Ensaio de Pesquisa-Ação
Edicléia Plácido Soares
O que é um ensaio dentro do PIÁ? Mais do que um relato e uma
amarração de referências bibliográficas sobre determinado tema que surgiu no
decorrer de ano a meu ver é um relato de vida, é a contação de uma história, descobertas,
mais um capítulo de vida, da minha vida e do encontro com outras vidas e
histórias.
Num primeiro ano na coordenação regional/formação em que não
estive efetivamente com as crianças do programa, mas estive pelas crianças em
várias instâncias e situações, pensei em escrever sobre o tempo, sobre a noção
de trabalho e prazer e do quanto esses conceitos se embaralham na função de
coordenação, talvez por que, para que o programa aconteça ele deva pulsar junto
com a gente, em nosso ritmo vital. Não
dá para chegar, cumprir a função designada e ir embora, seja ela função de
artista educador ou de coordenador, o que você vê, escuta, movimenta reverbera
em você o tempo todo... E para quem chega ao programa pela primeira vez, cabe
um tempo de adaptação como um processo de encantamento para que então
definitivamente o trabalho realizado passe a ter dimensões mais profundas.
Num ano em que pude realizar mergulhos em vários conceitos
como o brincar, o olhar antropológico, a noção de infância e vê-los
reverberando em minha dança, em minhas relações com as pessoas e com o mundo,
não poderia iniciar com a simples assinatura de um contrato de oito meses, bem
como não terminaria na conclusão de uma vigência pré-estabelecida. Encontros, descobertas
e aprofundamentos que foram possíveis por que existia a fome, existia a
ausência, e existia a percepção do que faltava, do que realmente poderia alimentar
e preencheria este “ estômago”!
Lembrei de um texto do Rubem Alves que diz assim:
”Toda a experiência de aprendizagem se inicia
com uma experiência afetiva. É a fome que põe em funcionamento o aparelho
pensador. Fome é afeto. O pensamento nasce do afeto, nasce da fome. Não
confundir afeto com beijinhos e carinhos. Afeto, do latim “affetare”, que dizer
“ir atrás”. É o movimento da alma na busca do objeto de sua fome. É o Eros
platônico, a fome que faz a alma voar em busca do fruto sonhado. (Sobre a arte
de produzir fome,)
Esta fome foi instigada ao participar de uma inicial semana de formação
que incluía os programas PIÁ e Vocacional, entretanto o PIÁ não foi nem se quer
citado pela Secretaria durante o evento, ainda menos questões relacionadas à
Infância que orientaria os mais de setenta por cento de artistas educadores
novos. Esta omissão, intencional ou não, gerou uma potência, a fome, o desejo
de contribuir como coordenadora regional/formação para que o PIÁ se auto
afirmasse enquanto Programa de Infância e Arte que tem um corpo com suas
dimensões e necessidades próprias.
Meu ano no PIÁ começou com
esta “fome” e este “desejo”. E quando participei de uma palestra na Ciranda de
Filmes, evento organizado pelos institutos Alana e a Maria Farinha Filmes, cujo
tema era “Criança e Natureza” com uma mesa integrada por um médico, uma educadora e um artista/teólogo/filósofo,
meus canais já estavam abertos para se alimentar de novos caminhos para uma
percepção de mundo e de infância que somou com esta potência iniciada até então.
Durante a palestra a educadora Rita Mendonça discutiu questões
a respeito da conexão entre o desenvolvimento embrionário e o desenvolvimento
das espécies, questão que me encantou pois havia participado há dois meses
atrás de um curso de Body Mind Movement (BMM) que abordava justamente o
desenvolvimento embrionário e as espécies, mas não fazia esta conexão com a
infância, “A natureza é uma oposição ao Humano?” uma das questões levantadas.
Foi abordado as enfermidades da infância: depressão, pressão alta, e afirmado
que isto é um "déficit" de natureza. O Brasil é o 5° pior país no ranking em relação ao contato que a
criança tem com a natureza. A natureza cura, mas a criança fica 5 horas na
escola e mais 5 horas em frente a telas.
Já Gandhy Piorsky falou do enfraquecimento dos sentidos na
modernidade, a hegemonia do olhar e a ideia de controle, da visão focal do
mundo que tira da gente a relação tátil e corporal. A importância da visão
periférica e a capacidade de absorver o mundo por outros sentidos pois “o ouvido
é um órgão da noite”, a criança percebe o mundo através da escuta. "A pele do
corpo como a pele do mundo". A intimidade das coisas... os laboratórios
clandestinos... A imaginação é uma força agregadora na criança. Citou o filme “A
Indomável Sonhadora”.
