segunda-feira, 28 de dezembro de 2015

O que é leitura e mediação em arte nos encontros do Piá?

Artista educadora de Artes Integradas Cristiane Santos

Equipe CEU Jardim Paulistano

Traçar, inventar, criar, esta é a trindade filosófica.
In : O que é a filosofia ? - Deleuze & Guattari

A infância não é apenas uma questão cronológica: ela é uma condição de experiência.

Etimologicamente, ler é palavra derivada do latim com sentidos e significados ligados à agricultura. Legere diz respeito ao ato de “colher, escolher, recolher”, quando as pessoas selecionam e retiram da terra os melhores frutos, legerre ocullis, “colher com os olhos” e acrescento, com os sentidos todos. Com o tempo, esta expressão ganhou contornos definidos, ler significa “obter informações através da percepção das letras” e assim chegamos a nossa problemática.
Quando falamos em leitura o primeiro sentido que nos surge é a da decodificação das palavras e/ou interpretação de textos literários, mas podemos entender leitura por outros conceitos e teorias do conhecimento.
A autora Martins (1997, p.31), aborda e confronta duas concepções de leitura, a saber,
1)     leitura como “uma decodificação mecânica de signos lingüísticos, por meio de aprendizado estabelecido a partir do condicionamento estímulo-resposta (perspectiva behaviorista-skinneriana);
2)     como “um processo de compreensão abrangente, cuja dinâmica envolve componentes sensoriais, emocionais, intelectuais, fisiológicos, neurológicos, bem como culturais, econômicos e políticos(a perspectiva cognitivo-socioIógica).
Partindo desta concepção cognitivo-socioIógica apresentada pela autora, arriscaria dizer e acrescentar os elementos: estético e ético, com interesse em problematizar a discussão sobre leitura e ampliar o seu conceito.
“[...] Ampliar a noção de leitura pressupõe transformações na visão de mundo em geral e na visão de cultura em particular. Isso porque estamos presos a um conceito de cultura muito ligado a produção escrita, geralmente provinda do trabalho de letrados...” (Martins. 1997 p.29)
Esta cultura escrita tem gerado desde os processos de alfabetização um equívoco sobre o ato de ler e um desgosto pela literatura em geral, o seu processo de desestimulo começa na infância e infelizmente segue a adolescência e a fase adulta dos indivíduos, salvo exceções que conseguem resistir a este desmonte do universo simbólico, pois ainda nos relacionamos com o conceito de leitura como decodificação mecânica dos signos lingüísticos, esta relação mecânica é reforçada quando precisamos das respostas decoradas com o fim exclusivo de aprovação em testes, concursos, vestibulares e trabalhos escolares e não a leitura enquanto campo de experiência estética e crítica.

Segundo Martins, existem três níveis de leitura que constituem esta experiência: os níveis sensorial, emocional e racional, sendo cada qual um modo de aproximação ao objeto lido. Mas como nos alerta a autora (1997 p.37) “[...] como a leitura é dinâmica e circunstanciada, esses três níveis são inter-relacionados, senão simultâneos, mesmo sendo um ou outro privilegiado, segundo a experiencia, expectativas, necessidades e interesses do leitor e das condições do contexto geral em que se insere”.
Leio com meus sentidos, emoções e com meu intelecto. A leitura sensorial caracteriza-se pelo predomínio dos sentidos, audição, visão, tato, olfato e paladar, como elementos de referencia de leitura, estando intimamente ligado ao lúdico e ao prazer que cores, sons, texturas, imagens provocam.
A leitura emocional, segundo Martins (1997, p.51-52),
[...] emerge a empatia, tendência de sentir o que se sentiria caso estivéssemos na situação e circunstâncias experimentadas por outro, isto é, na pele de outra pessoa, ou mesmo de um animal, de um objeto, de uma personagem de ficção. Caracteriza-se, pois, um processo de participação afetiva numa realidade alheia, fora de nós. Implica necessariamente disponibilidade, ou seja, predisposição para aceitar o que vem do mundo exterior, mesmo se depois venhamos a rechaçá-lo.
A leitura racional enfatiza-se pelo caráter reflexivo e dinâmico da leitura buscando trazer o contexto da organização das idéias, do pensamento teórico e da criação da obra e seu tempo.
A partir desta perspectiva, o conceito de leitura se alarga e se conecta a construção de subjetividades e universos simbólicos: ler provoca e evoca no corpo uma infinidade de sensações, emoções e reflexões e não estamos aqui falando única e exclusivamente das palavras, mas novamente afirmando que lemos o mundo e o mundo nos lê.
Como nos afirma novamente Maria Helena Martins (1997, p. 51-52),

