terça-feira, 18 de novembro de 2014

O PIÁ COMO UMA RUPTURA ARTÍSTICO-PEDAGÓGICA NA CIDADE DE SÃO PAULO

O PIÁ COMO UMA RUPTURA ARTÍSTICO-PEDAGÓGICA NA CIDADE DE SÃO PAULO
Bruno César Lopes - Coordenador Regional Sul e Centro

(Esse texto foi encaminhado para a Revista Piapuru 2014 com a proposta de verbete "ruptura")

            Ao longo de seus seis anos de existência, podemos afirmar com certa ousadia que o PIÁ é um programa público de iniciação artística de ruptura pedagógica na cidade de São Paulo. Antes de apresentar os elementos que compõem tal característica, buscaremos levantar a explicação do que entendemos como ruptura.
            Herdamos dos chamados pensadores rebeldes, como Derrida, Deleuze e Foucault a compreensão de que talvez não seja mais possível uma receita política de transformação por inteiro da sociedade, mas que vivemos um momento em que podemos transgredir aquilo que é imposto pelo sistema ou pelo mercado. (MARTON) Será por meio desse conceito de trangressão que iremos partir e que explicaremos melhor adiante, relacionando-o com a idéia de ruptura.
            Exercitar uma política de transgressão, ou um viável exercício de ações de rupturas, parece ser a sina daqueles que estão dispostos a lutar contra um sistema que tem como objetivo final o lucro, a propriedade privada e a meritocracia. Como criar então um programa público de reflexão e criação de processos criativos em meio a este contexto?
            A condição de nós, artistas, professores, estudantes, pedagogos, começa a ser então a de cidadãos criadores de fissuras na cidade. Aqueles que farão de suas ações artísticas e cidadãs um exercício constante de ruptura dos velhos paradigmas de organização social, pedagógica e educacional, num constante diálogo ético entre suas práticas e seus discursos.
            E isso não parece ser nada fácil de construir!
            A ruptura aqui como uma maneira de desorganizar, de romper com as estruturas dominantes, de criar novas formas de organização, de repensar a relação de ensino-aprendizagem e, sobretudo de estar em constante movimento filosófico longe da cristalização conservadora. Ou ainda, numa perspectiva foucaltiana, a ruptura como uma maneira de desarticular o poder instaurado sobre os nossos corpos; de diluir a disciplina, essa arte de dispor em fila e repartir corpos; de “desindividualizar” os corpos; de desestruturar a idéia de controle social; de desregulamentar o tempo da ação humana (FOUCAULT). Definitivamente é preciso criar rupturas. Numa tentativa de compor forças para quem sabe obter um aparelho eficiente de construção de si e do entorno. (FOUCAULT)
            Diante desse prisma, entender o PIÁ como um programa de ruptura passa a ser não apenas o exercício diário de um artista educador, mas principalmente o exercício político da arte-educação. Encontrar quais são esses pontos de ruptura, descrevê-los, reorganizá-los, afirmá-los ou não, deve ser uma das importantes ações a serem feitas, e que buscaremos, portanto, fazer neste texto.
            Ao olharmos historicamente para outros programas públicos de iniciação artística voltados para a criança, é possível notar a constante preocupação com o tecnicismo da arte, com o produto final e com a idéia da infância como uma “passagem” da vida numa negação dos potentes quereres das crianças. Nesse sentido um dos primeiros elementos de ruptura do PIÁ vai ser pensar A infância como um grupo social capaz de mudanças históricas, políticas e artísticas. A infância para o PIÁ não será necessariamente uma fase menor da vida, numa visão hierárquica de desenvolvimento humano. A infância vista como uma “categoria na estrutura social que manifesta variações históricas e interculturais” (NASCIMENTO)
            As crianças são membros da sociedade, agem socialmente nas famílias, nas escolas, nas creches, e em outros espaços, fazem parte do mundo, o incorporam e, ao mesmo tempo, o influenciam e criam significados a partir dele. (NASCIMENTO)
            Em consonância com a maneira própria de a criança agir no mundo é que o PIÁ vai buscar no ato de brincar sua potência na relação “ensino e arte”. A busca e a afirmação do brincar como uma conduta artístico-pedagógica. O brincar como “fim” e não como “meio”, ou seja, fazer do brincar a própria instauração do processo criativo e não um meio para se chegar na “obra de arte”. Inverter o olhar sobre o brincar dando a ele os motivos propulsores da iniciação artística, inclusive ampliando a ideia do brincar não apenas com uma relação direta a brincadeira, mas o brincar enquanto condição e estado de relação com o outro ou com as coisas ou ainda com os objetos; como a materialização da expressividade não linear da criança, da ação do desejo em movimento, de um “devir” deleuzeano (LARRAURI). O brincar vai ser atitude uníssona nas atividades de todas as