terça-feira, 18 de novembro de 2014

SOBRE UM GRUPO DE CRIANÇAS

Durante a construção espontânea de um objeto voador:
    - “Natanael, o que é isso?”
    - “Uma pipa, mas agora não é época de pipa”.
    - “E quando é época de pipa?”
    - “Quando as pipas `tão no céu e não tem aulas”.
                                             (Natanael, 8 anos)


Neste ensaio pretendo discutir a função artístico-pedagógica do Programa de Iniciação Artística enquanto projeto sócio-político dentro dos contextos apresentados pela cidade de São Paulo a partir da experiência que tivemos com um grupo de crianças do CCA Guadalupe[1] (Centro para Criança e Adolescente Nossa Senhora de Guadalupe).

Questões iniciais
Por uma questão logística[2] no início de Abril de 2014, tivemos que alterar o horário de nossos encontros com as crianças o que incorreu numa série de desencontros com turmas que poderiam participar do Piá, mas que por terem seu turno escolar à tarde não conseguiram conciliar seus horários com os do programa. A equipe tentou, após algumas pesquisas junto às escolas próximas ao equipamento, divulgar os encontros artísticos, mas sem sucesso. A partir daí algumas idéias foram levantadas para que não houvesse problemas maiores e que dois AEs (sendo eu um deles) ficassem sem turma e com horas ociosas às terças-feiras.
Após a sugestão de uma das funcionárias da gestão do CEU Sapopemba resolvemos fazer uma parceria com o CCA Guadalupe e convidarmos as crianças que frequentassem o local para fazer parte do Piá. O convite foi aceito e iniciamos os encontros no mês de Abril. Na época, a artista-educadora que comigo trabalhava teve que se desligar do programa e outra colega entrou para substituí-la.
O combinado então seria: buscaríamos as crianças no CCA Guadalupe e uma educadora do local nos acompanharia até o CEU e ficaria conosco durante os encontros. O CCA Guadalupe fica a mais ou menos cinco quadras de distância do CEU Sapopemba estando do outro lado da Avenida Sapopemba[3]. Ao término dos encontros, levaríamos as crianças de volta ao local de origem para que elas pudessem almoçar e ir para o turno vespertino das escolas públicas da região. Tentamos, no decorrer do ano, conseguir transporte junto à subprefeitura de Sapopemba para levar as crianças sem risco até o CEU, mas sem sucesso. Sendo assim, mantivemos o combinado de buscarmos a pé as crianças até o último dia de Novembro de 2014.
Em Abril, fizemos um trabalho de sensibilização dentro do CCA que durou o mês todo e acordamos com os encarregados pelo centro que a partir de Maio os encontros seriam no CEU. Isso, porque começamos a perceber a dificuldade em nos relacionarmos com as crianças de forma tranquila, sem as amarras que a instituição impõe sobre elas e de acordo com a ideologia do PIÁ. Além disso, todo nosso material e possibilidades espaciais que tínhamos no CEU seriam deixados de lado, caso permanecêssemos ali por mais tempo. Naquele momento, éramos dois artistas-educadores, envoltos por, mais ou menos, vinte e sete crianças.
Após o rompimento espacial com o centro, dezoito crianças foram selecionadas pelas educadoras do CCA para participar do programa. Abrimos uma exceção dentro do PIÁ para contemplarmos três crianças a mais do que o programa permite em cada turma. Dentre estas dezoito, algumas resolveram não ir mais aos encontros e foram substituídas.
Os encontros no CEU foram, desde o início, bastante difíceis por não termos um cânone entre as crianças baseado na convivência coletiva não “tolhedora” e aberta à proposições de ambas as partes, não só do artista-educador. As propostas do artistas-educadores eram confundidas com espaços abertos à permissividade ou grupos de recreação sem ideais, fazendo com que as atitudes das crianças ultrapassassem, muitas vezes, o limite do respeito. Brigas violentas, disputas de poder acirradas, falta de controle emocional e de senso coletivo são algumas das questões mais sérias que envolviam os encontros com as turmas do CCA. Tentativas para unir o grupo foram colocadas, estratégias artísticas diversas entrelaçadas a momentos de extrema liberdade espacial e criativa e, muitos, muitos diálogos tête-à-tête antecedidos de conversas com o grupo. Tudo parecia ser em vão.
As crianças tiveram sua liberdade tolhida por tanto tempo e por tantos motivos que, ao se verem, livres para criar ou para dizerem o que sentiam e sentem acabavam por externar-se afobada e violentamente. Eram avessas às conversas mais amenas que tentávamos travar com elas.
