Artista educador: Elisa Araújo
CEU Jardim Paulistano
Meu primeiro ano de Piá. Chegada.
Expectativa. Sonho. Finalmente um espaço para trabalhar, vivenciar, trocar, experimentar
e fazer arte com criança da maneira que sempre quis. Da maneira que gostaria de
fazer, que tentava e insistia em fazer em outros espaços. Espaços que impunham
limites. Restrições. Enquadramentos. Que dificultavam a experimentação, o
envolvimento, o arriscar-se e descobrir-se verdadeiramente. As trocas. O
contato.
E na chegada me deparei com
outros limites. Limitações impostas pela precariedade da estrutura física do
espaço. E barreiras construídas nas próprias crianças. Crianças que não se permitiam
serem crianças. Que não sabiam como imaginar. Que não se permitiam
experimentar, perceber. Olhar. Ousar. Falar. Crianças que não acreditavam. Que
não se percebiam, que se escondiam. Tolhidas. Crianças com corpos fechados.
Fechados, porém cheios. Cheios de conteúdos, processos, vivências, vontades
latentes.
E como trazer a percepção desse
corpo? De tudo aquilo que está impresso, expresso e vivo neste corpo? Como
transpassar a barreira e trazer o olhar, sentir, perceber de cada um deles ?
Como deixar transbordar os conteúdos, emoções impressões e pensamentos? Como
fazer cada criança entrar em contato e perceber-se, e ainda se colocar e saber
que pode modelar e transformar e inventar tudo aquilo que sai dela?
E foi devagar. Foi com a escuta e
a troca. Entre as crianças, entre nós, entre as parceiras AEs, e nas paisagens
do CEU, e no contato com os outros corpos que transitavam naqueles
espaços. E foi num apoio de pé, num
movimento de bacia, numa brincadeira de estátua. E quanto mais eu entrava e
colocava meu corpo inteiro e disponível e expressivo e inventivo e artista no
movimento com eles, mais eles soltavam os deles. E soltando o corpo sem
perceber, se envolvendo inteiro no brincar, os elementos foram surgindo, as
idéias aparecendo, e mundos foram nascendo. E mundos foram crescendo. E as
crianças foram se tornando seguras de si, percebendo possibilidades. Se
permitindo experimentar. Foram experimentando, inventando, ampliando os corpos
para além de seus corpos. E os corpos foram ganhando potência cada vez maior, a
partir do momento em que percebiam e permitiam visualizar possibilidades.
Encontros. Transformações. E em determinado dia, pelos jardins do CEU, na troca
com quem passava, com algumas crianças bem pequenas que observavam, a
brincadeira virou poesia, dança, cena, arte! E quanto mais envolviam o
“público” ali instaurado pela potência de sua expressão e de seus corpos em
movimento, mais se permitiam transbordar, expressar e modelar os conteúdos e
percepções de mundo em forma de arte. Mais conscientes de si se tornavam, mais
conscientes e autônomas, mais libertas para dizer o que precisam e querem
dizer. Sem medo. Abertas. Acreditando e fazendo e transformando realidades em
novas realidades. Enxergando mundos dentro de outros mundos, vislumbrando, perseguindo
e modelando possibilidades. E trazendo e misturando com clareza a vivência
cotidiana e real, com a possibilidade e a fantasia.
Foi um processo lindo, de entrega
profunda e quase devoção. De muitas rupturas, quebras de ritmo, ruídos
ensurdecedores, falta. Carência. Precariedade. Falta de tempo, tempo esgarçado.
Exaustão. Mas o mergulho precisava ser profundo, pra trazer à tona a potência
libertadora e transformadora para cada um de nós, e todos nós como um.
“A expressão estética confere a existência em si àquilo que exprime,
instala-o na natureza como uma coisa percebida acessível a todos ou,
inversamente, arranca os próprios signos – a pessoa do ator, as cores e a tela
do pintor – de sua existência empírica e os arrebata para um outro mundo.” (Merleau-Ponty,
Maurice. Fenomenologia da Percepção. P.248)
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