segunda-feira, 17 de novembro de 2014

Nosso desafio de errar

                                                                                      Stella Damaris Bettone
                                                             Biblioteca Padre José de Anchieta
                                                                                                     
Liberdade, autoridade, autoritarismo, intervenção, provocação, disciplina, limite, hierarquia, frustração, expectativa, experiência, coletivo, indivíduo, acerto e erro.

Todas essas palavras, conceitos e valores me vieram à cabeça para escrever essa reflexão, porém essas palavras-chaves me surgiram após um encontro com a turma de 8 a 10 anos, uma turma com 16 alunos, cada qual com suas características, valores sendo construídos a partir das influências que recebem todos os dias tanto da televisão, como da escola, das redes sociais, da família, dos amigos e claro, acredito com certa ilusão, desse encontro semanal no PIÁ.
O fato é que um dia resolvemos realizar um encontro onde iríamos propor “o não - propor”. Nossa idéia era a de que eles fizessem o que quisessem nesse encontro e simplesmente fizemos uma roda e falamos isso a eles: “Hoje vocês irão fazer o que quiserem”. A comoção foi geral, senti que eles gostaram muito da proposta. E assim passamos a observar as atividades que cada um, sozinho ou em grupo, resolveu desenvolver durante essas 3 horas seguintes.
Um grupo grande possuía um “líder”, eles se juntaram para criar uma cena de teatro, porém em poucos minutos de conversa esse líder passou a bater nas meninas e infelizmente tive que intervir. Não consigo admitir violência de qualquer espécie em qualquer turma. E após minha intervenção, deixei que continuassem a criar a cena. Já num outro espaço da biblioteca dois alunos se uniram para pintar uma árvore que fica no centro do pátio da biblioteca. Essa atividade acabou chamando a atenção desse grupo maior que dispersou e começaram também a pintar a árvore e o chão, depois disso alguns começaram a jogar bola e houve uma maior divisão do grupo em atividades diferentes escolhidas por cada um.
Após certo tempo um aluno veio me falar se iria ter o lanche e eu disse que eles estavam livres para decidir se era o momento do lanche, se haveria lanche ou não e então esse passou a chamar e avisar a todos sobre o lanche.
Esse momento me chamou a atenção e de certa forma me entristeceu, formaram-se grupos de três e dois alunos, separados pela biblioteca para comerem separados, então novamente não consegui manter a proposta e fiz mais uma intervenção chamando todos para tomarem o lanche juntos (desde o início dos encontros temos esse momento do lanche e minha chateação foi em ver que a ação deles era muito parecida com a que eles têm na escola, onde tomam o lanche em turmas separadas, as vezes sozinhos, nesse momento senti grande frustração por sentir que não conseguimos registrar neles um hábito tão marcante do Piá: o momento do lanche coletivo. Pedi que pegassem os tecidos e que se unissem para o lanche e continuei a observar de longe.
Após o lanche senti que muitos não sabiam o que fazer, o que propor e mais um fato me deixou intrigada, os materiais usados para a pintura da árvore ficaram espalhados pelo chão, tintas abertas e pincéis sujos, o tecido do lanche no chão e muito lixo espalhado, então infelizmente fiz mais uma intervenção de forma amena, alertando a eles que guardassem o que utilizaram, pois aquele material era usado também pelas outras turmas e que observassem o pátio onde estavam os tecidos e o lixo deixado por eles. Meu alerta foi em vão, tudo continuou espalhado e iniciaram-se as falas: “eu não usei...”, “ele usou por último..”, “ eu não tirei do lugar...” e então chamei a todos para uma conversa, que acabou transformando-se num sermão desses que muitas vezes ouvimos de nossos professores na escola. Lamentávelmente só me dei conta disso dias depois, em que passei refletindo sobre o ocorrido. Meu discurso era de certa revolta com a dificuldade que eles tiveram em lidar com a liberdade proposta, com a necessidade e hábito criado de receberem ordens, de não conseguirem se organizar sem uma voz de comando e pedi que refletissem sobre liberdade, autonomia e respeito com o próximo. Discurso falho, beirando o fracasso, apenas contribui para dar certo clima pesado ao encontro e após esse momento eles resolveram criar um show de talentos em que fiquei apenas observando já muito decepcionada comigo mesma.
O resultado de meu discurso de revolta, soando “sermão de professor de escola”, veio na semana seguinte, dos dezesseis alunos, apenas seis vieram para o encontro. Fato esse que me entristeceu ainda mais, porém me deu provas de que eu havia cometido uma falha com essa turma. Infelizmente meus valores falaram mais alto, minhas expectativas e decepções me fizeram atropelar o desenrolar da proposta.