Se passaram alguns meses e muitos encontros onde corremos pelo CEU, exploramos locais inóspitos do equipamento, cantamos canções, fizemos jogos da cultura popular sugeridos pelas crianças (quase sempre era pedida a brincadeira de escolha “Adoleta”), pulamos corda, praticamos exercícios de dança, elaboramos pinturas sobre fotografias, jogos teatrais , exploramos instrumentos de percussão e nada parecia aproximar-nos, nem amainar as brigas entre eles ou unir o grupo. A equipe suscitou algumas vezes dar fim à parceria com o CCA, mas não queríamos deixar de contemplar aquelas crianças, pois sabíamos que, apesar das questões citadas havia muito potencial dentro delas a ser “posto pra fora”.
Além dos problemas nas relações com o grupo havia também alguns impedimentos e preconceitos por parte de funcionários do equipamento, que sabiam que estávamos lidando com crianças em situação de risco, expostas à violência, próxima ou dentro de suas casas, filhas de pais ausentes e que, para eles, deveriam ser consideradas delinquentes em potencial e não crianças sensíveis ou artistas, passando por um momento conflituoso. As crianças eram impedidas de tirarem suas camisetas caso estivessem com calor ou de subir nos barrancos do equipamento, por exemplo. Aconselharam-nos, certa vez, de não permitir que as crianças se aproximassem dos carros estacionados dentro do CEU, pois, caso acontecesse alguma coisa (riscos na lataria, vidros quebrados e, talvez furtos) iriam acusar as crianças do CCA.
Tivemos de ignorar muitos pedidos e “infringir” pequenas regras de conduta para que as crianças pudessem andar mais livres pelos espaços do equipamento, sendo sempre amparadas por nós, caso fosse necessário. Após algumas semanas, de intenso embate indireto entre nós e funcionários do equipamento houve uma ajuda por parte do coordenador de NAC do CEU Sapopemba que resolveu tomar nosso partido e permitir que algumas regras fossem dissolvidas e não aplicadas às crianças do CCA/PIÁ.
Eu e minha colega ainda não tínhamos resolvido os problemas internos com a turma e tivemos a ideia de elaborar uma instalação no teatro e deixá-los à vontade no espaço para que pudessem criar. Isso ocorreu no início de Agosto, quando também resolvemos convidar nossa AE coordenadora e o coordenador regional da Zona Leste 1[4] para assistir ao encontro com as crianças.
Naquele dia, houve algumas crianças machucadas por conta da instalação e de suas impetuosidades ao lidar com materiais nunca experimentados. Ficou ainda mais evidente para nós que aquela situação deveria mudar. Até nas brincadeiras mais conhecidas como o “pega-pega” as crianças se machucavam sozinhas, brigavam ou tentavam a todo custo “ferrar” o outro. Lembro-me de terem nos chamado de “loucos” após o encontro daquele dia.
Novamente discutimos sobre a parceria PIÁ/CCA em nossas reuniões de equipe, dentro das quais foram sugeridas estratégias para envolver o grupo no programa por todos artistas-educadores. Contudo, também foram expostas discordâncias sobre mantermos o trabalho com a instituição, afinal, as barreiras que estávamos tentando galgar eram quase intransponíveis. Dentre as questões que, a meu ver, mais atrapalharam o fluxo de criação coletiva com as crianças foi a falta de contato que tínhamos com seus pais. Diferente do que vinha ocorrendo com crianças de outras turmas, as quais tinham familiares bastante presentes no dia-a-dia,  próximos aos artistas–educadores a à concepção pedagógica do programa.
Apesar de tudo isso, continuamos a parceria e, todas as terças-feiras às 8h30[5] estávamos lá para buscar as crianças. Nosso horário de efetivo encontro dentro do CEU era curto (aproximadamente 1h30min.), o que também causou dificuldade para realizarmos algumas atividades tranquilamente, ou mesmo ter diálogos mais próximos com as crianças. O grupo era muito populoso e percebemos que talvez, diminuindo o número de crianças conseguiríamos o que almejávamos. Mas não queríamos deixar de contemplar ninguém, por isso chegamos a conclusão de que o mais sensato seria dividirmos a turma em dois e  as alternarmos quinzenalmente. A divisão ocorreu entre final de Agosto e início de Setembro e permaneceu até o fim do ano. Em dias de chuva era impossível fazermos a divisão ou levarmos as crianças até o CEU, por isso permanecíamos no CCA com todas as interessadas em participar do PIÁ e fazíamos ações coletivas por lá.
Além da divisão por turmas, fizemos uma reunião dentro do CCA junto com o coordenador regional da ZL1, nossa coordenadora de equipe, educadoras do CCA e todas as crianças que lá estivessem a fim de explicar novamente o que é o Programa de Iniciação Artística, como agimos, quais são as regras do equipamento que frequentamos, etc.

