Stella Damaris Bettone
Biblioteca Padre José de Anchieta
Liberdade, autoridade, autoritarismo, intervenção, provocação, disciplina, limite, hierarquia, frustração, expectativa, experiência, coletivo, indivíduo, acerto e erro.
Todas
essas palavras, conceitos e valores me vieram à cabeça para escrever essa reflexão,
porém essas palavras-chaves me surgiram após um encontro com a turma de 8 a 10
anos, uma turma com 16 alunos, cada qual com suas características, valores
sendo construídos a partir das influências que recebem todos os dias tanto da
televisão, como da escola, das redes sociais, da família, dos amigos e claro, acredito
com certa ilusão, desse encontro semanal no PIÁ.
O
fato é que um dia resolvemos realizar um encontro onde iríamos propor “o não -
propor”. Nossa idéia era a de que eles fizessem o que quisessem nesse encontro
e simplesmente fizemos uma roda e falamos isso a eles: “Hoje vocês irão fazer o
que quiserem”. A comoção foi geral, senti que eles gostaram muito da proposta. E
assim passamos a observar as atividades que cada um, sozinho ou em grupo,
resolveu desenvolver durante essas 3 horas seguintes.
Um
grupo grande possuía um “líder”, eles se juntaram para criar uma cena de
teatro, porém em poucos minutos de conversa esse líder passou a bater nas
meninas e infelizmente tive que intervir. Não consigo admitir violência de
qualquer espécie em qualquer turma. E após minha intervenção, deixei que
continuassem a criar a cena. Já num outro espaço da biblioteca dois alunos se
uniram para pintar uma árvore que fica no centro do pátio da biblioteca. Essa
atividade acabou chamando a atenção desse grupo maior que dispersou e começaram
também a pintar a árvore e o chão, depois disso alguns começaram a jogar bola e
houve uma maior divisão do grupo em atividades diferentes escolhidas por cada
um.
Após
certo tempo um aluno veio me falar se iria ter o lanche e eu disse que eles
estavam livres para decidir se era o momento do lanche, se haveria lanche ou
não e então esse passou a chamar e avisar a todos sobre o lanche.
Esse
momento me chamou a atenção e de certa forma me entristeceu, formaram-se grupos
de três e dois alunos, separados pela biblioteca para comerem separados, então
novamente não consegui manter a proposta e fiz mais uma intervenção chamando
todos para tomarem o lanche juntos (desde o início dos encontros temos esse
momento do lanche e minha chateação foi em ver que a ação deles era muito
parecida com a que eles têm na escola, onde tomam o lanche em turmas separadas,
as vezes sozinhos, nesse momento senti grande frustração por sentir que não
conseguimos registrar neles um hábito tão marcante do Piá: o momento do lanche
coletivo. Pedi que pegassem os tecidos e que se unissem para o lanche e
continuei a observar de longe.
Após
o lanche senti que muitos não sabiam o que fazer, o que propor e mais um fato
me deixou intrigada, os materiais usados para a pintura da árvore ficaram
espalhados pelo chão, tintas abertas e pincéis sujos, o tecido do lanche no
chão e muito lixo espalhado, então infelizmente fiz mais uma intervenção de
forma amena, alertando a eles que guardassem o que utilizaram, pois aquele
material era usado também pelas outras turmas e que observassem o pátio onde
estavam os tecidos e o lixo deixado por eles. Meu alerta foi em vão, tudo
continuou espalhado e iniciaram-se as falas: “eu não usei...”, “ele usou por último..”,
“ eu não tirei do lugar...” e então chamei a todos para uma conversa, que
acabou transformando-se num sermão desses que muitas vezes ouvimos de nossos
professores na escola. Lamentávelmente só me dei conta disso dias depois, em
que passei refletindo sobre o ocorrido. Meu discurso era de certa revolta com a
dificuldade que eles tiveram em lidar com a liberdade proposta, com a
necessidade e hábito criado de receberem ordens, de não conseguirem se organizar
sem uma voz de comando e pedi que refletissem sobre liberdade, autonomia e respeito
com o próximo. Discurso falho, beirando o fracasso, apenas contribui para dar certo
clima pesado ao encontro e após esse momento eles resolveram criar um show de
talentos em que fiquei apenas observando já muito decepcionada comigo mesma.
O
resultado de meu discurso de revolta, soando “sermão de professor de escola”,
veio na semana seguinte, dos dezesseis alunos, apenas seis vieram para o
encontro. Fato esse que me entristeceu ainda mais, porém me deu provas de que
eu havia cometido uma falha com essa turma. Infelizmente meus valores falaram
mais alto, minhas expectativas e decepções me fizeram atropelar o desenrolar da
proposta.
