segunda-feira, 14 de dezembro de 2015



“ UM BARCO”
                                              Rose de Oliveira
                                              Artista Educadora de teatro
                                              Equipe Sul 3
                                              CEU Navegantes



“...  No mar a *Poita e o Barco conversam pela primeira vez.
POITA ROSIMÉRI – Oi.
SARGENTO EVILÁZIO – Oi.
POITA ROSIMÉRI – Quem é você?
SARGENTO EVILÁZIO – Sargento Evilázio. E você?
POITA ROSIMÉRI – Eu?
SARGENTO EVILÁZIO – Você.
POITA ROSIMÉRI – Estou aqui.
SARGENTO EVILÁZIO – Não tem um nome?
POITA ROSIMÉRI – Eu.
SARGENTO EVILÁZIO – Você.
POITA ROSIMÉRI – Não sei.
SARGENTO EVILÁZIO – Temos que arranjar um, onde já se viu uma Poita sem nome?
POITA ROSIMÉRI – É verdade. Onde já se viu uma Poita sem nome? (pausa) Mas o que é uma Poita?
SARGENTO EVILÁZIO – Uma bóia amarrada a uma geladeira velha.
POITA ROSIMÉRI – E para que serve uma Poita?
SARGENTO EVILÁZIO – Para segurar os barcos que ainda não estão atracados.
POITA ROSIMÉRI – O que são barcos?
SARGENTO EVILÁZIO – Eu sou um barco.
POITA ROSIMÉRI – Entendi. (...)”
                                                               
(Trecho da peça “Cais ou da indiferença das embarcações” – Kiko Marques)


No bairro do Grajaú tem muita água. Tem uma Represa que se chama Billings. No Grajaú tem um lugar que se chama “Cantinho do céu”. No Cantinho do céu, existe um outro CEU que se chama Navegantes. O CEU Navegantes está localizado, praticamente, ao lado da Represa Billings. No CEU Navegantes tem um barco. O barco fica ao lado da piscina no lugar onde as crianças desejam estar. Porque a água atrai. A água sacia a sede. A água lava e refresca. A água nos leva com suas “marés” e com seus “humores...” A água pode ser memória.
Em meados de julho, fui chamada para fazer parte da edição PIÁ 2015. Sabia que iria atuar na região sul, no CEU Navegantes. Naquele momento estava “brincando” de ser Poita de um Barco (abandonado, mas cheio de memórias) na peça “Cais ou da indiferença das embarcações” (Velha Companhia). Quando cheguei no equipamento uma proposta de pesquisa-ação já estava em andamento. O “ Ferrugem ” (Coordenador de Cultura do CEU Navegantes) sugeriu a seguinte “brincadeira”: Decorar o barco de competição que estava esquecido na área de convivência da piscina. Um barco sem função e sem memória...  Me espantei com a sincronicidade! Levada por nova “maré” e no bom “humor” das águas de 2015, estava no CEU Navegantes para ser, de novo, Poita! Porém, dessa vez, uma Poita A.E e não estaria sozinha. Seríamos duas Poitas A.Es. Viviane Godoy e eu.  Segundo o “ Ferrugem ”, o barco esquecido na área de convivência da piscina poderia ser um símbolo de memória para a comunidade. Uma proposta sensível, inspiradora e provocadora que nos moveu ao longo dos meses com as crianças.
Os piás viraram sereias, tubarões, peixes, plantas ... Criaram sonoridades, “ no fundo do mar ”, com diversos materiais (garrafas PET, latões, latinhas, palitos de madeira, chocalhos, apitos). Construíram barcos com tatames de E.V.As e tecidos. Transformaram-se em capitães e piratas numa guerra com bombas de isopor onde todos foram parar numa ilha deserta... Entre outras brincadeiras. Em determinado momento, percebemos outras vontades das crianças e assim passeamos também por outros assuntos como: a cultura indiana, o circo e o folclore brasileiro. Além disso, as crianças (11 a 13 anos) recolheram registros, em áudio, dos pais, parentes e funcionários do equipamento. Com um gravador, portátil, de fitas cassete, as crianças realizaram entrevistas para conhecer o passado, entender o presente e descobrir os anseios de melhoria para o bairro no futuro. Interessante perceber as possibilidades de diálogos entre gerações. Quando um depoimento novo era apresentado, no gravador ou ao vivo, em entrevistas presenciais dos funcionários do CEU durante os encontros, a escuta era curiosa, única e especial de ambas as partes.  Os registros, em áudio, farão parte da Mostra Final do PIÁ e ficarão no acervo do CEU Navegantes para, quem sabe um dia, ser disponibilizado para comunidade, dando “voz “ao barco sem memória. Ele, o barco, está decorado com os desenhos que foram produzidos pelas crianças durante todo o processo da pesquisa-ação. E “decorar” extrapolou a ideia de embelezar e enfeitar um objeto esquecido e, ganhou força no sentido   de “perpetuar” na memória toda a experiência com as crianças durante esses meses de PIÁ no CEU Navegantes. A chuva, o vento e o sol poderão apagar com o tempo os desenhos impresso no barco pelas crianças, se não houver cuidado e desejo de preservação. Ainda assim, a lembrança permanecerá em nós ...

Imergimos nas águas desse PIÁ no CEU Navegantes. Assistimos o belo espetáculo “ À margem” (Cia Humbalada de Teatro), às margens da Represa Billings, com nossos piás, num domingo frio e cinzento. Experiência extremamente importante para entender, um pouco mais, o contexto social em que as crianças e adultos estão (e estamos) inseridos. E, sobretudo, vivenciamos uma experiência estética genuína de um teatro que nada contra a corrente do circuito comercial. Para nós, e para as crianças foi enriquecedor por constatar que existem infinitas formas de criar arte seja onde for. E as circunstâncias que se apresentam em nossas vidas podem ser inspirações para diversas criações em arte.
Foi um processo bonito e importante por ser a primeira parceria entre o CEU Navegantes e o PIÁ, mas que poderia ser potencializado de outras formas se fossemos um quarteto de AEs nessa edição, mantendo os princípios que se propõe o Programa.
O PIÁ acaba rápido. É preciso estar aberto para aproveitar essa “onda“ que vai passar. Porque depois, seguiremos em outras águas .... Encontraremos outros “barcos...” E como é (quase) impossível a continuidade, tudo será sempre memória...



*POITA – Corpo pesado que as pequenas embarcações de pesca usam para fundear. Âncora.






2 comentários:

  1. Que bela "história", que bom que vcs. encontraram o Ferrugem e que souberam dar voz a um desejo dele e que depois virou o do Piá e por quantas águas puderam navegar!

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  2. Obrigada Janete,
    Foi um belo processo com as crianças!
    Vai deixar saudades... Beijo!

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