Já o médico Ricardo Guelman, reforçou a fala de Ghandy quando disse que a hegemonia da visão
não se desenvolve no útero, pois lá o que predomina é o tato e quando o bebê
nasce é a audição e só três meses depois a visão. “Nossos ossos são feitos de
calcário, somos natureza”. Segundo ele a primeira infância de 0 a 7 anos começa
dois meses antes de a gente nascer, “acordamos dentro do líquido amniótico”.
Falou do cérebro reptiliano, do cérebro mamífero que está relacionado à
inteligência emocional e ao sistema límbico. O toque materno é a referência da
primeira infância, os neurônios são espelhos que servem para imitar. Já na
segunda infância é a saída do mundo circular, a fase dos “porquês”. A terceira
infância é a travessia do território familiar para a vida adulta. “O religare”.
Falou sobre o risco de ficar na sala de aula pois o sedentarismo leva à
depressão e a depressão é um mecanismo metabólico, é uma questão intestinal.
Gandhy falou da importância do movimento e dos campos de
superação os brinquedos do fogo, os brinquedos da água e o uso dos elementos no brincar.
Todas estas questões reverberaram em mim e meses depois
reencontrei Gandhy Piorski numa oficina intitulada “ O Corpo, o Brinquedo e as
propriedades do vínculo organizada pelo Forinho da Cia Balagandança.
Nesta oficina ele explicou um pouco mais sobre como nasce sua
pesquisa sobre a imaginação e o brincar e como ela se dá na infância.
E no vídeo “O
Imaginário e o Brincar das Crianças” especifica mais ainda a relação entre
Imaginário, Infância e a sociedade contemporânea. Neste vídeo que tive o ímpeto
de transcrever por achar maravilhoso ele traça um histórico da origem do pensamento
cartesiano e sua dualidade com o pensamento dos ídolos e das imagens iniciando
com Platão chegando até Descartes e a modernidade para explicar a dificuldade
que geralmente temos ao lidar com a imaginação.
Segundo Gandhy que é teólogo, antropólogo e artista plástico,
a imaginação pode se processar por dois caminhos: do estudo formal da vida, por exemplo “esta
mesa que está aqui e pelo estudo desta mesa pode-se abstrair e retirar formas
fundamentais que são as formas da geometria, e essas formas nos ajudam a pensar
de maneira mais concatenada, mais linear”. Diz que “Platão inaugura um
pensamento sobre a geometria e o comportamento linear do racionalismo. E que
mais adiante, inaugurando uma modernidade Descartes, que por um problema
cultural numa época de conflitos religiosos, políticos e sociais, vai
querer buscar uma espécie de paz social, uma espécie de 'armistício' para que os
povos dialoguem, e este diálogo precisa ser mais 'universal', irá examinar a consciência, e ver que dentro da consciência existem níveis, e que um primeiro
nível são os sentidos, "então o que eu ouço o que eu vejo depende de meu estado,
do dia e isto é instáve'l, ‘não é possível se discutir algo de um nível de
universalidade que todos compreendam a partir dos sentidos’. Então ele foi para
uma outra instância da consciência e viu que tem a imaginação, mas que é uma coisa
que não se segura, que é sinuosa, que modifica o tempo todo e depende muito
da individualidade de cada um, que e é algo muito obscuro uma coisa que depende
da individualidade de cada um, e será difícil de negociar numa comunidade, será difícil de judeu entender o árabe ou o muçulmano. Então tem outra
instância da consciência que se conhece pouco, e Descartes diz isso, e vai
falar de uma instância de consciência de conceitos muito mais 'universais' e
pouco mutáveis, como por exemplo o infinito. Ou a ideia de grandeza, ou a ideia
de número, ou a ideia de forma, o quadrado tem todos os lados iguais para o
judeu, para o árabe ou para o cristão”.
Estas informações me fizeram refletir sobre a dificuldade que os
artistas educadores e coordenadores do programa tem em fazer com que pessoas e
equipamentos públicos, que baseiam o sucesso das atividades realizadas na ideia
de número e forma, como os racionalistas, consigam entender os princípios do
PIÁ. Estas pessoas estão presentes não somente nos equipamentos na função de
coordenadores e gestores de esporte, educação, cultura, e segurança, mas também
muitas vezes, estão dentro do programa entrando pela primeira vez como artista
educador ou coordenador.
No caso de quem entra pela primeira vez no programa como
artista educador, e traz todo um arcabouço de propostas incríveis, prontas,
coreografadas, musicadas, desenhadas, geralmente, durante o processo de
trabalho que é de contaminação entre os artistas educadores por que trabalham em dupla e em equipe, e entre os artistas educadores e as crianças
que participam do PIÁ, geralmente, este arcabouço vai se esvaziando e dando
espaço para a escuta, a sensibilidade e a interação, para que o PIÁ aconteça de
fato.