E
partir desses erros passei a refletir sobre essa relação de liberdade, poder e a
necessidade ou hábito criado entre as pessoas de receberem ordens, de que era a
primeira vez que eles passavam por aquela situação em grupo e de que ninguém
fez nada certo ou errado. Eles apenas agiram conforme seus valores, instintos,
vontades diante de uma proposta nova e o novo traz sempre desafios, medos, frustrações...
A experimentação... e experimentar nada mais é do que se permitir errar muitas
e muitas vezes até que se encontre ou ache que encontrou um caminho saudável,
positivo, construtivo. Assim acontece nas experiências de química, por exemplo,
o cientista vai misturando substâncias e elementos para tentar alcançar seu
objetivo e nessa situação o erro é um grande fator do aprendizado.
E pesquisando na internet encontrei esse trecho de um texto
falando sobre a autonomia na infância: “Na obra Sobre a Pedagogia, Kant (1996b,
p. 30) fala sobre a importância de a ação educativa seguir a experiência. A
educação não deve ser puramente mecânica e nem se fundar no raciocínio puro,
mas deve apoiar-se em princípios e guiar-se pela experiência (cf. idem, p. 29).
A partir da pedagogia kantiana, podemos dizer que uma educação que vise formar
sujeitos autônomos deve unir lições da experiência e os projetos da razão. Isso
porque no caso de basear-se apenas no raciocínio puro, estará alheia à
realidade e não contribuirá para a superação das condições de heteronomia e, no
caso de guiar-se apenas pela experiência, não haverá autonomia, pois para Kant
a autonomia se dá justamente quando o homem segue a lei universal que sua
própria razão proporciona.”
Acredito
que meu erro inicial foi o da expectativa, achei que eles iriam realizar muitas
atividades que julgo construtivas, desafiadoras, diferentes ou até iguais as
que realizamos com eles durante esses seis meses de encontros e então a maior
decepção veio com a falta de respeito com o próximo, a falta de consciência, de
que deixar os materiais e lixo no chão da biblioteca é uma falta de respeito
com o próximo e de que eu não deveria ter que alertá-los disso, pois são
valores que eu criei com o passar dos anos de convivência coletiva e me foi
dado na convivência familiar, porém percebi que esses valores podem ser
construídos dia após dia, de forma temperada, sem sermões, autoritarismo ou
agressividade. É uma semente que se entrega a uma criança e podemos tentar
ensiná-la a cuidar. Se ela irá ou não fazê-lo é algo que não podemos controlar.
Acredito que a essência está em não desistir e insistir nesse movimento, tantas
vezes quantas forem possíveis. Afinal como disse, estamos lidando com valores
que recebem influências diárias de muitos focos de informação e costumes.
Nesse
mesmo texto encontrei outro trecho que achei bem interessante sobre como se faz
o caminho do pensamento autônomo: "Pensar por si
mesmo significa procurar em si mesmo a suprema pedra de toque da verdade (isto
é, em sua própria razão); e a máxima que manda pensar sempre por si mesmo é o
esclarecimento” (KANT, 2005b, p. 61)
Outro
ponto que refleti muito é sobre a necessidade, não sei se criada ou se inerte
ao ser humano, que vive em sociedade, de receber ordens, a necessidade da
hierarquia, para que se produza, para que se desenvolvam atividades, para que
se mantenha o respeito pelo próximo. Sobre o processo de se criar
responsabilidade por seus atos perante o mundo, perante o próximo. Pensei e li
muitos pontos de vista sobre esse assunto que julgo ainda muito obscuro em
minha percepção de mundo e de viver em sociedade. Então deixo aqui alguns
questionamentos que me vem à mente e que ainda não tenho as respostas sobre
esse tema:
Criou-se
no homem a necessidade de relações hierárquicas?
Essa
relação tem diretas conexões com o sistema capitalista em que vivemos?
O
quanto reproduzimos em nossas relações educador- aluno os modelos da escola que
nos foram oferecidos?
O
ser humano, em sua pura essência, conseguiria se organizar em grupos sem que houvesse
lideranças?
“O homem está condenado a ser livre, condenado porque ele não criou a
si, e ainda assim é livre. Pois tão logo é atirado ao mundo, torna-se
responsável por tudo que faz.”
Jean Paul Sartre
Links:
http://www.macetesdemae.com/2013/11/a-importancia-da-autonomia-na-infancia.html
http://www.pucrs.br/edipucrs/online/autonomia/autonomia/2.5.html
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