Estou há cinco anos ininterruptos integrando o
PIÁ, como artista educadora (AE). Nesse ciclo, pude perceber o processo de
amadurecimento deste Programa que, mesmo passando por distintos governos
municipais, vem conseguindo se fortalecer como política pública para a infância
na cidade de São Paulo.
Esse processo de amadurecimento dentro do
Programa foi uma questão de sobrevivência. Muitos debates e assembleias foram
feitas, muitos conflitos surgiram, muitas pessoas foram embora, nos arriscamos
em muitas escolhas, mas hoje conseguimos notar com mais clareza que esse amadurecimento
veio com o processo de resistência. Fazer política é um exercício natural de
cidadãos que realmente desejam uma sociedade democrática e igualitária; isso
aos poucos foi deixando de ser temido pelo PIÁ e hoje vem conseguindo se
consolidar no Programa. Mas, claro, se movimentar politicamente (e aqui não
estou falando de politicagem) dá muito trabalho.
O movimento de resistência se fortificou mais
concretamente em 2013, em parceria com o Programa Vocacional, no primeiro ano
da gestão de Fernando Haddad. Na ocasião, participei da comissão nomeada “Olho
Vivo“ (uma homenagem ao grupo de teatro paulistano TUOV – Teatro União e Olho
Vivo) que atuou na Câmara Municipal e no gabinete do Secretário de Cultura (na
época, Juca Ferreira), a fim de conseguir garantir verba para o Programa no ano
decorrente e, principalmente, garantir políticas públicas para a infância,
fortalecendo os programas já existentes, como o PIÁ, e ampliando a percepção
sobre a criança como ser cultural.
Hoje, 2015, ano especial para o PIÁ, estamos
presenciando uma maturidade coletiva que reverbera em diversas conquistas e na
continuidade de ações dos anos anteriores. Reconquistamos uma coordenação geral
para o programa (mesmo que ainda efêmera) eleita por nós; estamos na terceira
edição da revista Piápuru (será lançada virtualmente); o Encontro/Seminário no
CCSP foi realizado dois anos consecutivos, trazendo debates sobre arte e infância
com especialistas parceiros; foi aberta uma pauta para infância no Plano
Diretor da cidade; foram feitas parcerias com universidades que pesquisam
arte-educação; 2º ano consecutivo de encontros das famílias das crianças do PIÁ
realizado dentro da SMC; garantimos em edital que o credenciamento dos artistas
educadores e coordenadores tivesse duração de 2 anos, para diminuir minimamente
a precariedade do profissional do PIÁ. Há muito que comemorar!
Ainda assim, a continuidade do Programa é
sempre incerta, não somos “lei”. O começo dos processos com as crianças é muito
tardio, começamos em abril. As condições de trabalho do artista educador ainda
são precárias. Mesmo com comemoração pelos passos dados, há sempre que se lutar
por melhorias. Sempre!
Nesses 5 anos que estou no PIÁ, sempre trabalhei
na “ponta”, ou seja, promovendo processos artísticos com crianças no
equipamento, como AE. Passei por equipamentos públicos diversos, como CEUs e
Bibliotecas, e com contextos sociais também distintos (CEU Quinta do Sol,
Biblioteca Hans Christian Andersen, Biblioteca Monteiro Lobato e CEU Lajeado).
Um equipamento público é complexo e cheio de potencialidade!
No ano de 2014, entrei em contato com o
pensamento de Manuel Sarmento, pesquisador que compreende a criança partir do contexto
social e histórico. Digo isto, pois especificamente em 2015, tive acesso a uma
realidade de PIÁ (sim, o PIÁ tem muitas realidades distintas), vivenciada no
CEU Lajeado, que se diferenciou das minhas outras experiências.
O CEU Lajeado encontra-se em um dos bairros com
menor IDH de São Paulo. A violência, presentificada em variadas facetas, está
no dia a dia daquela comunidade. A criança do Lajeado traz consigo inúmeras
demandas que o PIÁ não consegue lidar e pouquíssimas vezes consegue refletir.
No CEU Lajeado, há pouco pertencimento das
pessoas com o equipamento público. As crianças que o frequentam são, em grande
maioria, apenas para ir pra escola (EMEF dentro do CEU) e outras, frequentam o
CEU por causa do PIÁ. É notável o quanto o PIÁ (e outros programas) pode
contribuir como mediador desse processo de pertencimento com a comunidade, mas
essa “ponte” é, a priori,
responsabilidade da gestão do equipamento público.
No caso do CEU Lajeado, para suprir essa “falta
de público”, a gestão cultural preferiu usar certo “atalho”, vinculando instituições
como o CCA (Centro para Criança e Adolescente) aos projetos do CEU. Essa
decisão dificultou no início do PIÁ 2015 a inscrição espontânea da comunidade.
A intenção do equipamento era fechar turmas inteiras exclusivamente para o CCA.
A equipe, depois de muito conflito com o equipamento, decidiu que as crianças
do CCA poderiam vir em pequenos grupos nas turmas, sem fechá-la por completo
para a instituição.
