O PIÁ COMO UMA RUPTURA
ARTÍSTICO-PEDAGÓGICA NA CIDADE DE SÃO PAULO
Bruno
César Lopes - Coordenador Regional Sul e Centro
(Esse texto foi encaminhado para a Revista Piapuru 2014 com a proposta de verbete "ruptura")
Ao longo de seus seis anos de
existência, podemos afirmar com certa ousadia que o PIÁ é um programa público
de iniciação artística de ruptura pedagógica na cidade de São Paulo. Antes de
apresentar os elementos que compõem tal característica, buscaremos levantar a
explicação do que entendemos como ruptura.
Herdamos dos chamados pensadores
rebeldes, como Derrida, Deleuze e Foucault a compreensão de que talvez não seja
mais possível uma receita política de transformação por inteiro da sociedade,
mas que vivemos um momento em que podemos transgredir
aquilo que é imposto pelo sistema ou pelo mercado. (MARTON) Será por meio desse
conceito de trangressão que iremos partir
e que explicaremos melhor adiante, relacionando-o com a idéia de ruptura.
Exercitar uma política de
transgressão, ou um viável exercício de ações de rupturas, parece ser a sina
daqueles que estão dispostos a lutar contra um sistema que tem como objetivo
final o lucro, a propriedade privada e a meritocracia. Como criar então um
programa público de reflexão e criação de processos criativos em meio a este
contexto?
A condição de nós, artistas,
professores, estudantes, pedagogos, começa a ser então a de cidadãos criadores
de fissuras na cidade. Aqueles que farão de suas ações artísticas e cidadãs um
exercício constante de ruptura dos velhos paradigmas de organização social,
pedagógica e educacional, num constante diálogo ético entre suas práticas e
seus discursos.
E isso não parece ser nada fácil de
construir!
A ruptura aqui como uma maneira de
desorganizar, de romper com as estruturas dominantes, de criar novas formas de
organização, de repensar a relação de ensino-aprendizagem e, sobretudo de estar
em constante movimento filosófico longe da cristalização conservadora. Ou ainda,
numa perspectiva foucaltiana, a ruptura como uma maneira de desarticular o
poder instaurado sobre os nossos corpos; de diluir a disciplina, essa arte de
dispor em fila e repartir corpos; de “desindividualizar” os corpos; de
desestruturar a idéia de controle social; de desregulamentar o tempo da ação
humana (FOUCAULT). Definitivamente é preciso criar rupturas. Numa tentativa de
compor forças para quem sabe obter um aparelho eficiente de construção de si e
do entorno. (FOUCAULT)
Diante desse prisma, entender o PIÁ
como um programa de ruptura passa a ser não apenas o exercício diário de um
artista educador, mas principalmente o exercício político da arte-educação.
Encontrar quais são esses pontos de ruptura, descrevê-los, reorganizá-los, afirmá-los
ou não, deve ser uma das importantes ações a serem feitas, e que buscaremos,
portanto, fazer neste texto.
Ao olharmos historicamente para
outros programas públicos de iniciação artística voltados para a criança, é
possível notar a constante preocupação com o tecnicismo da arte, com o produto
final e com a idéia da infância como uma “passagem” da vida numa negação dos
potentes quereres das crianças. Nesse sentido um dos primeiros elementos de
ruptura do PIÁ vai ser pensar A infância
como um grupo social capaz de mudanças históricas, políticas e artísticas. A
infância para o PIÁ não será necessariamente uma fase menor da vida, numa visão
hierárquica de desenvolvimento humano. A infância vista como uma “categoria na
estrutura social que manifesta variações históricas e interculturais” (NASCIMENTO)
As crianças são membros da sociedade, agem socialmente
nas famílias, nas escolas, nas creches, e em outros espaços, fazem parte do
mundo, o incorporam e, ao mesmo tempo, o influenciam e criam significados a
partir dele. (NASCIMENTO)
Em consonância com a maneira própria
de a criança agir no mundo é que o PIÁ vai buscar no ato de brincar sua
potência na relação “ensino e arte”. A
busca e a afirmação do brincar como uma conduta artístico-pedagógica. O
brincar como “fim” e não como “meio”, ou seja, fazer do brincar a própria
instauração do processo criativo e não um meio para se chegar na “obra de
arte”. Inverter o olhar sobre o brincar dando a ele os motivos propulsores da
iniciação artística, inclusive ampliando a ideia do brincar não apenas com uma
relação direta a brincadeira, mas o brincar enquanto condição e estado de
relação com o outro ou com as coisas ou ainda com os objetos; como a
materialização da expressividade não linear da criança, da ação do desejo em
movimento, de um “devir” deleuzeano (LARRAURI). O brincar vai ser atitude
uníssona nas atividades de todas as equipes espalhadas pela cidade no PIÁ. Além
disso, o brincar vai reunir em si a transdisciplinariedade proposta pelo
Programa, na “mistura” do Teatro, da Dança, das Artes Visuais e da Música. Não
é possível determinar no brincar uma das quatro categorias das artes. E um dos
focos de atuação do PIÁ é deixar cada vez mais borrada a linha que define as
linguagens, numa tentativa de rediscutir os modos de categorias das artes que a
academia historicamente segmentou. E nisso mais um elemento de ruptura surge: A iniciação artística por meio da
transdisciplinariedade. Um programa público que aposta na iniciação
artística com crianças por meio da não definição do que seria “teatro”,
“dança”, “música”, “artes visuais” ou um jeito único de pensar arte. Um
programa público que aposta na discussão contemporânea do que é fazer e
produzir processos criativos contaminados por todas as potencialidades
artísticas pré-definidas.
