Artista educadora de Artes Integradas
Cristiane Santos
Equipe CEU Jardim Paulistano
Traçar, inventar, criar, esta é a trindade
filosófica.
In : O que é a filosofia ? - Deleuze &
Guattari
A infância não é apenas
uma questão cronológica: ela é uma condição de experiência.
Etimologicamente, ler é palavra derivada do latim com
sentidos e significados ligados à agricultura. Legere diz respeito ao ato de “colher,
escolher, recolher”, quando as pessoas selecionam e retiram da terra os
melhores frutos, legerre ocullis,
“colher com os olhos” e acrescento, com os sentidos todos. Com o tempo, esta
expressão ganhou contornos definidos, ler significa “obter informações através da percepção das letras” e assim
chegamos a nossa problemática.
Quando falamos em leitura o primeiro sentido que nos surge é
a da decodificação das palavras e/ou interpretação de textos literários, mas
podemos entender leitura por outros conceitos e teorias do conhecimento.
A autora Martins (1997, p.31), aborda e confronta duas concepções
de leitura, a saber,
1) leitura como “uma
decodificação mecânica de signos lingüísticos, por meio de aprendizado
estabelecido a partir do condicionamento estímulo-resposta (perspectiva
behaviorista-skinneriana);
2) como “um processo de
compreensão abrangente, cuja dinâmica envolve componentes sensoriais,
emocionais, intelectuais, fisiológicos, neurológicos, bem como culturais,
econômicos e políticos(a perspectiva cognitivo-socioIógica).
Partindo desta concepção cognitivo-socioIógica apresentada
pela autora, arriscaria dizer e acrescentar os elementos: estético e ético, com
interesse em problematizar a discussão sobre leitura e ampliar o seu conceito.
“[...] Ampliar a noção
de leitura pressupõe transformações na visão de mundo em geral e na visão de
cultura em particular. Isso porque estamos presos a um conceito de cultura
muito ligado a produção escrita, geralmente provinda do trabalho de letrados...”
(Martins. 1997 p.29)
Esta cultura escrita tem gerado desde os processos de alfabetização um
equívoco sobre o ato de ler e um desgosto pela literatura em geral, o seu processo de desestimulo começa na infância e
infelizmente segue a adolescência e a fase adulta dos indivíduos, salvo
exceções que conseguem resistir a este desmonte do universo simbólico, pois
ainda nos relacionamos com o conceito de leitura como decodificação mecânica
dos signos lingüísticos, esta relação mecânica é
reforçada quando precisamos das respostas decoradas com o fim exclusivo de
aprovação em testes, concursos, vestibulares e trabalhos escolares e não a
leitura enquanto campo de experiência estética e crítica.
Segundo Martins, existem três níveis de leitura que constituem esta experiência: os níveis sensorial, emocional e racional, sendo cada
qual um modo de aproximação ao objeto lido. Mas como nos alerta a autora (1997
p.37) “[...] como a leitura é dinâmica e circunstanciada, esses
três níveis são inter-relacionados, senão simultâneos, mesmo sendo um ou outro
privilegiado, segundo a experiencia, expectativas, necessidades e interesses do
leitor e das condições do contexto geral em que se insere”.
Leio com meus sentidos, emoções e com meu intelecto. A leitura sensorial
caracteriza-se pelo predomínio dos sentidos, audição, visão, tato, olfato e
paladar, como elementos de referencia de leitura, estando intimamente ligado ao
lúdico e ao prazer que cores, sons, texturas, imagens provocam.
A leitura emocional,
segundo Martins (1997, p.51-52),
[...] emerge a empatia, tendência de sentir o que se sentiria
caso estivéssemos na situação e circunstâncias experimentadas por outro, isto
é, na pele de outra pessoa, ou mesmo de um animal, de um objeto, de uma personagem
de ficção. Caracteriza-se, pois, um processo de participação afetiva numa
realidade alheia, fora de nós. Implica necessariamente disponibilidade, ou
seja, predisposição para aceitar o que vem do mundo exterior, mesmo se depois
venhamos a rechaçá-lo.
A leitura racional enfatiza-se pelo caráter reflexivo e dinâmico da
leitura buscando trazer o contexto da organização das idéias, do pensamento
teórico e da criação da obra e seu tempo.
A partir desta
perspectiva, o conceito de leitura se alarga e se conecta a construção de
subjetividades e universos simbólicos:
ler provoca e evoca no corpo uma infinidade de sensações, emoções e reflexões e
não estamos aqui falando única e exclusivamente das palavras, mas novamente
afirmando que lemos o mundo e o mundo nos lê.
