Por Adriano Castelo
Branco
O
objetivo deste ensaio é pontuar e relacionar algumas práticas de instauração de
processos criativos e como estes se caracterizam num fazer artístico-pedagógico
referente aos encontros entre artistas
educadores e crianças ambos participantes do Programa de Iniciação Artística da
Secretaria Municipal de Cultura do Estado de São Paulo. Considerando que estes
“encontros” são um acontecimento dialógico entre artistas e crianças, onde se
busca uma relação criativa baseada na troca do desejo poético de cada um, e do
livre exercício da imaginação, e que procura potencializar e desenvolver
artisticamente os olhares e as habilidades lúdicas, imagéticas e práticas, com
o intuito de estabelecer processos artísticos autônomos e originais. Tendo esta
definição como princípio, faz-se necessário então uma ação ou um conjunto de
ações práticas que ative este acontecimento. Exige um modo de atuação e
percepção dos artistas e das crianças para que este encontro os provoquem em
todos os sentidos, considerando o risco e o erro como valores constituintes
para o desenvolvimento da experiência, e por conseguinte, agentes bifurcadores de
descobertas múltiplas. Considerando também este encontro como um veículo
onde transportamos nossa subjetividade para além das “habitudes” cotidianas e
onde promovemos e criamos nossa própria energia de propulsão, proponho uma analogia
entre o fazer artístico-pedagógico do PIÁ, este Modus Operandi e três Meios de
Transporte: o Trem, a Jangada e a Espaçonave.
O Modo Trem
Este é um modo em que há uma rota propositadamente
planejada e um caminho fixo já estabelecido, ou seja, os trilhos concretos por
onde o veículo trafega. Neste sentido, a condução do encontro é pautada por uma
gama de repertórios sequenciais pré-definidos, onde compreende toda uma
dinâmica dos jogos, sejam eles corporais, teatrais, visuais, etc., assim como o
universo das brincadeiras e dos brinquedos populares da cultura da infância. A
ativação desse modo se dá pela força motriz do sujeito propositivo deste tipo
de repertório, onde os passageiros são destinados a estarem ligados entre si e a
participarem desta movimentação linear sobre os
trilhos. A orientação traçada, a princípio, independe de
mudanças climáticas e emocionais dos envolvidos. Algumas intervenções podem até
ocasionar a parada do veículo, mas o trem só continua se for nos trilhos, pois
o diálogo criativo permanece circunscrito a transitar entre os vagões e a olhar
pelas janelinhas a paisagem enquadrada. Nesta mecânica lúdica, o veículo segue viagem
através de reproduções de percursos entre chegadas e partidas, e através dos
impulsos fumegantes das Marias Fumaças em suas pluralidades de ânimos.
O Modo Jangada
Neste modo, a constituição do veículo se dá pelo estado de
deriva das percepções de cada tripulante e pelo estado de flutuação das ideias;
e consequentemente, das ações. É usado em sua construção toda intervenção
causada pelas intempéries do ambiente e pelos próprios navegantes, constituindo
uma rede de relações a partir da reciprocidade dos afetos, onde relações
complexas acontecem em simultâneo e resultam numa dinâmica caótica e potente. Estando
o veículo em parceria destas intervenções de forças ocasionais diversas, sejam
elas ambientais, humanas ou materiais, é necessário aos participantes uma
disposição atenta de todos seus sentidos e de uma artesania inventiva, exigindo
um estado de prontidão aguçado capaz de perceber as múltiplas sugestões de
caminhos a percorrer. Sendo assim, devido a esta impermanência de direções
estáveis, todos os navegantes se tornam colaboradores para a criação de novas
rotas de pesquisas. Através dos fenômenos emergentes da própria situação, é que
o veículo manifesta suas ilhas, habitáveis de experiências e cumplicidades,
onde encontramos momentos de sábios improvisos e descobertas; e assim, a jangada
aproveita a maré inspiradora para navegar nas correntes do mar da criação e
embarcar sua direção para onde os bons ventos sopram.