E partir desses erros passei a refletir sobre essa relação de liberdade, poder e a necessidade ou hábito criado entre as pessoas de receberem ordens, de que era a primeira vez que eles passavam por aquela situação em grupo e de que ninguém fez nada certo ou errado. Eles apenas agiram conforme seus valores, instintos, vontades diante de uma proposta nova e o novo traz sempre desafios, medos, frustrações... A experimentação... e experimentar nada mais é do que se permitir errar muitas e muitas vezes até que se encontre ou ache que encontrou um caminho saudável, positivo, construtivo. Assim acontece nas experiências de química, por exemplo, o cientista vai misturando substâncias e elementos para tentar alcançar seu objetivo e nessa situação o erro é um grande fator do aprendizado.
E pesquisando na internet encontrei esse trecho de um texto falando sobre a autonomia na infância: “Na obra Sobre a Pedagogia, Kant (1996b, p. 30) fala sobre a importância de a ação educativa seguir a experiência. A educação não deve ser puramente mecânica e nem se fundar no raciocínio puro, mas deve apoiar-se em princípios e guiar-se pela experiência (cf. idem, p. 29). A partir da pedagogia kantiana, podemos dizer que uma educação que vise formar sujeitos autônomos deve unir lições da experiência e os projetos da razão. Isso porque no caso de basear-se apenas no raciocínio puro, estará alheia à realidade e não contribuirá para a superação das condições de heteronomia e, no caso de guiar-se apenas pela experiência, não haverá autonomia, pois para Kant a autonomia se dá justamente quando o homem segue a lei universal que sua própria razão proporciona.”
Acredito que meu erro inicial foi o da expectativa, achei que eles iriam realizar muitas atividades que julgo construtivas, desafiadoras, diferentes ou até iguais as que realizamos com eles durante esses seis meses de encontros e então a maior decepção veio com a falta de respeito com o próximo, a falta de consciência, de que deixar os materiais e lixo no chão da biblioteca é uma falta de respeito com o próximo e de que eu não deveria ter que alertá-los disso, pois são valores que eu criei com o passar dos anos de convivência coletiva e me foi dado na convivência familiar, porém percebi que esses valores podem ser construídos dia após dia, de forma temperada, sem sermões, autoritarismo ou agressividade. É uma semente que se entrega a uma criança e podemos tentar ensiná-la a cuidar. Se ela irá ou não fazê-lo é algo que não podemos controlar. Acredito que a essência está em não desistir e insistir nesse movimento, tantas vezes quantas forem possíveis. Afinal como disse, estamos lidando com valores que recebem influências diárias de muitos focos de informação e costumes.
Nesse mesmo texto encontrei outro trecho que achei bem interessante sobre como se faz o caminho do pensamento autônomo: "Pensar por si mesmo significa procurar em si mesmo a suprema pedra de toque da verdade (isto é, em sua própria razão); e a máxima que manda pensar sempre por si mesmo é o esclarecimento” (KANT, 2005b, p. 61)
Outro ponto que refleti muito é sobre a necessidade, não sei se criada ou se inerte ao ser humano, que vive em sociedade, de receber ordens, a necessidade da hierarquia, para que se produza, para que se desenvolvam atividades, para que se mantenha o respeito pelo próximo. Sobre o processo de se criar responsabilidade por seus atos perante o mundo, perante o próximo. Pensei e li muitos pontos de vista sobre esse assunto que julgo ainda muito obscuro em minha percepção de mundo e de viver em sociedade. Então deixo aqui alguns questionamentos que me vem à mente e que ainda não tenho as respostas sobre esse tema:
Criou-se no homem a necessidade de relações hierárquicas?
Essa relação tem diretas conexões com o sistema capitalista em que vivemos?
O quanto reproduzimos em nossas relações educador- aluno os modelos da escola que nos foram oferecidos?
O ser humano, em sua pura essência, conseguiria se organizar em grupos sem que houvesse lideranças?

“O homem está condenado a ser livre, condenado porque ele não criou a si, e ainda assim é livre. Pois tão logo é atirado ao mundo, torna-se responsável por tudo que faz.”
                                                                                             Jean Paul Sartre

Links:
http://www.macetesdemae.com/2013/11/a-importancia-da-autonomia-na-infancia.html
http://www.pucrs.br/edipucrs/online/autonomia/autonomia/2.5.html






     




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