por Marília Carvalho
Sobre ocupar a cidade
Esse
foi meu segundo ano de PIÁ e uma nova dimensão do
programa se mostrou para mim: de Sapopemba (onde atuei em 2014, no
CEU Sapopemba) à Vila Buarque (onde atuei em 2015, na
Biblioteca Monteiro Lobato), várias faces da mesma cidade:
diferentes formas de estar no mundo e de olhar pra ele. Relações
que mudam quando mudamos de lugar: com o espaço público
e as pessoas que trabalham nele, com o entorno, com as famílias,
com as crianças, entre as crianças e assim por diante.
Pensar genericamente em infância
não dá conta das crianças que se jogam no
barranco de terra em Sapopemba e ao mesmo tempo das crianças
da Vila Buarque, pra muitas das quais é perigoso subir,
descer, sujar, cair, ir ao chão. Pensar na cidade como um
todo, uma coisa só, não dá conta da distância
que separa o minhocão do monotrilho que nunca vi terminado em
Sapopemba.
Em
2015 percebi que no que chamam centro da cidade
há mais moradores de rua e menos pipas no céu aos fins
de tarde. Percebi a organicidade do PIÁ para adentrar a cidade
e seus espaços e permitir que eles nos adentrem também.
Esse lugar de considerar e trabalhar com as diferenças dos
corpos que ocupam cada espaço. Um lugar de permitir olhar,
conhecer, penetrar, envolver-se ao invés de despejar qualquer
coisa pronta pretensiosamente pré-definida por um olhar
estranho, estrangeiro, alheio aos espaços e aos corpos que os
ocupam.
Acompanhando agora a luta dos
estudantes secundaristas diante da truculência e falta de
diálogo do governo do Estado de São Paulo (que, com a
reorganização escolar, pretende fechar várias
escolas e conseqüentemente superlotar muitas outras) se torna
evidente a urgência dessa resistência e coragem pra
ocuparmos os espaços que são nossos com a vida que
acreditamos e queremos.
Sobre
o mesmo que apesar de
Construímos uma cidade com
as crianças de oito a dez anos. Começou
despretensiosamente, com algumas texturas e colagens sobre um rolo de
papel kraft que não acabava nunca. Aos poucos começou
a ganhar forma, a surgir lugares: teatros, aquários, escolas,
parques. Por onde começamos uma cidade?
Segundo o dicionário, lugar
é um espaço ocupado por um corpo. Percebemos que a
nossa cidade estava pouco habitada, então providenciamos a ela
um pouco de vida, humana e animal. Também faltava verde e
sombra e assim foi indo, se enchendo de cores e imaginação.
O que queremos que tenha na nossa cidade? sobrava sol, uns
quatro, pelo menos. Nessa cidade não pode ter coisa ruim,
falou o Emerson. Mas o que a gente acha que é bom é
bom pra todo mundo? Vai ter Mc Donalds na nossa cidade?
Mc donalds é bom pra todo mundo? Pra quem não é?
A cidade foi se transformando ao
longo do semestre. De tempos em tempos esquecida e lembrada,
modificada sempre que voltávamos a ela. A construção
e a desconstrução, escolher junto e fazer parte vinha
à tona sempre que voltávamos a trabalhar nela. As
técnicas, das mais variadas possíveis. Pó de giz
de lousa colado, tinta, adesivos, folhas e galhos, canetas coloridas.
Nesse ponto, faço um
parenteses necessário quando me pego pensando o quanto esse
“se vira nos 30” que nos encontramos constantemente no PIÁ
é prejudicial à valorização do nosso
trabalho. Mesmo que apesar da falta de material, de cola e
fita crepe e tinta, a gente inventa e reinventa nossos espaços.
Para dar mais cor à cidade, leveimateriais pessoais meus,
canetas e papeis e adesivos, pois o pouco que tínhamos
disponível na biblioteca estava péssimas condições.
Relutei pensando que se a gente dá conta com o pouco, se a
gente se dá pra dar conta das coisas da maneira como
gostaríamos que fosse, continuarão nos vendo como quem
não precisa de mais. Mas mais não seria demais, seria
possibilitar condições mínimas para o trabalho
ao qual nos propomos.
Pode ser. Reconheço que foi por amor e, principalmente, por querer expandir as possibilidades de experimentação diante daquela cidade a princípio um pouco pálida, que levei materiais de trabalho meu e confiei que as crianças cuidariam bem deles, e assim o fizeram. Mas antes disso, não é por amor que trabalho, não foi por amor que escolhi a educação e a arte (sempre bom pontuar isso para não perdermos de vista a seriedade com a qual nosso trabalho deve ser encarado). Não é motivo de admiração ou orgulho tirarmos do nosso próprio bolso para realizar nosso trabalho, é antes motivo para continuarmos questionando essa precariedade com a qual aprendemos a lidar e exigindo condições melhores (não apenas no que diz respeito aos materias).
