GANDINI, L.;
FORMANG,G. As
cem linguagens da criança. A
abordagem de Reggio Emilia na Educação da primeira infância. Porto
Alegre: Artes Médicas, 1999, p.159-176.
GANDINI,
L. Duas reflexões sobre a Documentação. In: GANDINI, L; EDWARDS,
C. (orgs.) Bambini:
a abordagem italiana à educação infantil. Porto
Alegre: Artmed, 2002, p.150-169.
OSTETTO,
L.E. Planejamento na Educação Infantil: mais que atividade, a
criança em foco. In: OSTETTO, L.E (orgs.) Encontros
e encantamentos na educação infantil. Campinas:
Papirus, 2000. p.175-200.
_______________
Observação, registro e documentação: nomear e significar as
experiências. In: OSTETTO, L.E. Educação
Infantil: saberes e fazeres da formação de professores. Campinas:
Papirus, 2008, p. 13-22.
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