“
UM BARCO”
Rose
de Oliveira
Artista
Educadora de teatro
Equipe
Sul 3
CEU
Navegantes
“... No mar a *Poita e o Barco conversam pela
primeira vez.
POITA ROSIMÉRI – Oi.
SARGENTO EVILÁZIO – Oi.
POITA ROSIMÉRI – Quem é
você?
SARGENTO EVILÁZIO –
Sargento Evilázio. E você?
POITA ROSIMÉRI – Eu?
SARGENTO EVILÁZIO – Você.
POITA ROSIMÉRI – Estou
aqui.
SARGENTO EVILÁZIO – Não
tem um nome?
POITA ROSIMÉRI – Eu.
SARGENTO EVILÁZIO – Você.
POITA ROSIMÉRI – Não sei.
SARGENTO EVILÁZIO – Temos
que arranjar um, onde já se viu uma Poita sem nome?
POITA ROSIMÉRI – É
verdade. Onde já se viu uma Poita sem nome? (pausa) Mas o que é uma Poita?
SARGENTO EVILÁZIO – Uma
bóia amarrada a uma geladeira velha.
POITA ROSIMÉRI – E para
que serve uma Poita?
SARGENTO EVILÁZIO – Para
segurar os barcos que ainda não estão atracados.
POITA ROSIMÉRI – O que
são barcos?
SARGENTO EVILÁZIO – Eu
sou um barco.
POITA ROSIMÉRI – Entendi.
(...)”
(Trecho da peça “Cais ou
da indiferença das embarcações” – Kiko Marques)
No bairro do Grajaú tem
muita água. Tem uma Represa que se chama Billings. No Grajaú tem um lugar que
se chama “Cantinho do céu”. No Cantinho do céu, existe um outro CEU que se
chama Navegantes. O CEU Navegantes está localizado, praticamente, ao lado da
Represa Billings. No CEU Navegantes tem um barco. O barco fica ao lado da
piscina no lugar onde as crianças desejam estar. Porque a água atrai. A água
sacia a sede. A água lava e refresca. A água nos leva com suas “marés” e com
seus “humores...” A água pode ser memória.
Em meados de julho, fui
chamada para fazer parte da edição PIÁ 2015. Sabia que iria atuar na região
sul, no CEU Navegantes. Naquele momento estava “brincando” de ser Poita de um Barco
(abandonado, mas cheio de memórias) na peça “Cais ou da indiferença das
embarcações” (Velha Companhia). Quando cheguei no equipamento uma proposta de
pesquisa-ação já estava em andamento. O “ Ferrugem ” (Coordenador de Cultura do
CEU Navegantes) sugeriu a seguinte “brincadeira”: Decorar o barco de competição
que estava esquecido na área de convivência da piscina. Um barco sem função e
sem memória... Me espantei com a
sincronicidade! Levada por nova “maré” e no bom “humor” das águas de 2015,
estava no CEU Navegantes para ser, de novo, Poita! Porém, dessa vez, uma Poita
A.E e não estaria sozinha. Seríamos duas Poitas A.Es. Viviane Godoy e eu. Segundo o “ Ferrugem ”, o barco esquecido na
área de convivência da piscina poderia ser um símbolo de memória para a
comunidade. Uma proposta sensível, inspiradora e provocadora que nos moveu ao
longo dos meses com as crianças.
Os piás viraram sereias,
tubarões, peixes, plantas ... Criaram sonoridades, “ no fundo do mar ”, com
diversos materiais (garrafas PET, latões, latinhas, palitos de madeira, chocalhos,
apitos). Construíram barcos com tatames de E.V.As e tecidos. Transformaram-se
em capitães e piratas numa guerra com bombas de isopor onde todos foram parar
numa ilha deserta... Entre outras brincadeiras. Em determinado momento,
percebemos outras vontades das crianças e assim passeamos também por outros
assuntos como: a cultura indiana, o circo e o folclore brasileiro. Além disso,
as crianças (11 a 13 anos) recolheram registros, em áudio, dos pais, parentes e
funcionários do equipamento. Com um gravador, portátil, de fitas cassete, as
crianças realizaram entrevistas para conhecer o passado, entender o presente e
descobrir os anseios de melhoria para o bairro no futuro. Interessante perceber
as possibilidades de diálogos entre gerações. Quando um depoimento novo era
apresentado, no gravador ou ao vivo, em entrevistas presenciais dos
funcionários do CEU durante os encontros, a escuta era curiosa, única e
especial de ambas as partes. Os
registros, em áudio, farão parte da Mostra Final do PIÁ e ficarão no acervo do
CEU Navegantes para, quem sabe um dia, ser disponibilizado para comunidade,
dando “voz “ao barco sem memória. Ele, o barco, está decorado com os desenhos que
foram produzidos pelas crianças durante todo o processo da pesquisa-ação. E “decorar”
extrapolou a ideia de embelezar e enfeitar um objeto esquecido e, ganhou força
no sentido de “perpetuar” na memória toda a experiência
com as crianças durante esses meses de PIÁ no CEU Navegantes. A chuva, o vento
e o sol poderão apagar com o tempo os desenhos impresso no barco pelas
crianças, se não houver cuidado e desejo de preservação. Ainda assim, a
lembrança permanecerá em nós ...
Imergimos nas águas desse
PIÁ no CEU Navegantes. Assistimos o belo espetáculo “ À margem” (Cia Humbalada
de Teatro), às margens da Represa Billings, com nossos piás, num domingo frio e
cinzento. Experiência extremamente importante para entender, um pouco mais, o
contexto social em que as crianças e adultos estão (e estamos) inseridos. E,
sobretudo, vivenciamos uma experiência estética genuína de um teatro que nada
contra a corrente do circuito comercial. Para nós, e para as crianças foi
enriquecedor por constatar que existem infinitas formas de criar arte seja onde
for. E as circunstâncias que se apresentam em nossas vidas podem ser
inspirações para diversas criações em arte.
Foi um processo bonito e
importante por ser a primeira parceria entre o CEU Navegantes e o PIÁ, mas que
poderia ser potencializado de outras formas se fossemos um quarteto de AEs
nessa edição, mantendo os princípios que se propõe o Programa.
O PIÁ acaba rápido. É preciso
estar aberto para aproveitar essa “onda“ que vai passar. Porque depois,
seguiremos em outras águas .... Encontraremos outros “barcos...” E como é
(quase) impossível a continuidade, tudo será sempre memória...
*POITA – Corpo pesado que
as pequenas embarcações de pesca usam para fundear. Âncora.
Que bela "história", que bom que vcs. encontraram o Ferrugem e que souberam dar voz a um desejo dele e que depois virou o do Piá e por quantas águas puderam navegar!
ResponderExcluirObrigada Janete,
ResponderExcluirFoi um belo processo com as crianças!
Vai deixar saudades... Beijo!