segunda-feira, 24 de novembro de 2014

Sobre autonomia, criatividade e o papel do Artista Educador

Paula Barison
Centro Cultural da Penha



“O que a gente faz agora, professora?”; “É pra desenhar o que nesse papel?”; “EU inventar uma música?”; “Minha mãe não deixa eu tirar o sapato!”; “Tia, ele não quer passar o lanche na roda!” São frases que acontecem de forma recorrente nos encontros do Piá no Centro Cultural da Penha. Este ensaio tem como objetivo problematizar a autonomia, ou a falta dela, na infância e na adolescência atual.
“Hora de acordar!” “Vai tomar banho!” “Já escovou os dentes?” “Bota o uniforme! Esse não, um limpo!” “Triiiiim... Hora da aula” “Abram os Cadernos” “Copiem da Lousa” “Decorem, se não irão mal na prova de novo!” “Triiiiim... Hora do Recr...Triiiim... Volta pra aula”
Muitos imperativos depois... “Ufa, agora vou pra casa... Posso descansar, brincar... Ah não! Hoje tem Inglês, Natação, Karatê, Violão...” Todos eles baseados em mais imperativos.
Chega quinta-feira, dia de PIÁ!! Essa criança chega em nosso encontro, senta e olha para os artistas educadores esperando mais um comando! Um instrumento novo no meio da roda, um papel em branco no chão ao lado de palitos e cola e, para ela, isso não quer dizer nada. Pergunta se pode tocar o instrumento, ou então como irá desenhar no papel se não tem lápis.
Toda essa descrição traz à tona a discussão sobre a privação de autonomia na qual algumas crianças da Penha demonstram viver. Alguns pais por medo, falta de tempo, ou mesmo sem perceber, acabam por sufocar qualquer manifestação individual da criança. Como um bebê que está aprendendo a andar, ou você o acompanha para apanhá-lo e ajudá-lo a continuar o aprendizado se ele cair, ou então você o coloca em um andador, modo no qual a criança não necessita de tanto esforço e assimilação para alcançar seu objetivo, no caso: se locomover, tornando-se, muitas vezes, seres mais dependentes.
Para exemplificar um pouco a questão da autonomia nos encontros do Piá, coloco um exemplo de um recorte do processo que criamos com a turma de 11 a 14 anos da tarde. Depois das meninas terem manifestado diversas criações e demandas emocionais em um texto teatral escrito por elas, nos deparamos com o obstáculo mais freqüente que qualquer artista se depara ao tentar concretizar uma idéia: falta de verba.
Conversando informalmente, descobrimos que várias delas tinham diversos talentos, como artesanato, fazer doces, outras eram mais comunicativas, e assim elas tiveram a idéia de fazer chocolates e caixinhas artesanais para vender e, assim, arrecadar alguma verba para o espetáculo que tanto queriam construir.
Eu e a Tatiane, ficamos muito surpresas com esta iniciativa e incentivamos, dando alguns direcionamentos. Na semana seguinte, elas chegaram com tudo pronto pra vender e quiseram vender nos arredores do Centro Cultural da Penha. Nos dividimos em dois grupos, eu acompanhei um e a Tati o outro. Elas venderam todas as coisas que haviam trazido, triplicando o investimento inicial.
A euforia tomou conta da turma e, ao perceberem que elas, sozinhas, estavam conseguindo realizar o próprio sonho, as meninas ficaram empolgadíssimas e queriam continuar fazendo isso até atingir a meta da verba que necessitávamos.
Com a verba arrecadada, a turma decidiu investir em Microfonação de palco e Figurinos.
Com o relato acima, podemos perceber que a partir do momento em que o problema surgiu, e nós, artistas educadoras, abrimos a possibilidade de elas resolverem por si só, a turma se apropriou deste espaço. A partir daí, a criatividade aflorou e novas possibilidades apareceram para as adolescentes. A autonomia foi conquistada e, para elas, tudo se tornou possível.
 Como percebemos no exemplo acima, a autonomia cultiva a criatividade. Porém, a falta dela pode ter conseqüências muito severas para o futuro adulto. De acordo com a nossa vivência, crianças que não tem a possibilidade de criar sua própria autonomia, acabam sempre por acatar o que os outros propõe e não se colocam como protagonistas da própria vida. Lugar onde a mente se torna terreno quase infértil para novas possibilidades e criações.
Criatividade é cultivada aos poucos, como um treinamento ao cérebro. No dia-a-dia destas crianças, normalmente, não há espaços criativos, não há tempo de respiro para o não-estar, o não-ser, o não-obedecer. Não há tempo para elas pensarem como indivíduos, saberem o que elas gostam de fazer, perceberem quais movimentos os seus corpos sentem vontade de fazer... Essa falta de auto-percepção gera uma ansiedade na qual, em qualquer momento de liberdade criativa, lhes falta repertório de corpo, mente e voz para a expressão artística de seu íntimo.
Percebemos isso, a partir do momento que no começo do ano perguntamos o que elas gostariam de fazer no encontro, e a resposta variava entre “Sei lá” e “Tanto faz”. Essas crianças não sabiam ainda a vastidão de possibilidades que tinham a frente para explorar durante um encontro do PIA.
Como exemplo disso, cito uma piá da turma de 5 a 7 anos. Depois de alguns meses de provocações, a Giovanna começou a trazer de casa instrumentos musicais feitos com sucata, e propostas de brincadeiras artísticas com esses instrumentos, o que contagiou muitos outros piás da turma. Depois de certo tempo, a cada semana uma criança vem trazendo uma proposta diferente para fazermos no encontro.
Nós, artistas educadores, tomamos então a função de artistas provocadores. Buscando, dentro de cada criança, sua espontaneidade inerente. O Piá, para eles, é um momento único. Onde eles podem ser crianças, criar e brincar como crianças. A arte proporciona momentos muito peculiares, momentos que eles não viveriam fora dela. Daí então a função de “provocadores”, provocamos a sensação de pertencer a um grupo, a vontade de se colocar como um indivíduo perante este grupo, e o início de uma percepção mais aguçada sobre o fazer artístico próprio e dos colegas.

Bibliografia:

FREIRE, Paulo. Pedagogia da autonomia: Saberes necessários à Prática Educativa. Rio de Janeiro. Paz e Terra: 1997

PSICO, Porto Alegre, PUCRS, v. 38, n. 3, pp. 292-299, set./dez. 2007. Autonomia na Adolescência e Sua Relação com os Estilos Parentais.

ESTUDOS E PESQUISAS EM PSICOLOGIA, UERJ, RJ, v. 7, n. 3, p. 405-418, dez. 2007. Considerações Sobre Autonomia na Contemporaneidade.

FUNDAÇÃO CASA GRANDE. Acesso em 17/11/2014 https://www.youtube.com/watch?v=jfc9xEWGrEM.  Nova Olinda, 2011.



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