Falamos de nós agora: Contamos e
recontamos nos dedos o tempo que se foi. Lembranças da infância, da inocência... Mas para onde foram aqueles meninos danados?
Nossas fantasias ficaram nas
lembranças dos pés descalços, chutando a bola de meia ou uma bola de couro que
alguém levava para brincar.
Éramos verdadeiros atores vivendo
uma realidade específica, experimentando as coisas do mundo, brincando e
fazendo muitas descobertas com a consciência lambuzada de esperança.
Mas para onde mesmo foi aquela gente?
Pois é, depois de muito tempo, encontrei
no Piá o menino que estava escondido.
Quando cheguei neste projeto,
achei que fosse dar aulas de percussão para as crianças ou simplesmente dar
aulas de musicalização. Claro que em alguns momentos também faço isso, mas o
Piá mostra outras possibilidades de trabalho com as crianças. Fez-me retomar o
menino que estava guardado dentro de mim: revivi as histórias, as fantasias e
as brincadeiras de menino. E, assim, pude me aproximar das crianças e fazer um
bom trabalho, porque me senti inteiro junto a elas. Brincando e vivendo muitas
histórias e experimentando formas de olhar o mundo com o olhar da infância.
O menino que imaginava voar longe
com as pipas e arraias na praia de Amaralinha esteve presente no parque da Escola
Henrique Fontenelle e nas salas da Biblioteca Padre José de Anchieta, brincando
de inventar histórias. Como no dia em
que a Tâmille chegou um pouco mais tarde na aula e as crianças me perguntaram
sobre ela. Inventei uma história imaginária dizendo–lhes que ela tinha ido para
a Alemanha com seu marido, mas que viria outra pessoa para substituí-la. Em
seguida, Tâmille entrou na sala. Nesse momento, nós dois criamos uma personagem
para ela. Dissemos para as crianças que esta era a irmã gêmea de Tâmille, e que
o nome dela era Taís. As crianças acreditaram, mas ficaram em dúvida. Líamos
nos seus rostinhos: “será mesmo a irmã de Tâmille?”.
A dúvida esteve presente, mas o
mergulho na fantasia foi profundo. Os adultos da escola também entraram no jogo
e por vários dias nós vivemos essa fantasia com as crianças. Criamos diversas
histórias e situações de brincadeiras, até que chegou o dia em que revelamos a
verdade para as elas. Claro que todos disseram: “a gente já sabia!”.
Mas quem não brincou de
faz-de-conta? Quem não se imaginou um herói,
um artista famoso ou simplesmente
brincou de ser a mamãe ou papai? As
brincadeiras imaginárias de faz-de-conta são fundamentais paras as
crianças. As experiências subjetivas
atuam em níveis cada vez mais profundos, nos quais desaparecem as divisões
entre o que está dentro e o que está fora da imaginação, comunicando a
experiência do ser. O brincar opera nessa unidade subjetiva, mobilizando
sensações e sentimentos que se expressam através do corpo. Entrar nesse
universo das crianças é fundamental para estabelecermos uma comunicação com o
universo infantil.
No encontro com Marina Marcondes, ela nos
falou do conceito “agachamento”, que nada mais é do que você entender e se
aproximar do mundo das crianças, e
também enxergar no passado a sua própria
história de infância. Porque quando nós, adultos, permitimo-nos entrar nesse
universo da infância as coisas ficam muito mais fáceis e prazerosas.
Quando entrei no projeto Piá, percebi
que havia feito uma boa escolha. Afinal, já tive outras experiências com as crianças e
me identifico muito com o trabalho com elas. Adoro brincar com as pessoas,
conversar, contar histórias sobre a vida. Nasci na Bahia, fui criado à beira
mar, num lugar onde as pessoas brincam muito umas com as outras. Também aprendi
música e dança na rua, de um jeito muito espontâneo e alegre. A arte fez parte
da minha vida desde muito pequeno.
Outro aspecto muito bacana foi o
encontro com minhas parceiras de trabalho. Estamos trocando muitas experiências
entre nós e com as crianças. Quando cheguei ao projeto, eu tinha um
entendimento sobre arte e educação. Aos poucos, com a ajuda das parceiras, fui
entendendo o que é o Piá e, ao mesmo tempo, fui me reconhecendo no trabalho,
encontrando o meu jeito de ser: o jeito do menino lá de Salvador, que estava
guardado na caixinha das memórias.
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