equipes espalhadas pela cidade no PIÁ. Além disso, o brincar vai reunir em si a transdisciplinariedade proposta pelo Programa, na “mistura” do Teatro, da Dança, das Artes Visuais e da Música. Não é possível determinar no brincar uma das quatro categorias das artes. E um dos focos de atuação do PIÁ é deixar cada vez mais borrada a linha que define as linguagens, numa tentativa de rediscutir os modos de categorias das artes que a academia historicamente segmentou. E nisso mais um elemento de ruptura surge: A iniciação artística por meio da transdisciplinariedade. Um programa público que aposta na iniciação artística com crianças por meio da não definição do que seria “teatro”, “dança”, “música”, “artes visuais” ou um jeito único de pensar arte. Um programa público que aposta na discussão contemporânea do que é fazer e produzir processos criativos contaminados por todas as potencialidades artísticas pré-definidas.
            Por pensar a arte contemporânea com crianças de maneira dinâmica, arriscada, disposta ao erro e ao abismo, o PIÁ terá como pressuposto: O artista educador como um constante pesquisador. Será aquele artista disposto a problematizar o presente para o presente. Aquele que explora o caminho ao mesmo tempo em que caminha. (LARROSA). Não será o detentor do saber nem da razão, mas aquele que duvida dos métodos prontos, que olha sua prática como uma pesquisa em movimento. Que se pergunta freqüentemente de maneira “ignorante” as perguntas: “O que vês? O que pensas disso? O que fazes com isso?” (RANCIÈRE). Por fim, um pesquisador que tem sua atenção voltada para o diálogo-triângulo: adulto (eu), criança e adulto (o outro artista-educador).
            Esse formato “triângulo” é também considerado aqui uma das rupturas nos sistemas de iniciação artística dos programas espalhados na cidade. Portanto, é preciso entender como ruptura As características técnicas do programa. Ou seja, entender como disruptivos em si os próprios mecanismos interiores do programa, que são: uma equipe composta por quatro artistas em cada equipamento; a dupla de artistas-educadores (todas as turmas são orientadas por dois artistas educadores ao mesmo tempo); a divisão de faixa-etária (turmas de 5 a 7 anos, 8 a 10 anos e 11 a 14 anos); o número razoável de crianças por turmas (de 15 a 25 crianças por turma); as reuniões pedagógicas semanais; e a função do coordenador-artista-educador (um dos quatro artistas educadores da equipe tem como função a coordenação da equipe em articulação com o equipamento e com a Secretaria de Cultura).
            A manutenção e garantia dessas características técnicas são fundamentais para o fortalecimento do Programa como ruptura. Será preciso ao longo dos anos um olhar delicado sobre essas formas de organização, uma vez que alguma tentativa de desestruturar esses meios pode vir a ser um risco na potência do Programa. Ou seja, o entendimento de que ainda que estejamos sendo potência de ruptura é necessário estarmos com uma base de um aparelho consistente, que seja, sobretudo, reavaliado e reelaborado pelos próprios fazedores desta ruptura: os artistas-educadores do Programa.
            Outra ruptura visível é A organização pedagógica do programa realizada por meio de sua experiência, ou seja, uma busca constante de uma sistematização que nasce a partir do fazer, da prática. E que mesmo sendo “sistematizada” não tende a ser engessada. Um olhar que vai criar os modos teóricos da iniciação artística a partir da experiência, na relação com a criança, com o equipamento público e com seus vizinhos. “Experiência” no sentido que Larrosa nos traz: “A experiência é o que nos passa, o que nos acontece, o que nos toca.” (LARROSA). O PIÁ vai, portanto, ter a audácia de, ainda que com referências muito claras como a EMIA (Escola Municipal de Iniciação Artística), buscar entender sua organização pedagógica por meio de sua própria experiência. E diferente do pensamento hegemônico, sobretudo na Educação, que necessita urgentemente de cartilhas e normas, o PIÁ mais uma vez cria uma ruptura ao apostar no desconhecido.
            Vale salientar nessa etapa que a disposição em criar uma sistematização pedagógica a partir de uma idéia de ruptura, acaba criando por si só uma linha de tensão, na medida em que “sistematizar” e “causar ruptura” parecem forças opostas. Mas a defesa que propomos aqui é justamente a busca por este desafio dialético e construtivo para o próprio Programa, como numa disputa entre dois pólos de um imã com forças de atração e repulsão num campo magnético.