Por pensar a arte contemporânea com
crianças de maneira dinâmica, arriscada, disposta ao erro e ao abismo, o PIÁ
terá como pressuposto: O artista educador
como um constante pesquisador. Será aquele artista disposto a problematizar
o presente para o presente. Aquele que explora o caminho ao mesmo tempo em que
caminha. (LARROSA). Não será o detentor do saber nem da razão, mas aquele que duvida
dos métodos prontos, que olha sua prática como uma pesquisa em movimento. Que se
pergunta freqüentemente de maneira “ignorante” as perguntas: “O que vês? O que
pensas disso? O que fazes com isso?” (RANCIÈRE). Por fim, um pesquisador que
tem sua atenção voltada para o diálogo-triângulo: adulto (eu), criança e adulto
(o outro artista-educador).
Esse formato “triângulo” é também
considerado aqui uma das rupturas nos sistemas de iniciação artística dos
programas espalhados na cidade. Portanto, é preciso entender como ruptura As características técnicas do programa.
Ou seja, entender como disruptivos em si os próprios mecanismos interiores do
programa, que são: uma equipe composta por quatro artistas em cada equipamento;
a dupla de artistas-educadores (todas as turmas são orientadas por dois
artistas educadores ao mesmo tempo); a divisão de faixa-etária (turmas de 5 a 7
anos, 8 a 10 anos e 11 a 14 anos); o número razoável de crianças por turmas (de
15 a 25 crianças por turma); as reuniões pedagógicas semanais; e a função do
coordenador-artista-educador (um dos quatro artistas educadores da equipe tem
como função a coordenação da equipe em articulação com o equipamento e com a
Secretaria de Cultura).
A manutenção e garantia dessas
características técnicas são fundamentais para o fortalecimento do Programa
como ruptura. Será preciso ao longo dos anos um olhar delicado sobre essas
formas de organização, uma vez que alguma tentativa de desestruturar esses
meios pode vir a ser um risco na potência do Programa. Ou seja, o entendimento
de que ainda que estejamos sendo potência de ruptura é necessário estarmos com
uma base de um aparelho consistente, que seja, sobretudo, reavaliado e
reelaborado pelos próprios fazedores desta ruptura: os artistas-educadores do
Programa.
Outra ruptura visível é A organização pedagógica do programa realizada
por meio de sua experiência, ou seja, uma busca constante de uma sistematização
que nasce a partir do fazer, da prática. E que mesmo sendo “sistematizada” não tende
a ser engessada. Um olhar que vai criar os modos teóricos da iniciação
artística a partir da experiência, na relação com a criança, com o equipamento
público e com seus vizinhos. “Experiência” no sentido que Larrosa nos traz: “A
experiência é o que nos passa, o que nos acontece, o que nos toca.” (LARROSA).
O PIÁ vai, portanto, ter a audácia de, ainda que com referências muito claras
como a EMIA (Escola Municipal de Iniciação Artística), buscar entender sua
organização pedagógica por meio de sua própria experiência. E diferente do
pensamento hegemônico, sobretudo na Educação, que necessita urgentemente de
cartilhas e normas, o PIÁ mais uma vez cria uma ruptura ao apostar no
desconhecido.
Vale salientar nessa etapa que a
disposição em criar uma sistematização pedagógica a partir de uma idéia de
ruptura, acaba criando por si só uma linha de tensão, na medida em que
“sistematizar” e “causar ruptura” parecem forças opostas. Mas a defesa que
propomos aqui é justamente a busca por este desafio dialético e construtivo
para o próprio Programa, como numa disputa entre dois pólos de um imã com
forças de atração e repulsão num campo magnético.
Além disso, a atuação do programa
nas bordas da cidade faz dele uma proposta de descentralização e irradiação de
arte na cidade. Em qual espaço geográfico na cidade estamos atuando? A criança e a periferia como potencialidades
artístico-políticas. A afirmação do PIÁ na periferia constitui já em si uma
ruptura na medida em que democratiza o dinheiro público para uma parcela da
sociedade que é forçosamente distanciada, geograficamente e socialmente, dos
acessos artísticos. Com isso, a junção criança e periferia pode vir a se
transformar numa potência artística, que deflagre a normalidade com que se
tornou a falta de programas públicos para infância, e que deixe de ser apenas
assistencialista, mas que faça da própria criação artística seu instrumento de
luta e denuncia do status quo
vigente.