Esse processo material da
construção coletiva da nossa cidade com as crianças
me fez pensar sobre como a cidade onde vivemos também é
construída e vivida à medida do apesar de: apesar
do trânsito, das filas, do preço do busão, da
falta de água, dos alagamentos, da violência policial,
da insuficiência e ineficiência da maioria dos serviços
públicos, da falta de lugares para estar e a sobra de
lugares para passar, apesar de tudo isso a gente vai
levando...
Já quase pronta, nossa cidade foi batizada pelas crianças de Todosnópoles. Nela, onde tudo foi decidido, conversado e feito coletivamente, caberia todos nós e caberia a todos nós garantir que seus espaços fossem ocupados por corpos, que esses corpos dissessem respeito às pessoas e que as pessoas pudessem criar esses lugares para e com pessoas.
Sobre
andança com criança criando dança
Ando
sozinha pelo centro da cidade. Vou e volto no meu tempo. Atravesso no
farol vermelho quando acho que dá, faço o caminho mais
ongo quando não tenho certeza de onde estou indo.
O
caminho é sempre outro quando não estamos sozinhos.
Muda o passo, muda o ritmo, muda o olhar, muda a atenção.
Sair da biblioteca Monteiro Lobato e caminhar até a Galeria
Olido, passar pela Praça da República, atravessar
apenas na faixa, esperar ansiosamente pelo farol verde. É no
verde que se atravessa.
Nessa
curta caminhada, as crianças pré-adolescentes faziam
muita questão de demonstrarem o que já conheciam do
bairro ou dos atalhos manjados pra chegar ao mesmo lugar. Minha
vó mora ali, meu pai trabalha ali, dá pra irmos por
aquela rua. Pertencer: ser próprio de. Foi
muito bom estarmos juntos forma da caixinha da biblioteca, em geral
gelada e silenciosa. Muitas das crianças por ali passam a
maior parte do tempo dentro dos prédios e condomínios,
muitas vezes sozinhas. Uns não sabiam o que era camelô
(ou
pelo menos não os entendiam sob este nome), outros acharam
super subversivo parar pra olhar os dvds de filme pornô
expostos à venda na calçada.
Percebi
nesse trajeto como era de se estranhar, aos olhos dos que passavam,
um grupo de crianças andando junto pelo centro da cidade. E
por isso mais uma vez percebi o quanto falta espaço ou falta
acesso para que as crianças possam também ocupar e se
apropriar dessa cidade.
Acesso,
neste sentido, não é apenas portas abertas, não
é só direito a acessar espaços e ideias, não
é só arquitetura que convida a ficar ou localização
geográfica. Acesso não é só poder estar
dentro, mas ter também a sua vivência refletida nas
escolhas dos modos de ser da cidade. O acesso diz respeito não
só às ‘ilhas’, mas a todo mar envolta delas que as
impede de ser um continente, o acesso implica principalmente em ver a
cidade como organismo dinâmico feito de escolhas políticas
e poéticas passíveis de serem transformadas.
Fomos
até a Galeria Olido para sermos repórteres do evento
Criança criando dança. Chegando lá,
encontramos diversas salas e muitas crianças dançando
pra lá e pra cá. Nosso combinando para o caminho , de
estarmos juntos, já não valia mais naquela ocasião.
E como dá gosto ver a autonomia deles para entrar e sair,
ficar, parar, olhar, participar do que dá vontade. Tantas
escolhas, tantos corpos pra ocupar aquele mesmo lugar. Olhar a cidade
do oitavo andar.
Na
volta, nossos corpos estavam muito mais soltos e à vontade
para deslizar por aquelas ruas cinzas e movimentadas do centro.
Caminhávamos sem nos perdermos de vista e o combinado agora
era: atravessar pisando só na faixa branca. Girando.
Derivada
do latim, a origem da palavra percurso
implica em um deslocar-se apressadamente, correr.
percurso pressupõe movimento, um
espaço percorrido no tempo. percurso não existe antes
de ser percorrido. ele está no trajeto que fizemos até
o presente, e será as escolhas que faremos daqui pra frente.
Escolher
o passo, o ritmo, o tempo, os lugares onde pisar e outros para
desviar. Escolher caminhar sobre as pedras ou aprender com elas sua
assimetria concreta de ser pedra. Com elas des(cons)truir versos e
castelos. Construir outros. E assim por diante, adiante.
[reflexo na vitrine da galeria olido] |
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