Paula Barison
Centro Cultural da Penha
“O
que a gente faz agora, professora?”; “É pra desenhar o que nesse papel?”; “EU
inventar uma música?”; “Minha mãe não deixa eu tirar o sapato!”; “Tia, ele não
quer passar o lanche na roda!” São frases que acontecem de forma recorrente nos
encontros do Piá no Centro Cultural da Penha. Este ensaio tem como objetivo
problematizar a autonomia, ou a falta dela, na infância e na adolescência
atual.
“Hora
de acordar!” “Vai tomar banho!” “Já escovou os dentes?” “Bota o uniforme! Esse
não, um limpo!” “Triiiiim... Hora da aula” “Abram os Cadernos” “Copiem da
Lousa” “Decorem, se não irão mal na prova de novo!” “Triiiiim... Hora do
Recr...Triiiim... Volta pra aula”
Muitos
imperativos depois... “Ufa, agora vou pra casa... Posso descansar, brincar...
Ah não! Hoje tem Inglês, Natação, Karatê, Violão...” Todos eles baseados em
mais imperativos.
Chega
quinta-feira, dia de PIÁ!! Essa criança chega em nosso encontro, senta e olha
para os artistas educadores esperando mais um comando! Um instrumento novo no
meio da roda, um papel em branco no chão ao lado de palitos e cola e, para ela,
isso não quer dizer nada. Pergunta se pode tocar o instrumento, ou então como
irá desenhar no papel se não tem lápis.
Toda
essa descrição traz à tona a discussão sobre a privação de autonomia na qual
algumas crianças da Penha demonstram viver. Alguns pais por medo, falta de
tempo, ou mesmo sem perceber, acabam por sufocar qualquer manifestação
individual da criança. Como um bebê que está aprendendo a andar, ou você o
acompanha para apanhá-lo e ajudá-lo a continuar o aprendizado se ele cair, ou
então você o coloca em um andador, modo no qual a criança não necessita de
tanto esforço e assimilação para alcançar seu objetivo, no caso: se locomover,
tornando-se, muitas vezes, seres mais dependentes.
Para
exemplificar um pouco a questão da autonomia nos encontros do Piá, coloco um
exemplo de um recorte do processo que criamos com a turma de 11 a 14 anos da
tarde. Depois das meninas terem manifestado diversas criações e demandas
emocionais em um texto teatral escrito por elas, nos deparamos com o obstáculo
mais freqüente que qualquer artista se depara ao tentar concretizar uma idéia:
falta de verba.
Conversando
informalmente, descobrimos que várias delas tinham diversos talentos, como
artesanato, fazer doces, outras eram mais comunicativas, e assim elas tiveram a
idéia de fazer chocolates e caixinhas artesanais para vender e, assim,
arrecadar alguma verba para o espetáculo que tanto queriam construir.
Eu
e a Tatiane, ficamos muito surpresas com esta iniciativa e incentivamos, dando
alguns direcionamentos. Na semana seguinte, elas chegaram com tudo pronto pra
vender e quiseram vender nos arredores do Centro Cultural da Penha. Nos
dividimos em dois grupos, eu acompanhei um e a Tati o outro. Elas venderam
todas as coisas que haviam trazido, triplicando o investimento inicial.
A
euforia tomou conta da turma e, ao perceberem que elas, sozinhas, estavam
conseguindo realizar o próprio sonho, as meninas ficaram empolgadíssimas e
queriam continuar fazendo isso até atingir a meta da verba que necessitávamos.
Com
a verba arrecadada, a turma decidiu investir em Microfonação de palco e
Figurinos.
Com
o relato acima, podemos perceber que a partir do momento em que o problema
surgiu, e nós, artistas educadoras, abrimos a possibilidade de elas resolverem
por si só, a turma se apropriou deste espaço. A partir daí, a criatividade
aflorou e novas possibilidades apareceram para as adolescentes. A autonomia foi
conquistada e, para elas, tudo se tornou possível.
Como percebemos no exemplo acima, a autonomia
cultiva a criatividade. Porém, a falta dela pode ter conseqüências muito
severas para o futuro adulto. De acordo com a nossa vivência, crianças que não
tem a possibilidade de criar sua própria autonomia, acabam sempre por acatar o
que os outros propõe e não se colocam como protagonistas da própria vida. Lugar
onde a mente se torna terreno quase infértil para novas possibilidades e
criações.
Criatividade
é cultivada aos poucos, como um treinamento ao cérebro. No dia-a-dia destas
crianças, normalmente, não há espaços criativos, não há tempo de respiro para o
não-estar, o não-ser, o não-obedecer. Não há tempo para elas pensarem como
indivíduos, saberem o que elas gostam de fazer, perceberem quais movimentos os
seus corpos sentem vontade de fazer... Essa falta de auto-percepção gera uma
ansiedade na qual, em qualquer momento de liberdade criativa, lhes falta
repertório de corpo, mente e voz para a expressão artística de seu íntimo.
Percebemos
isso, a partir do momento que no começo do ano perguntamos o que elas gostariam
de fazer no encontro, e a resposta variava entre “Sei lá” e “Tanto faz”. Essas
crianças não sabiam ainda a vastidão de possibilidades que tinham a frente para
explorar durante um encontro do PIA.
Como
exemplo disso, cito uma piá da turma de 5 a 7 anos. Depois de alguns meses de
provocações, a Giovanna começou a trazer de casa instrumentos musicais feitos
com sucata, e propostas de brincadeiras artísticas com esses instrumentos, o
que contagiou muitos outros piás da turma. Depois de certo tempo, a cada semana
uma criança vem trazendo uma proposta diferente para fazermos no encontro.
Nós,
artistas educadores, tomamos então a função de artistas provocadores. Buscando,
dentro de cada criança, sua espontaneidade inerente. O Piá, para eles, é um
momento único. Onde eles podem ser crianças, criar e brincar como crianças. A
arte proporciona momentos muito peculiares, momentos que eles não viveriam fora
dela. Daí então a função de “provocadores”, provocamos a sensação de pertencer
a um grupo, a vontade de se colocar como um indivíduo perante este grupo, e o
início de uma percepção mais aguçada sobre o fazer artístico próprio e dos
colegas.
Bibliografia:
FREIRE,
Paulo. Pedagogia da autonomia: Saberes
necessários à Prática Educativa. Rio de Janeiro. Paz e Terra: 1997
PSICO,
Porto Alegre, PUCRS, v. 38, n. 3, pp. 292-299, set./dez. 2007. Autonomia na Adolescência e Sua Relação com
os Estilos Parentais.
ESTUDOS
E PESQUISAS EM PSICOLOGIA, UERJ, RJ, v. 7, n. 3, p. 405-418, dez. 2007. Considerações Sobre Autonomia na
Contemporaneidade.
FUNDAÇÃO
CASA GRANDE. Acesso em 17/11/2014 https://www.youtube.com/watch?v=jfc9xEWGrEM. Nova Olinda, 2011.
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