Por essa ótica periférica,
apresentamos então o último elemento de ruptura já pesquisado, causador das
maiores discussões. Aproveitamos para encaminharmos também para algumas
reflexões e desafios a serem seguidos pelo PIÁ.
Um programa marginalizado
dentro de uma instituição pública. Marginalizado no
sentido daquele que esta “à margem”. À margem do sistema, à beira dos programas
já bem estruturados e bem financiados. Marginal no sentido de ser desviante em
relação a tudo o que se pretende oficial. “De ser o representante de
descaminhos culturais e políticos” (COELHO). A ação-piá que incomoda, que
muitas vezes perturba a “paz” que reina nos equipamentos públicos, que assim
como a criança, um PIÁ que incomoda, que pergunta, que questiona, que não pára.
Mas como é possível ser marginal dentro da instituição pública? Como é
possível, por exemplo, ser marginal dentro de uma Fundação, uma ONG
(Organização Não Governamental) ou uma OSCIP (Organização da Sociedade Civil de
Interesse Público)? Esse talvez seja o maior dilema atual do Programa.
Um
programa que recebe dinheiro público para problematizar o próprio uso público.
Um texto como este dentro da própria Revista do programa. O Estado que
proporciona uma política contra sua própria corrente. Até quando teremos essa possibilidade
de se auto criticar de forma legítima e aberta? Como conviver com essa
dialética? Como conviver com as incoerências postas dia-a-dia em nossos
fazeres? Como não se institucionalizar dentro da máquina pública?
Para
sermos um programa de ruptura estaríamos fadados a sermos um programa marginal?
Teríamos que estar sempre à margem, na borda, na periferia do sistema, para
continuarmos criando rupturas? Qual o risco que corremos de conquistar o
“aceite” da máquina pública e com isso destruirmos nossa capacidade de criar
rupturas? Quando o “fardo” de ser marginal se tornará em orgulho de luta?
Não como resposta, mas talvez como
encaminhamento, arriscamos dizer que a influência do olhar da criança possa ser
nosso horizonte. Se o que buscarmos for uma prática política que se faz sem líderes,
sem representantes, sem aparelhos, sem instituições, sem burocracias e sem
receitas, seria com a lógica da criança e por meio dela, com a lógica da
ruptura que poderíamos continuar a caminhar.
A potência da ingenuidade e da entrega para o abismo como modus operandi político. Ingenuidade no sentido de movimentar-se
para dentro de uma situação (sufixo dade) de franqueza extrema (ingênuo). No
âmbito ético da palavra, daquele que encara as relações sem culpa, sem juízo de
valor, sem a pretensão do acerto, mas que também não é tolo, nem imaturo e
muito menos apolítico. A ação política como criação e invenção. E de criação e
invenção as crianças têm muito a nos oferecer.
Por fim, que possamos fortalecer os
aspectos de ruptura aqui apresentados e que continuemos a caminhar em busca de novas
políticas, que só podem ser feitas através de um questionamento crítico. Questionamento
este, amalgamado sempre pela visão, especial e única, da criança.
REFERÊNCIAS
BIBLIOGRÁFICAS:
COELHO,
Frederico. “Eu, brasileiro, confesso minha culpa e meu pecado: cultura marginal
no Brasil das décadas de 1960 e 1970”. Pág. 19. Rio de Janeiro: Civilização
Brasileira, 2010.
FOUCAULT,
Michel. “Vigiar e punir: nascimento da prisão”. 20ª edição. Petrópolis: Editora
Vozes, 1999.
LARRAURI,
Maite. “O desejo segundo Gilles Deleuze”. São Paulo: Ciranda Cultural, 2009.
LARROSA,
Jorge. “O ensaio e a escrita acadêmica”. In: Educação e Realidade. Pág. 101 a
115. Jul/dez 2003.
________.
“Notas sobre a experiência e o saber da experiência”. Universidade Estadual de
Campinas, Departamento de Lingüística. Pág. 21. Disponível em:
http://www.scielo.br/pdf/
rbedu/n19/n19a02.pdf
rbedu/n19/n19a02.pdf
MARTON,
Scarlett. “Foucault, Deleuze e Derrida frente à crise”. Disponível em: http://youtu.be/vyPTweS6Cvo.
Acesso em: 26 jul. 2014.
NASCIMENTO,
Maria Letícia Barros Pedroso. “A infância como fenômeno social”. Cultura e Sociologia da Infância. Pág.70
a 82. Edição Especial Revista da Educação, São Paulo 2013.
RANCIÈRE,
Jacques. “O mestre ignorante – cinco lições sobre a emancipação intelectual”.
Pág. 44. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2011.
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