            Além disso, a atuação do programa nas bordas da cidade faz dele uma proposta de descentralização e irradiação de arte na cidade. Em qual espaço geográfico na cidade estamos atuando? A criança e a periferia como potencialidades artístico-políticas. A afirmação do PIÁ na periferia constitui já em si uma ruptura na medida em que democratiza o dinheiro público para uma parcela da sociedade que é forçosamente distanciada, geograficamente e socialmente, dos acessos artísticos. Com isso, a junção criança e periferia pode vir a se transformar numa potência artística, que deflagre a normalidade com que se tornou a falta de programas públicos para infância, e que deixe de ser apenas assistencialista, mas que faça da própria criação artística seu instrumento de luta e denuncia do status quo vigente.
            Por essa ótica periférica, apresentamos então o último elemento de ruptura já pesquisado, causador das maiores discussões. Aproveitamos para encaminharmos também para algumas reflexões e desafios a serem seguidos pelo PIÁ.
Um programa marginalizado dentro de uma instituição pública. Marginalizado no sentido daquele que esta “à margem”. À margem do sistema, à beira dos programas já bem estruturados e bem financiados. Marginal no sentido de ser desviante em relação a tudo o que se pretende oficial. “De ser o representante de descaminhos culturais e políticos” (COELHO). A ação-piá que incomoda, que muitas vezes perturba a “paz” que reina nos equipamentos públicos, que assim como a criança, um PIÁ que incomoda, que pergunta, que questiona, que não pára. Mas como é possível ser marginal dentro da instituição pública? Como é possível, por exemplo, ser marginal dentro de uma Fundação, uma ONG (Organização Não Governamental) ou uma OSCIP (Organização da Sociedade Civil de Interesse Público)? Esse talvez seja o maior dilema atual do Programa.
Um programa que recebe dinheiro público para problematizar o próprio uso público. Um texto como este dentro da própria Revista do programa. O Estado que proporciona uma política contra sua própria corrente. Até quando teremos essa possibilidade de se auto criticar de forma legítima e aberta? Como conviver com essa dialética? Como conviver com as incoerências postas dia-a-dia em nossos fazeres? Como não se institucionalizar dentro da máquina pública?
Para sermos um programa de ruptura estaríamos fadados a sermos um programa marginal? Teríamos que estar sempre à margem, na borda, na periferia do sistema, para continuarmos criando rupturas? Qual o risco que corremos de conquistar o “aceite” da máquina pública e com isso destruirmos nossa capacidade de criar rupturas? Quando o “fardo” de ser marginal se tornará em orgulho de luta?
            Não como resposta, mas talvez como encaminhamento, arriscamos dizer que a influência do olhar da criança possa ser nosso horizonte. Se o que buscarmos for uma prática política que se faz sem líderes, sem representantes, sem aparelhos, sem instituições, sem burocracias e sem receitas, seria com a lógica da criança e por meio dela, com a lógica da ruptura que poderíamos continuar a caminhar.
            A potência da ingenuidade e da entrega para o abismo como modus operandi político. Ingenuidade no sentido de movimentar-se para dentro de uma situação (sufixo dade) de franqueza extrema (ingênuo). No âmbito ético da palavra, daquele que encara as relações sem culpa, sem juízo de valor, sem a pretensão do acerto, mas que também não é tolo, nem imaturo e muito menos apolítico. A ação política como criação e invenção. E de criação e invenção as crianças têm muito a nos oferecer.
            Por fim, que possamos fortalecer os aspectos de ruptura aqui apresentados e que continuemos a caminhar em busca de novas políticas, que só podem ser feitas através de um questionamento crítico. Questionamento este, amalgamado sempre pela visão, especial e única, da criança.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:
COELHO, Frederico. “Eu, brasileiro, confesso minha culpa e meu pecado: cultura marginal no Brasil das décadas de 1960 e 1970”. Pág. 19. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2010.
FOUCAULT, Michel. “Vigiar e punir: nascimento da prisão”. 20ª edição. Petrópolis: Editora Vozes, 1999.
LARRAURI, Maite. “O desejo segundo Gilles Deleuze”. São Paulo: Ciranda Cultural, 2009.
LARROSA, Jorge. “O ensaio e a escrita acadêmica”. In: Educação e Realidade. Pág. 101 a 115. Jul/dez 2003.
________. “Notas sobre a experiência e o saber da experiência”. Universidade Estadual de Campinas, Departamento de Lingüística. Pág. 21. Disponível em: http://www.scielo.br/pdf/
rbedu/n19/n19a02.pdf
MARTON, Scarlett. “Foucault, Deleuze e Derrida frente à crise”. Disponível em: http://youtu.be/vyPTweS6Cvo. Acesso em: 26 jul. 2014.
NASCIMENTO, Maria Letícia Barros Pedroso. “A infância como fenômeno social”. Cultura e Sociologia da Infância. Pág.70 a 82. Edição Especial Revista da Educação, São Paulo 2013.

RANCIÈRE, Jacques. “O mestre ignorante – cinco lições sobre a emancipação intelectual”. Pág. 44. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2011.

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