[...] a competência para criar ou ler se concretiza tanto por meio de textos escritos (de caráter ficcional ou não) quanto de expressão oral, música, artes plásticas, artes dramáticas ou de situações da realidade objetiva cotidiana (trabalho, lazer, relações afetivas, sociais). Seja o leitor inculto ou erudito, seja qual for a origem do objeto de leitura, tenha ele caráter utilitário, científico, artístico configure-se como produto da cultura folclórica popular, de massa ou das elites.
reforça-se, então, o que já foi dito: a construção da capacidade de produzir e compreender as mais diversas linguagens esta diretamente ligada a condições propícias para ler, para dar sentido a expressões formais e simbólicas, representacionais, ou não, quer sejam configuradas pela palavra, quer pelo gesto, pelo som, pela imagem. E essa capacidade relaciona-se em princípio com a aptidão para ler a própria realidade individual e social.

Leio o mundo e sou lido por ele em todos os meus atos e cada uma destas experiências esta implicada com distintas visões de mundo, a experiência de ler é um ato político e poético. Como afirma Paulo Freire (1988, p.11-12),

a leitura do mundo precede a leitura da palavra, daí que a posterior leitura desta não possa prescindir da continuidade da leitura daquele. Linguagem e realidade se prendem dinamicamente. A compreensão do texto a ser alcançada por sua leitura crítica implica a percepção das relações entre o texto e o contexto.

O ser humano é um ser cultural e sendo assim produz complexidade: a leitura e a comunicação que se estabelece a partir do que é lido e como é lido é um ato de construção de complexidade e subjetividade. Todo diálogo que se estabelece entre leitor e objeto, seja este escrito, gestual, sonoro, visual ou cênico, é uma leitura que se instaura nesta experiência de ser e estar no mundo. A experiência da leitura afeta o sujeito e este constroem relações de intimidade com o objeto que é lido, revestindo-se deste prazer e imagética é atravessado, tocado, provocado, o ser lúdico é convocado a celebrar a experiência dos sentidos. Esta experiência estética é um ato revolucionário e poético, porque permeado pelo espaço dialógico, divergente, é o campo da invenção, é o lugar onde é possível habitar e ser habitado pelo estado de maravilhamento e espanto.
Como afirma Larrosa, nos falando sobre experiência de modo exemplar: “[...] a experiência é o que nos passa, o que nos acontece, o que nos toca. Não o que se passa, não o que acontece, ou o que toca” [1]

Refazendo a pergunta: O que é leitura? Acredito que uma pista estaria justamente na experiência estética no processo de aprendizagem, esta ação que é artística e educadora é imbuída de um processo criativo e investigativo, não se trata aqui de abandonar a palavra escrita, mas justamente de torná-la uma experiência de vida e de potência, de tornar abrangente e consciente a diversidade do conceito de leitura e de como a partir desta percepção podemos ler, desconstruir e inventar outros discursos sobre a realidade.
Os encontros artísticos do Piá- Programa de Iniciação Artística tem como princípios norteadores a ludicidade, experimentação, o processo criativo, a temporalidade, o pertencimento, a interlinguagem e as ações compartilhadas
A priorização da experimentação estética de modo transversal, híbrido e relacional, possibilita novos caminhos de fruição e criação artística este lugar da experiencia enquanto potencia de vida e criação é o território efêmero do Piá. Esta elaboração de pensamento, não cartesiana, propõe estas suspensões do tempo nos encontros entre artistas-educadores e as crianças, com foco em uma ação performática que provoca, este “traçar, inventar, criar”, para que os acontecimentos estéticos se dilatem e se relacionem afetivamente com esta diversidade das culturas da infância.
Não iniciamos em arte às crianças que vão aos encontros do Piá, mas podemos construir experiências significativas que agregam sentidos diversos, desde pertencimento de si e ao lugar de origem, a imaginação e esta experiencia inaugural de percepção do mundo, nomear, resignificar e inventar novos usos aos objetos do cotidiano.
A mediação de leituras em arte que se apresenta é da natureza da escuta, dos sentidos e das perguntas que nos despertam a velejar por outros mares e não das respostas prontas, por exemplo, “a obra de dança diz isto, a música é aquilo”, não nos interessa aqui afirmar os clichês, o lugar comum, mas justamente a partir destas propostas, desconstruirmos estes padrões e estabelecer a experiencia em arte.
Após navegarmos por mares desconhecidos, buscando criar vínculos afetivos e mapeando as possibilidades de encantamento, nestas experiências, o campo estético é o que desemboca na esfera da arte e vida, na poética do ser no mundo.




[1] BONDÍA, Jorge Larrosa, 2002. Notas sobre a experiência e o saber de experiência. Tradução de João Wanderley Geraldi. Revista Brasileira de Educação nº19.

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