O CCA é um centro municipal que atende crianças
de 6 a 14 anos em situação de vulnerabilidade e/ou com familiares que trabalham
o dia todo. Funciona como um contra turno. No CCA as crianças fazem refeições e
atividades variadas (artísticas, esportivas, lúdicas). A justificativa deles
para levar as crianças no PIÁ é que, tendo profissionais qualificados, haveria
uma experiência diferenciada para essas crianças. Porém, ao irem para o PIÁ,
duas verbas municipais são destinadas para atender as mesmas crianças e outras
crianças deixam de ser atendidas. Em 2015, descobrimos que havia cerca de 150
nomes na lista de espera para entrar no CCA. Pedimos a lista à instituição, a
fim de divulgarmos o PIÁ, mas essa lista nunca foi cedida a nossa equipe.
No decorrer do ano, fomos percebendo os limites
do PIÁ no CEU Lajeado e o quanto é preciso debater tais questões, uma vez que
esses questionamentos também aparecem em outras equipes do PIÁ. As crianças
vindas em grupos, (CCA - 8 crianças em uma turma, e EMEF - 7 crianças em outra
turma) traziam princípios comportamentais e simbólicos da instituição
originárias, muitas vezes, diferentes dos fundamentos do PIÁ, gerando muitos
conflitos internos. As crianças agiam como se o PIÁ fosse uma extensão do CCA,
e, talvez somente no final do ano, foram conquistadas novas maneiras de
estarmos juntos. Houve muito pouco tempo para este processo. Outro problema foi
a não proximidade com as famílias dessas crianças trazidas pelo CCA,
interferindo nos processos e encontros. A família é parte integrante da criança
e suas reverberações nos encontros. O que fazer com famílias ausentes? Também
causou prejuízos a rotatividade e a ausência (em dias de chuva, de evento) das
crianças que vem com instituições, tanto pra continuidade de processos
artísticos quanto para a concretização de combinados da turma.
Esses aspectos apareceram apenas nas turmas que
tinham crianças vinculadas às instituições, o que por si só merece um debate
intenso dentro do PIÁ, mas outros conflitos também surgiram durante o ano,
principalmente pelo CEU Lajeado estar em um bairro pouco assistido pelo governo
municipal.
Como dito anteriormente, a violência é presente
naquela comunidade, percebidas tanto em relatos de funcionários, familiares das
crianças, quanto nas brincadeiras das crianças durante os encontros. Uma
criança de 5 anos reproduzia ações sexuais explícitas nas brincadeiras teatrais,
imaginário não natural para uma criança tão pequena; uma mãe contou que tinha
separado do marido porque ele batia nela e no filho; uma criança disse que presenciou
o tio bater no pai dela porque ele não queria deixar que a mãe saísse para uma
festa; outra criança tinha o pai preso por tráfico e consumo de drogas,
deixando a mãe com três filhos para cuidar; às vezes alguma criança se sentia
mal, percebíamos que ela não havia se alimentado...
Essas situações reverberavam nos encontros.
Percebi que não somos preparados para identificar situações-limite, quando estas
não se apresentam tão às claras, como no caso da criança sexualizada. No
entanto, nos casos mais “graves”, procuramos não ser omissos. Além de comunicar
a coordenação, buscamos orientação profissional especializada fora do Programa,
pois não há um amparo psicológico dentro do PIÁ, por exemplo. Aliás, dentro do
ano letivo do PIÁ mal debatemos (nas reuniões gerais, de equipe e formação)
sobre programas municipais que poderiam nos ajudar em situações como as citadas
acima ou convidamos profissionais para debater conosco temas como a violência
sexual infantil. Mal conhecemos a atuação de um Conselho Tutelar, de um CRAS, de
um CAPE (Centro de Aperfeiçoamento em Psicologia Escolar). Descobri que um CAPE
da região estava indicando o PIÁ para famílias com crianças hiperativas, já que
não dava conta de atendê-las por haver muita demanda. Um vai empurrando para o
outro.
Sem querer descobrir soluções mágicas ou deixar
de estar em contextos sociais que demandam muito mais do que artistas na
comunidade, é preciso discutir as realidades do PIÁ e entender como o PIÁ se
torna diferente e potente em situações diversas, compartilhando os mesmos princípios
artístico-pedagógicos. Não podemos fazer vistas grossas à violência e a
desigualdade social, mas também não temos a solução para todos os problemas. No
entanto, isso não significa que vamos nos acomodar, evitando debater sobre esses
temas. Nosso foco é a criança e é ela que devemos prioritariamente proteger.
Se queremos estar em toda a cidade, está na
hora de darmos mais um passo, sendo artistas menos alheios a realidade social
de cada equipamento. Também precisamos questionar a inserção de instituições
dentro do PIÁ e como trazer a família cada vez mais engajada no programa e na
formação da criança. Fazer parcerias com faculdades de psicologia, de artes, de
assistência social, ciências sociais e programas municipais. É importante debater
até onde podemos ir ou quando temos que dizer não. Cada equipe de PIÁ precisa
estar amparada dentro do próprio Programa, para não ser um barquinho em meio ao
imenso oceano, o debate e a reflexão ajudam a tornar este barco mais forte e seguro
para viagem.
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