AE: Tatiana Eivazian –
teatro
Equipamento: CEU
Jardim Paulistano
Introdução
Este
ensaio de pesquisa-ação é na verdade um relato, cujo mote partiu da confluência
entre o tema descrito no título, surgido durante as reuniões gerais de AEs e
coordenadores do programa, e a prática artística realizada junto aos jovens do
CEU Jardim Paulistano. Aqui, não se pretende provar tese, mas sim investigar e
tentar se aproximar de uma maior compreensão do complexo papel que exerce o AE,
e talvez, sim, lançar um outro olhar sobre o famigerado e diversas vezes
polêmico “social”. Explico.
Em
diversas reuniões gerais com AEs e coordenadores, quando colocadas as funções e
atividades artístico-pedagógicas, foi-se afirmando uma ideia de que o AE podia
ser tudo, menos “social”. Diversas questões desdobram-se a partir daí. Mas o
que é, de fato, assumir um papel social? O que define ser social ou não? Dá pra
empreender procedimentos artísticos ao mesmo tempo em que se assume essa função
social? Ser artístico e ser social são coisas díspares, opostas? Afinal, quem
foi que separou arte da sociedade?
Argumento
instaurado, o “social” tomou uma proporção pejorativa. A impressão é de que se
confundiu o conceito desse papel social com o conceito de assistencialismo,
caridade. Fiquei também com a impressão de que aqueles AEs, mal sabiam eles,
exercem sim um papel social no momento do encontro com os pias.
Acredito
que um AE, antes de se pretender “artista”, precisa estar impregnado pelo verbo
compreender. Compreender o contexto em que seu equipamento está inserido.
Compreender o conjunto de energias de cada turma, tanto o todo quanto as partes.
E para compreender, é preciso ter escuta, ouvir. Para ouvir, é preciso dar-se
ao Tempo e dilatar-se, abrindo espaços internos para permitir que algo externo
te invada. É estar lá mais para o outro do que para si. A plena realização
desses verbos todos já é um ato social. Segundo o sociólogo
francês Émile Durkheim, fato social consiste num modo "de agir, de pensar
e de sentir exteriores ao indivíduo". Isso quer dizer que uma ação ou
pensamento com objetivos não individualistas, com sentido externo a si, já é
uma ação social. E sabemos, não é uma
tarefa fácil. Não é fácil deixar-se de lado e ir em direção ao universo do outro.
Dilemas morais à parte, um AE deve empreender esse “fato social” não em nome de
um ‘bom-mocismo’, ou cheio de ‘coitadismos’, mas, justamente, para melhor
fruição de suas propostas artísticas em cada turma. Creio que seja essa a
direção que deve acontecer a experiência dos encontros: as questões e
necessidades que estão pulsantes naquele contexto são captados pelo AE, que com
sua sensibilidade e bagagem propõe um certo procedimento artístico que crê
potente àquele momento específico.
Minha experiência como AE se deu dentro
desse olhar. Ao chegar no CEU Jardim Paulistano, estava tomada pelo verbo
compreender. Compreender
aquela comunidade por números, compreender o funcionamento do CEU, compreender
sua gestão, compreender os alunos, compreender suas realidades, anseios,
referências, subjetividades. A seguir,
relato três momentos de encontros no PIÁ em que, espero, deu-se o cruzamento
entre artístico-pedagógico, artístico-social e social-pedagógico.
Primeiras experiências
Dada a primeira impressão, uma das primeiras
práticas proposta à equipe foi usar elementos poéticos da abstração (como
linguagem e estética). Essa escolha veio exatamente de uma necessidade surgida
nos primeiros encontros com as crianças de 8 a 10 anos, que soltavam frases
como “meu desenho é feio/torto”, “não sei/consigo desenhar direito”, entre
outras. Já é sabido que isso apenas reflete o meio educacional/familiar em que
vivem, o qual ou não se tem contato com arte, ou se propaga uma ideia limitada
de que arte deva ser imitação/interpretação/representação perfeita da
vida/realidade. Essa questão nos inspirou a trabalhar com a experimentação e valorização
das subjetividades através das artes plásticas, para apresentar outras vias de
percepção estética que não fossem a naturalista ou a realista.
Sendo assim, escolheu-se a obra e a vida do pintor
russo Wassily Kandinsky. Creio ser de suma importância levar referência
artística para não só ampliar o universo cultural das crianças, mas para que
elas se inspirem e se espelhem na vida e obra de vários artistas de diferentes
linguagens, e possam vivenciar um pouco do seu universo. E talvez para mim o mais
importante é que percebam que um artista, invariavelmente, parte de sua
realidade para criar sua obra.
Boal e “aconteceu com você”
Nessa
mesma linha de pensamento, para as turmas mais crescidas, de 11 a 14, lancei
mão do bom e velho Boal, aproveitando que a “pegada” daqueles adolescentes era claramente
teatral. O jogo do ‘Eu protesto’ (que consiste simplesmente protestar a favor
ou contra qualquer coisa que seja importante a alguém) fez com que eles
quisessem deixar registrado em escrita algumas de suas histórias pessoais. Com
essas histórias, propôs-se propositadamente outro exercício, de teatro
narrativo, ‘aconteceu com você’ (A lê uma história de X, e a conta em primeira
pessoa, como se tivesse acontecido com a A). O propósito foi justamente porque
essa turma tinha uma questão latente: um grupinho de meninas que isolavam outra
menina e, ao que tudo indicava, eram dissimuladamente hostis com a garota. Sem
precisar armar rodas e rodas de conversas falando sobre a importância de lutar
contra o bullying, o exercício de “ser outra pessoa”, assumindo a
história dela como a sua, e ver sua história criando forma e assistir e ouvi-la
como se ela não fosse sua, foi um divisor de águas naquela turma. E só foi
potente porque aquele contexto específico foi quem praticamente demandou uma
experiência teatral de espectador de sua própria história. Os alunos passaram a
transitar entre o sujeito e o objeto tanto como espectador, quanto como obra.