Como nos afirma novamente Maria Helena Martins (1997, p. 51-52),
[...] a competência para criar ou ler se concretiza tanto por
meio de textos escritos (de caráter ficcional ou não) quanto de expressão oral,
música, artes plásticas, artes dramáticas ou de situações da realidade objetiva
cotidiana (trabalho, lazer, relações afetivas, sociais). Seja o leitor inculto
ou erudito, seja qual for a origem do objeto de leitura, tenha ele caráter
utilitário, científico, artístico configure-se como produto da cultura folclórica
popular, de massa ou das elites.
reforça-se, então, o que já foi dito: a construção da
capacidade de produzir e compreender as mais diversas linguagens esta diretamente
ligada a condições propícias para ler, para dar sentido a expressões formais e
simbólicas, representacionais, ou não, quer sejam configuradas pela palavra,
quer pelo gesto, pelo som, pela imagem. E essa capacidade relaciona-se em
princípio com a aptidão para ler a própria realidade individual e social.
Leio o mundo e sou lido por ele em todos os meus atos e cada uma destas
experiências esta implicada com distintas visões
de mundo, a experiência de ler é um ato político e poético. Como afirma Paulo Freire (1988,
p.11-12),
a leitura do mundo precede a leitura da palavra, daí que a
posterior leitura desta não possa prescindir da continuidade da leitura
daquele. Linguagem e realidade se prendem dinamicamente. A compreensão do texto
a ser alcançada por sua leitura crítica implica a percepção das relações entre
o texto e o contexto.
O ser humano é
um ser cultural e sendo assim produz complexidade: a leitura e a comunicação
que se estabelece a partir do que é lido e como é lido é um ato de construção
de complexidade e subjetividade. Todo diálogo
que se estabelece entre leitor e objeto, seja este escrito, gestual, sonoro,
visual ou cênico, é uma leitura que se instaura nesta experiência de ser e
estar no mundo. A experiência da leitura afeta o sujeito e este
constroem relações de intimidade com o objeto que é lido, revestindo-se deste
prazer e imagética é atravessado, tocado, provocado, o ser lúdico é convocado a
celebrar a experiência dos sentidos. Esta
experiência estética é um ato revolucionário e poético, porque permeado pelo espaço dialógico, divergente, é o campo
da invenção, é o lugar onde é possível habitar e ser habitado pelo estado de
maravilhamento e espanto.
Como afirma Larrosa, nos falando sobre experiência de modo exemplar: “[...] a
experiência é o que nos passa, o que nos acontece, o que nos toca. Não o que se
passa, não o que acontece, ou o que toca” [1]
Refazendo a pergunta: O que é leitura? Acredito que uma pista
estaria justamente na experiência estética no processo de aprendizagem, esta
ação que é artística e educadora é imbuída de um processo criativo e
investigativo, não se trata aqui de abandonar a palavra escrita, mas justamente
de torná-la uma experiência de vida e de potência, de tornar abrangente e
consciente a diversidade do conceito de leitura e de como a partir desta
percepção podemos ler, desconstruir e inventar outros discursos sobre a
realidade.
Os encontros artísticos do Piá- Programa de Iniciação Artística
tem como princípios norteadores a ludicidade, experimentação,
o processo criativo, a temporalidade, o pertencimento, a interlinguagem e as ações
compartilhadas
A
priorização da experimentação estética de modo transversal, híbrido e
relacional, possibilita novos caminhos de fruição e criação artística este
lugar da experiencia enquanto potencia de vida e criação é o território efêmero
do Piá. Esta elaboração de pensamento, não cartesiana, propõe estas suspensões
do tempo nos encontros entre artistas-educadores e as crianças, com foco em uma
ação performática que provoca, este “traçar, inventar, criar”, para que os
acontecimentos estéticos se dilatem e se relacionem afetivamente com esta
diversidade das culturas da infância.
Não
iniciamos em arte às crianças que vão aos encontros do Piá, mas podemos
construir experiências significativas que agregam sentidos diversos, desde pertencimento de si e ao lugar de origem, a
imaginação e esta experiencia inaugural de percepção do mundo, nomear,
resignificar e inventar novos usos aos objetos do cotidiano.
A mediação de leituras em arte que se apresenta é da natureza da escuta,
dos sentidos e das perguntas que nos despertam a velejar por outros mares e não
das respostas prontas, por exemplo, “a obra de dança diz isto, a música é aquilo”, não nos interessa
aqui afirmar os clichês, o lugar comum, mas justamente a partir destas
propostas, desconstruirmos estes padrões e estabelecer a experiencia em arte.
Após navegarmos por mares desconhecidos, buscando criar vínculos
afetivos e mapeando as possibilidades de encantamento, nestas experiências, o
campo estético é o que desemboca na esfera da arte e vida, na poética do ser no
mundo.
[1]
BONDÍA, Jorge Larrosa, 2002. Notas sobre
a experiência e o saber de experiência. Tradução de João Wanderley Geraldi.
Revista Brasileira de Educação nº19.
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