Mas como lidar com a questão que nos afeta diametralmente,
que é a relação entre o programa e a política que geralmente impera nos
equipamentos presentes na equipe de segurança, nos gestores de esporte,
educação ou cultura? Entre a questão da preferência do programa em valorizar o
processo, e muitas vezes o caos, a bagunça, imprecisão e a abertura para o
desconhecido que dispensa planos de aula muito rígidos, talvez por entender que
não estamos lá para darmos uma “aula” e as crianças “aprender” algo, mas para
realizar um “encontro” olhando para a criança como fazedora de cultura e dialogando
com esta cultura, que possui a sua visão de mundo e seus saberes. Posição esta
que muitas vezes coloca a gente no final da fila de prioridades na hora da
distribuição de salas no equipamento, afinal de contas “o PIÁ tem poucos
alunos” não tem valoração quantitativa que é o que mais interessa para as
estatísticas?
Consciente das dificuldades que já são antigas e não são
poucas, e que alimentam nossa fome em encontrar alternativas para a formação da
“comunidade” de gestores e coordenadores que recebem o PIÁ na cidade. Bem como
fazer com que nosso trabalho fosse divulgado em outras instâncias, enquanto equipe de coordenação regional/formação tomamos a
estratégia de realizarmos uma série de diálogos que iniciou com uma
intra-formação entre os artistas educadores durante a semana de formação
realizada em julho, onde ao contrário das outras edições, surgiram uma série
de discussões que nunca entraram como tema no PIÁ, era o PIÁ com fome de falar de si mesmo e conhecer suas visceras, foram propostos discussões a respeito da questão do racismo na
infância, o sexismo e gênero, e a oficina Menu de Risco que problematizava exatamente
esta relação entre o PIÁ e a política de segurança do equipamento público e os
benefícios do risco para o desenvolvimento da criança.
Durante a segunda edição do encontro “Processos Artísticos,
Cidades, Infância (s) ” recebemos a pesquisadora Marina Marcondes Machado e a
antropóloga da infância Adriana Friedman.
Marina que nos fez lembrar que “a cada noção de infância há
uma noção de adulto” e nos convidou a lançar desconfiança sobre as verdades
estratificadas, ela ainda cita Walter Kohan quando diz que a infância não é
apenas uma questão cronológica: a infância é uma condição da experiência. É
preciso ampliar os horizontes da temporalidade.
Segundo Adriana Friedman a antropologia olha a criança como
um grupo social e a criança é todo dia, toda hora um ator social. Precisamos
aquietar o “adultocentrismo”. A questão do adultocentrismo na minha opinião está
relacionada às visões de pessoas que valorizam a ideia de número, a ideia de forma e que
muitas vezes se enfurecem quando veem uma criança correr num corredor ou
deslizar num saguão vazio explorando a sua espacialidade. A proposta da 3ª
edição da Revista PIAPURU tem como tema a "Criança em primeira pessoa" para
justamente enfatizar este ponto e tentar dar mais voz às crianças e à cultura
que elas produzem no PIÁ.
Iniciar uma conversa com os coordenadores e gestores dos
equipamentos foi a ação mais importante do programa na minha opinião,
levantando as nuvens que muitas vezes encobrem a comunicação e geram fantasmas
que nem sempre existem. O simples espaço para que se realize este encontro
ainda que sem a presença das equipes do Piá no equipamento foi importante e
gerou reverberações. Antes de mais nada é fundamental e primordial
estabelecermos uma escuta, e nos auto afirmarmos enquanto programa da
Secretaria de Cultura, pois a tendência é os profissionais do PIÁ serem tratados
como oficineiros, free lancers, sem vínculo com o que é pensado e produzido na
cidade e na Secretaria de Cultura.
Uma outra instância de diálogo que se abriu foi dentro do
Conselho Municipal de Cultura onde a Cultura da Infância agora terá representatividade como segmento através de uma cadeira, indiretamente
o PIÁ poderá se consolidar como uma alternativa concreta de política pública
que leva em consideração a Infância e a criança como ator social.
Enfim termino aqui meu ensaio acreditando que estamos
trilhando um caminho que cria redes, circuitos de diálogos, movimentos, sons e
espaços que dialogam com a cidade, que interferem e absorvem seus bons fluídos.
Sem esquecer que estes circuitos e redes atravessaram minha vida, minha dança e
minha visão de mundo e de infância o tempo todo.
Bibliografia
O Imaginário, e o brincar das
crianças: https://www.youtube.com/watch?v=5Fb1iF1_9Z0
A Indomável Sonhadora: https://youtu.be/z2DQFysH4Fg
A Indomável Sonhadora: https://youtu.be/z2DQFysH4Fg
Rubem Alves: A arte de produzir
fome:
Sugestões para estimular o apetite:
http://www.educacaopublica.rj.gov.br/biblioteca/educacao/0184.html
http://territoriodobrincar.com.br/biblioteca/
http://territoriodobrincar.com.br/biblioteca/
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