Crianças do CCA passam a ser crianças do PIÁ
“Primeiros dias de sol da Primavera. Eu e minha colega de trabalho buscamos as crianças no CCA Guadalupe e nos dirigimos ao CEU Sapopemba. Chegando lá, tive de pegar as chaves da sala que guardam nossos materiais na gestão do equipamento. Quando voltei todos haviam desaparecido. Encontrei-os após alguns instantes no barranco que fica atrás do último prédio do CEU. As crianças haviam encontrado um lugar para se esconder de mim (junto com minha colega de trabalho) e estavam explorando o espaço a céu aberto. Nas próximas horas algumas brincadeiras foram preparadas pelas crianças: um instrumento musical feito com pedaço de pau de vassoura e fio encontrados pelo chão (exibiam sons quando arrastados pelo inventor), pichações feitas à giz no chão e nas paredes do prédio, refeições preparadas com lama e folhas de diversas espécies e escorregadores concebidos nas terras de um barranco onde todos poderiam deslizar ao mesmo tempo.
Permanecemos naquele lugar todo o tempo de encontro com as crianças. Saímos de lá, passamos no bebedouro, nos banheiros e fomos embora para o CCA Guadalupe deixar as crianças, pois já beirava a hora do almoço”.

O relato acima conta sobre um dos primeiros dias após a divisão de turmas, sua alternância quinzenal e a conversa que tivemos com as crianças dentro do CCA. A partir daí, os encontros passaram a ser mais tranquilos e mais próximos do que entendemos ser uma prática artística, ao menos, socialmente, saudável. Ainda temos crianças que se enraivecem com facilidade e são bastante violentas com os demais, e dissimulações  sobre os combinados colocados por nós dentro do grupo, apesar disso, tem sido mais fácil pontuar algumas questões a serem resolvidas e dialogar com os “pequenos artistas” porque, neste momento, conseguimos estar mais próximos a eles.

Conclusões
Como é de conhecimento de todos, os CEUs terem sido construídos nas periferias de São Paulo tem como um de seus principais propósitos permitir o acesso a cultura e a educação por famílias de baixa renda. No entanto, expus neste ensaio nossa falta de percepção sobre o fato de dentro de uma classe social menos favorecida financeiramente ainda existirem crianças que não chegam a ter contato com os CEUs ou programas como o PIÁ por falta de informação, por pouca ou nenhuma de ação por parte dos pais ou por exclusão social.
Enfrentamos dificuldades em nos relacionar artisticamente com as crianças por inúmeros motivos, dentre eles a falta de contato com as famílias das crianças, não conhecimento do programa por parte dos educadores do CCA e escasso suporte do próprio programa e do CEU, principalmente por conta da não disponibilização de transporte semanal para a turma. Como agravante, ainda houve discriminação social por parte de alguns funcionários de nosso equipamento diante das crianças que eram trazidas por nós desde o início das atividades em Maio. Crianças estas que, por exemplo, apanham dos pais por chegarem “sujas” em casa ou que começaram a se envolver com o tráfico por morarem próximas a “boca” de distribuição de drogas. Crianças estas que percebem seu entorno com perspicácia ao falar sobre as “épocas de pipas” e “épocas de escola”. Que, espontaneamente, passam a construir vulcões na terra, seres alados que as põem a voar, que dançam e cantam lindamente apesar de tudo.
Contemplar outros grupos que não os que frequentam o CEU regularmente é uma iniciativa que julgo ser importantíssima para a cidade e para o próprio programa, apesar das dificuldades iniciais que tivemos ao firmarmos a parceria com o CCA e escolhermos algumas crianças para participar do PIÁ.
A experiência que tivemos com esse grupo dentro do CEU Sapopemba vem de encontro à criação e à prática de novas estratégias para abarcar crianças do entorno dos equipamentos, bem como sensibilizar crianças e adultos envolvidos direta ou indiretamente com o PIÁ e expandir a difusão do Programa de Iniciação Artística pela cidade de São Paulo.
Transgredir, de certa forma, algumas regras do programa e do equipamento, são parte de algumas mudanças que devem ser colocadas, a princípio, como ações utópicas diante de situações aparentemente intransponíveis como esta aqui exposta, e que, se não concretizadas em algum momento, nunca se estabelecerão como paradigmas.
O que, de início, pareceu um erro tanto logístico, quanto de escolhas, se transformou em efeito “conscientizador” da minha prática como artista-educador. Não acredito que deva ser uma obrigação do programa “correr” atrás de todas as pessoas que não tenham condição financeira ou conhecimento do PIÁ mesmo estando tão próximos a ele, mas defendo a importância da conscientização de que uma das atribuições do nosso trabalho como artistas-educadores é a emancipação artística e, não necessariamente nesta ordem, a social.


Fabio Manzione, artista-educador, CEU Sapopemba 




[1] O Centro para criança e adolescente Nossa Senhora de Guadalupe atende crianças e adolescentes numa região desprovida de recursos sociais. Seus recursos vem do Instituto Daniel Comboni, Prefeitura da Cidade de São Paulo, Senai, dentre outros.
[2] Alteração dos horários de artistas-educadores e substituição de AE de Dança no segundo mês do programa.
[3] Tendo 45km de extensão, é considerada a maior avenida de São Paulo.
[4] Zona Leste 1. O Programa de Iniciação Artística é subdividido em regiões dentro da capital paulista.

[5] Mais uma exceção concedida por nós. Chegávamos trinta minutos mais cedo para que pudéssemos ficar até às 11h30 com as crianças, horário de almoço obrigatório no CCA. 

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