Impérios e domínios
Aquele que ostenta a posse
possui ou é possuído?
Significados e graus de
importância...
Embalagens, rótulos,
etiquetas...
Sabor artificial idêntico ao natural, acidulante ácido
fumárico, aromatizantes, estabilizantes, corantes artificiais tartrazina,
amarelo crepúsculo, azul brilhante FCF, vemelho 40 e eritrozina.
Frozen, Ben 10, As Super Poderosas,
Bob Esponja, Power Rangers, Mikey, Barbie...
Não sei exatamente em que ponto
da história (minha história) comecei a construir uma aversão crescente ao “cor-de-rosa”
estendida também à “Barbie”, a boneca, e todos os seus aparatos, acessórios,
complementos, etc.
Voltando à infância, há mais de
quarenta anos atrás, considerando que hoje estou com 49, quando tinha por volta
de 5/6 anos, nos anos 1970... lugar onde frequentemente visito/recorro para auxiliar
minha prática artístico pedagógica, pesco experiências que provocaram sensações
significativas, desde a alegria, a euforia, o encantamento, raiva... até a
tristeza, o pavor, medo... e parto, rumo ao encontro daquele que esboça uma
expressão que me remete àquilo que vivi há tempos. Pondero, espio, sinto e elaboro,
chego perto e, com empatia, formulo alguma pergunta desprovida de juízo de
valor.
Sei que minhas irmãs (duas, uma
de 1 ano mais velha e outra de 3 anos mais nova) tinham predileções e desejos
praticamente iguais entre si e que eu, pretendendo (?) não ser igual a elas,
optava por escolhas contrárias, muitas vezes, radicalmente opostas. Nesta
empreitada (birra), tive que desviar o olhar para o “outro lado”, mudei os
motivos, o foco e nesse exercício/pesquisa de criança, acabei encontrando possibilidades
inusitadas e interessantes, adotei outros caminhos/brinquedos dos quais acabei fazendo
muito gosto.
Também me recordo vagamente de algumas
situações em que algumas meninas (colegas) mostravam (ostentavam) suas
conquistas (presentes de aniversário, dia das crianças, natal), bonecas
envoltas em parafernálias cor-de-rosa, banheiros, banheiras, biombos, carros, camas,
guarda-roupas, poltronas, etc. Será que minha repulsa teve origem aí, numa
ponta de inveja? Não sei.
Minha família é de origem
humilde e nem podíamos sonhar com produtos muito sofisticados (caros),
morávamos em um loteamento periférico de São Paulo, na Zona Leste, ainda quase
sem casas construídas, onde as ruas eram de terra e o mato dos terrenos
vizinhos, cenário para um infinito de aventuras. Mas éramos as únicas sobrinhas
de um conjunto de 6 tias solteiras, cheias de vontade de nos agradar, de onde
vinham muitos presentes/brinquedos.
...
Não me lembro exatamente da Barbie
em minha infância, minha irmã mais velha tinha conseguido ganhar uma Susi, uma boneca
similar. Tanto uma quanto a outra, juntas com seus aparatos, estavam fora de
cogitação, não sei o grau de frustação que isto pode ter causado, mas tínhamos
tantas opções no quintal (de terra), brincávamos tanto... Isso não ocupou muito
espaço em nossas vidas, acho.
A fixação por produtos cujo mote
seja um personagem de filme de animação também me provoca sensação parecida ao
que me provoca o “cor-de-rosa” e a “Barbie”, uma repulsa involuntária, crônica.
Não se trata de ser contra a
escolha de heróis, ídolos e referências, mas de eu não conseguir ficar alheia à
obsessão ao consumo provocada pelos apelos afetivos plantados pelo marketing
por meio destes personagens.
Ao trabalhar com crianças, me
pergunto constantemente em como lidar com esta sensação que me invade, uma vez
que a presença destes personagens é constante, tanto nas embalagens das
guloseimas que as crianças trazem para o lanche, quanto em suas falas, nas brincadeiras
e nos próprios brinquedos que eventualmente trazem para mostrar.
Há muitos momentos em que as crianças
entram em ferrenha disputa, mencionando os brinquedos que possuem, sempre associados
a personagens de filme de animação.
Nesses momentos a repulsa brota
em mim e tento encontrar caminhos de escape para lidar com a situação. Na
maioria das vezes procuro mudar de assunto, desvio a atenção e busco outros recursos,
outras brincadeiras, outros atrativos, o que geralmente funciona, mas não é
sempre e mesmo quando consigo pode retornar. O império do marketing não é um
monstro que desiste fácil, é poderoso e devastador.
