segunda-feira, 28 de dezembro de 2015

O não dito

Era hora do almoço e o calçadão do Pátio do Colégio estava lotado. Nós alí, crianças e artistas educadoras, esperando o ônibus para voltar pra periferia do nosso passeio de final de ano. A segunda-feira estava deitada naquele chão de pedras molhadas.
Lá estava Derick e sua pura vontade de escalada. A estátua era de pedra vermelha, mesma cor da sua camiseta. Seu rosto era de frustração vendo as 4 crianças mais altas sentadas no topo. Ele queria era subir, passar do topo. Tentou com joelhos, braços e saltos. Finalmente conseguiu e eu lá, observando um desejo virando matéria.O topo do topo, vem cá passarinho!
Nossos olhos se encontraram. Desce daí, pequeno curiá.

Derick criança mora na periferia de São Paulo, numa favela chamada Jardim Nardini. O nome da sua é mãe Patrícia mas no registro consta Alessandra. A comunidade mudou seu nome porque no beco onde vivem tem mais 5 Alessandras.
Essa é mais uma história dita por crianças, mães de nomes iguais e funcionários do equipamento público onde trabalhei no ano de 2015, CEU Vila Atlântica. A base desses encontros foi o Programa de Infância e Arte da Secretaria de Cultura da Cidade de São Paulo.  Fui apreendendo este programa ao longo do ano já que era minha primeira vez. Assim como minha dupla de trabalho e coordenadora. Isso fez com que minha escuta ficasse em meus poros e a cada encontro um exercício mais intenso. Depois, a volta cansada pra casa à bordo do ônibus 8677-10 Jardim Líbano – Praça da República. Alí, com minha dupla, se restabelecia o não dito.

A cada semana, mais não dito. Isso foi me cativando, talvez por querer economizar energia ou mesmo para perceber a sutileza desses encontros. Mesmo que durante meses a insistênciadas crianças na mesma atividade: criar grandes cabanas com colchonetes, mesas e cadeiras de plástico. Tentávamos orientar essas montagens mas, ainda assim, havia muita discussão. Os desejos em conflito. O colchonete fica aqui, não, a porta é aqui, vamos fazer um barco?, não, é um condomínio, você derrubou uma parede, assim machuca Caíque, devagar. E com a cabana pronta, vinha o pedido para apagar a luz. Silêncio. Tia, deita aqui com a gente?
Experimentamos muitas possibilidades com o material disponível. Foi uma miscelânia, uma salada típica de final de viagem: você mistura tudo o que sobrouda geladeira e tenta criar algo que não pareça uma miscelânia. Talvez não precisasse de tantos ingredientes ou mesmo fosse necessário descontruir alguns deles. Apesar de não conseguir me lembrar das minhas escolhas naqueles momentos, me recordo bem que lá habitava o não dito. Esse tal do não dito com vontade de escalada dos pequenos curiás.
E curiá não é curioso, é uma pré curiosidade. É um deixa eu escalar mais alto que as meninas, um deitar com cuidado para não destruir o que se acabou de construir ou um passarinho que não sei se vai voltar pra perto de mim.
Isso foi o que não me disseram aquelas crianças. 
Lana Sultani 10/12/2015


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