Essa experimentação, que deu-se durante vários encontros, faz desaparecer a
diferença entre objetividade e subjetividade, e não só aproximou os jovens e
harmonizou a turma, como, na sua repetição, lançou um olhar de forma
restrospectiva e crítica para os caminhos percorridos. “A
interpretação de uma obra se aproxima da invenção, o espectador produz a partir
de algo que lhe acontece” (Flávio Desgranges).
Cidades dos sonhos possíveis/ cidades
possíveis dos sonhos
As Cidades e o Céu 5
Cada mudança implica uma cadeia de outras
mudanças, tanto em Ândria como nas estrelas: as cidades e o céu nunca
permanecem iguais
- Ítalo Calvino
Quando
discutíamos sobre a questão do “pertencimento” (um dos princípios do PIÁ) nas
reuniões de equipe, pensamos em talvez levar a própria descrição do conceito
aos alunos de 11 a 14 (Pertencimento:
acesso à cultura e aos espaços públicos, com base no direito a fruição dos
bens simbólicos e a participação ativa da comunidade interessada),
perguntando o quanto os termos ‘direito aos bens simbólicos’ e ‘participação
ativa da comunidade’ lhes fazia sentido. O quanto eles entendiam que o CEU era
um espaço de cultura aberto a eles e que poderia e deveria também ser um espaço
de produção e manifestação artística, assim como a comunidade em que eles
habitam, assim como a cidade em que eles habitam. A essa altura do ano, esse tema já era um
desdobramento do desdobramento daquilo que começou com o “aconteceu com você”.
No fundo, ainda estávamos falando e nos aprofundando sobre o mundo sendo algo
“passível de análise e de transformação”, como diz a máxima freireana.
Pensando
nisso, trouxemos a eles duas referências: o livro As Cidades Invisíveis, de Ítalo Calvino, imagens das obras do
artista plástico inglês Banksy nos muros londrinos. Pedimos que eles, assim
como Marco Polo no livro acima citado, assumissem o olhar de viajantes. Um
olhar viciado, dotado de frescor, pois tudo lhe é novo. Pedimos que andassem
pelos CEU e arredores, procurar por signos e símbolos do lugar e depois, em
outro encontro, reinventar esses lugares a seu modo, montando uma cena. Um
exercício de reconstruções.
Na
semana seguinte, depois de escreverem como seria a cidade ideal de cada um,
sintetizaram suas histórias em tamanho haikai. Fizemos stencils em papel kraft de
cada haikai e saímos pichando os muros do CEU. Um exercício de intervenção
urbana.
“Prô, agora toda vez que entro no CEU, vejo que aquele muro
é um pouco meu e parece que as pessoas quando olham pra
ele tão olhando pra mim.”
"Dá vontade de fazer 'intervenção urbana' em todo lugar que eu vou"
Não há conclusão
Não há tese, não há conclusões. Não há
respostas. Apenas a vontade de deixar registrada a minha escolha que, já que o
título propôs ficar entre o ser e o não ser, é ser. Por acreditar que o homem
produz as mais belas obras de arte
quanto se relaciona com seu ambiente natural e dialoga com a sociedade.
Brevíssima autobiografia
Aqui creio que cabe algumas breves palavras sobre
meu trabalho artístico extra PIÁ. Venho de uma formação teatral, que se traduz
na prática do meu grupo de teatro, em que acredita na formação de artista
cidadão, que pode e deve se inspirar em utilizar contextos de sua própria realidade e da realidade
do entorno/comunidade em que vive. Há seis anos, meu grupo de teatro (Grupo
Arte Simples de Teatro) realiza residência artística na comunidade de Heliópolis,
e essa residência consiste em pesquisa artística aliada a oficinas teatrais
para crianças e jovens. Não é trabalho assistencialista. Não é caridade. É
artístico, e é evidente que disso decorrem conseqüências sociais. Ao chegar no
PIÁ, encontrei uma equipe que, assim como eu, era toda composta de AEs de
“primeira viagem” e que, assim como eu, também vinha de trabalhos prévios em
comunidade e a valorização de contextos e manifestações locais. Nada é por
acaso.
Algumas referências que serviram
de inspiração durante o ano e para este ensaio:
– DESGRANGES, Flávio – Pedagogia do Teatro: Provocação e Dialogismo. Hucitec, 2006;
-
CALVINO, Ítalo – As Cidades Invisíveis. Companhia
das Letras, 2ª edição 2012.
- FISCHER,
Ernst – A Necessidade da Arte
- BLOOM,
Harold – Shakespeare, a Invenção do Humano
-
STEVENS, John O. – Tornar-se presente-
experimentos de crescimentoem gestalt- terapia