O afeto é o solvente utilizado
no processo de fixação, uma armadilha complexa e sedutora que envolve não só a
criança, mas todos que a ela estão ligados afetivamente. Fica difícil encarar
esta briga, é mais ou menos como se eu estivesse contra o amor, quando é
justamente o contrário. É assim que sinto.
Dizer que não gosto de
cor-de-rosa é quase uma afronta para muita gente. Da mesma forma, dizer que não
gosto da Xuxa e de todos os produtos que ela lança no mercado pode ser
considerado uma heresia. Por sinal, produtos geralmente caros e de pouca qualidade,
frágeis, perecíveis e pouco educativos. Crio antipatia e perco a possibilidade
de discussão.
Entre tantas situações que
surgem no cotidiano onde esta minha repulsa se manifesta... eis que um dia uma
menina de 8 anos entra com sua amiga, como se estivesse carregando a coisa mais
preciosa do mundo, trazendo uma máquina registradora de plástico cor-de-rosa,
da Barbie.
Eu olhei para o objeto enquanto
ela mostrava orgulhosa o seu funcionamento. Ouvia sem ouvir, buscando algum
recurso em meus arquivos de memória, pensando no que fazer?
Eu não queria dizer o que
pensava e o que sentia em relação ao brinquedo e no instante que pareceu
eterno, uma imagem brotou da memória, lembrei-me da brincadeira de “vendinha”
que eventualmente fazíamos, eu e minhas irmãs: Juntávamos revistas em quadrinho
e outras coisinhas, pequenos brinquedos, e aquilo virava uma banca de jornal ou
barraca de feira, loja... Era uma brincadeira muito divertida e quando consegui
acessar a sensação de prazer e imaginar a possibilidade de ter uma máquina
registradora como aquela naquele tempo... foi revelador, pois percebi o quanto seria
incrível!
A partir daí, a sensação de
repulsa cedeu lugar à sensação de prazer e entre o universo da menina e o meu
aconteceu uma conexão, consegui formular perguntas sobre o funcionamento da
máquina com real interesse, vibrando com as possibilidades e, ao mesmo tempo, ainda
ruminando a contraditória repulsa pelo objeto cor-de-rosa da Barbie, objeto
estimulador do consumo, etc., etc. que inclusive trazia cartões com imagens de
produtos a serem comprados e dinheirinho para a efetivação das compras.
Estávamos numa biblioteca
temática de contos de fadas, cheia de livros que adoro e que ambas, a menina e
sua amiga, também demonstravam grande interesse.
A partir daí, com os sensores
ligados a mil, pude pensar em uma utilidade para o brinquedo “nefasto” que trazia
consigo um dispositivo imitando um leitor de código de barras que apresentava o
valor do objeto (cartões) em que era tocado, valores aleatórios.
A ideia inicial seria que cada
criança pesquisasse, “comprasse de brincadeirinha”, 5 livros que interessasse pelo
título e/ou pela imagem. Escolhidos os livros, o de maior valor registrado pelo
“leitor de código de barra” seria lido pelo “comprador”.
Esquecer os cartões do brinquedo
não agradou imediatamente, mas toparam. No entanto, a outra educadora, Marcela,
também incomodada com a presença “Barbie” nas notas dos dinheirinhos, propôs que
fabricássemos nossos próprios dinheiros, inventando outros valores.
Essa ideia pereceu agradar menos
ainda, pois retardaria “as compras”, no entanto, cederam e com materiais diversos,
canetas lápis coloridos, carimbos, as notas foram ganhando desenhos variados e
valores inusitados. O tempo perdeu a sua dimensão diante do prazer da
brincadeira, da criação, passou.
O objeto que era centro das
atenções tornou-se coadjuvante, quase foi esquecido.
Não há uma conclusão fechada, é
constante a reflexão e as especulações em torno de fatos relacionados ao estímulo
ao consumo, à disputa, ao individualismo e às novas formas de brincar da
sociedade atual.
Assim como é possível resinificar
um objeto qualquer “sem valor”, como uma lata, um pote plástico ou uma tampa,
que podem se converter em monstro ou herói, assim como uma cadeira pode virar
montanha ou túnel, mesmo um brinquedo “nefasto”, produto e fomentador de
consumo, também pode ganhar outras formas de utilização.
O desafio é constante e requer
atenção.
A resistência para ganhar
sentido e espaço, também precisa acionar a flexibilidade e o acolhimento, mesmo
que no primeiro momento a razão diga o contrário.
É preciso ter empatia.
Samara Costa
Artista educadora Artes Visuais
- Biblioteca Hans Christian Andersen - 2014
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