O Modo Espaçonave
Para empreender uma viajem neste modo, toda força propulsora
do veículo depende exclusivamente de fatores determinantes,
como a apropriação das pessoas envolvidas no processo de decolagem e de seus
empenhos colaborativos para que o ideal em comum alce voo (a decolagem é a fase
em que geralmente se utiliza a maior potência dos motores). Sendo esta fase
inicial bem sucedida, o veículo pode aspirar em cumprir seus objetivos à que
foi destinado: romper a camada habitual conhecida e traçar novos rumos
apontados pela imaginação, expandindo nossas percepções espaciais, materiais e
corporais, e assim criar um estado de relação encantada com o ambiente e seu
entorno. Neste modo há uma constante transmutação da realidade, pois toda
tripulação é tomada por circunstâncias poéticas que coabitam seus modos de agir
e pensar. Permanecendo neste modo, é possível viajar pela infinidade de
planetas habitáveis e não habitáveis, encontrar seres fantásticos, cultivar
realidades paralelas, vestir-se à maneira das entidades, enfim; quando a
sustentação do veículo se dá pela constante retroalimentação na dinâmica do
acontecimento poético, o piloto automático ganha vida, e se despede da maneira
prosaica de portar-se diante das estrelas.
O modo
Transformers
A intenção deste
modo é perceber e ocasionar fatores disparadores que favoreçam uma mutabilidade
dos modos de se transportar acima citados: o trem, a jangada e a espaçonave. No
modo transformers, estes meios de transporte são considerados estados
momentâneos de definição dos processos criativos no encontro entre artistas e
crianças. Por não terem um espaço-tempo definido dentro do encontro, estes
meios de transportes podem manifestar-se aleatoriamente, num sentido não-sequencial;
simultaneamente, num sentido de coexistência; e inter-relacionando-se, num
sentido de convergências. Para que este modo aconteça, é necessário um hífen de
ruptura no ato de Trans-Portar, produzindo atravessamentos que convertam a
condução dos encontros em caminhos variáveis, porém concordantes; sendo
momentos diferentes um do outro, mas verdadeiramente afirmáveis. A habilitação
de um veículo para o modo transformers se dá primeiramente em reconhecer sua
força intrínseca de desdobramento, e consequentemente, considerar possibilidades
de aprimoramentos ou fissuras em sua própria estrutura composicional. Sendo
assim, este modus pode ser ativado por qualquer viajante que perceba e
reconheça essas possibilidades de alterações e que sejam imbuídos de aptidões
investigativas. No modo trem, por exemplo, essa ativação tem como objetivo
criar uma versatilidade dos jogos e brincadeiras pré-concebidas e alterá-las em
sua maneira formal, enriquecendo-as com novos signos e executando-as de maneira
própria e original. Ainda no modo trem, mesmo os descarrilamentos se tornam
necessários para ativação dos transformers, pois é a partir desta ação que uma
fissura ou um erro pode arranjar-se em outros modos. Já no modo jangada, devido
ao seu estado intermediário entre o trem e a espaçonave, sua ativação pode ser
escolhida de acordo com a direção do vento. Dependendo do ajuste da vela, a
ativação pode acontecer por um fluxo de ventos fortes, fazendo com que a
jangada decole, estabelecendo uma unidade entre os viajantes na escolha da
direção, ou habitando todos uma mesma ilha; ou então pela necessidade de
sobrevivência a grandes tempestades, a jangada entra no modo trem, a fim de trilhar
e retomar os propósitos lúdicos do caminho. E por fim, a espaçonave entra no
modo transformers quando há uma desintegração dos componentes poéticos que a
constitui, seja pela falta do combustível imaginário, seja por acionar o botão
de ejetar tripulantes, ou seja também pela necessidade de modificar um estado
de estagnação criativa do veículo. Nesse modo é possível que o trem navegue, a
jangada flutue e a espaçonave vire casa na copa de uma árvore. Transitar pelo
modo transformers, é fazer com que a prática artístico-pedagógica no PIÁ seja
sempre um vir a ser, nos fazendo experimentar a grandeza de poder viajar em
outros tantos veículos possíveis.
Nenhum comentário:
Postar um comentário