segunda-feira, 28 de dezembro de 2015

O som que vem do CEU: relatos e reflexões sobre ruído, crianças e arte

Thaís dos Santos Marcolino
Artista-Educadora de Música
CEU Jardim Paulistano
CEU Jardim Paulistano - uma quarta-feira, às 8h00
São oito horas da manhã, a aula de ginástica já começou, e por enquanto, estão no alongamento. Pouco depois, em ritmo constante e fala pouco melodiosa, inicia-se um exercício (ou seria um mantra?): sobe, sobe, desce, desce. Vários minutos se passam e (finalmente) o exercício muda. Ligam o rádio, músicas animadas para dar ritmo ao exercício. Às nove horas a aula de alongamento começa. É necessário um bom repertório que auxilie a atividade, visando a concentração e estímulo dos participantes: Elton John, Kenny G, Enya, Djavan etc. Às dez horas iniciam-se os ensaios com mulheres da terceira idade para eventos diversos. Elas possuem dificuldade em executar as coreografias, logo, quanto mais ensaios, melhor: uma hora por um ou dois meses de “Vira-virou” tocada incessantemente; mais um ou dois meses de Elvis cantando “It’s now or never” e “House Rock”. Do andar de cima não podemos ver a coreografia, mas nós - crianças e artistas-educadoras do PIÁ - sabemos e cantamos as músicas decór.
Subo até a Gestão do CEU para minhas duas horas vagas para o almoço. A conversa é quase sempre animada e às vezes o rádio também canta. Pela janela da sala de reuniões, posso ver e escutar a entrada e saída de estudantes, sempre conversando, brincando, correndo... Aqui o som do vento é constante e o ruído também.
A quadra é movimentada de manhã e à tarde. Aulas de educação física, basquete, vôlei, futebol... tanto faz, a bola vai quicando e os jogadores vibram. Em alguns dias, a bola dá lugar a alguns eventos, como o campeonato de xadrez, com direito a Hino Nacional, diversas escolas e alunos participantes, entrega de prêmios e euforia. Às vezes também é necessário algum ajuste em sua estrutura, então martelos, serras e furadeiras se fazem ouvir por todo o prédio. Nestes dias em que a quadra está ocupada ou em “recuperação”, as crianças da EMEI fazem as aulas de educação física no mesmo andar da sala em que o PIÁ fica. Acredito não ser necessário descrever a voz e a animação delas correndo e brincando.
Transformando ruído em arte: Jornal do PIÁ e o jogo das paisagens sonoras
Desde o início do PIÁ-2015, a turma de quarta-feira de manhã estava em um processo muito teatral, pois decidiram fazer programas de TV (séries, novelas, programa infantil etc.). No dia 10/06, ainda dentro deste processo, surgiu a proposta de criarmos um telejornal do PIÁ. As crianças decidiram quem seriam os ancoras, os repórteres e criaram as pautas. A Karen, de 12 anos, quis falar sobre os problemas que encontrávamos no CEU semanalmente: armário quebrado, invasão de pombos e, é claro, do barulho excessivo. Ela mesma diz no vídeo que “os problemas são todos os dias, não só quando a gente vem”. Nós gravamos semanalmente muitos vídeos, a fim de montar a programação da TV, no entanto, em absolutamente todos eles, é perceptível o ruído excessivo. Por falta de equipamento mais adequado (utilizamos o celular em qualidade alta para as gravações), o barulho interferiu negativamente em nosso processo e tornou os vídeos praticamente inutilizáveis.
Durante o encontro de 26/08, com esta mesma turma, propus às crianças um jogo diferente. Levei figuras de paisagens diversas (floresta, escola, feira, cidade e praia), conversamos sobre que sons encontrávamos em cada um destes lugares e o que/quem produzia estes sons. Em círculo, nós deveríamos fazer os sons de cada um destes lugares, sempre prestando atenção em quais sons eram constantes, quais eram intervenções e tomando cuidado para fazer sons diferentes um do outro. Foi uma experiência interessante.  Aos poucos as crianças entraram na proposta e os sons também ganhavam ações, como correr da chuva na praia, ser assaltado na Av. Paulista, conversar com vendedores, responder as questões feitas pela professora da escola etc. Quando minhas sugestões de lugares acabaram, espontaneamente, eles quiseram representar o som do CEU. O que ouvimos e representamos foi o ruído excessivo descrito anteriormente, com direito ao barulho da quadra, instruções do professor de ginástica e as músicas da aula de alongamento e dos ensaios que a seguiam.
* * *
A proposta deste ensaio de pesquisa-ação surgiu em uma quarta-feira, em minha hora de almoço no CEU Jardim Paulistano. Busquei durante algum tempo, um tema que fosse parte do dia-a-dia com as crianças, que me fizesse refletir e que tivesse a ver com música. Eis que no meio de meu pensar nesta quarta-feira já citada, conversas e um rádio ligado interromperam minha concentração, então comecei a lembrar e a tomar consciência que todos os meus dias de PIÁ haviam sido “interrompidos” por ruídos externos aos encontros.
Para começar, é importante explicar a estrutura física dentro da qual o PIÁ do CEU Jardim Paulistano está inserido. Os encontros acontecem em uma sala chamada “Espaço Cultural”, localizada no 1º andar do BEC – Bloco de Esporte e Cultura, que nada mais é do que uma estrutura de três andares. No térreo existe um amplo espaço, utilizado para as aulas de alongamento e ginástica. Ao lado, existe uma quadra esportiva – utilizada para aulas de vôlei, basquete, futebol e educação física da EMEI e EMEF, além de salas para outras aulas. No 1º andar, temos nossa sala (o espaço cultural) e um espaço amplo, como o do térreo, utilizado para aulas de judô/karatê, e eventualmente, para aulas de educação física da EMEI, ginástica, alongamento e apresentações musicais/teatrais/culturais diversas. Acima de nós, temos mais algumas salas, que quase não foram utilizadas nos momentos em que estávamos lá. Vale ressaltar que a sala do “Espaço Cultural” não é fechada, ou seja, as paredes são de plástico, não vedam toda a sua estrutura e não há isolamento acústico, então, do primeiro andar, podemos acompanhar tranquilamente tudo o que acontece dentro do BEC inteiro (vendo ou escutando).
Outro problema deste CEU são os pombos. Há uma tentativa de controle realizado lá, mas até o momento, não fez com que os pombos se afastassem de forma efetiva. Nossa sala, os instrumentos musicais do CEU e os colchonetes, são exemplos de sujeira de pombos. Como estamos falando de ruído especificamente, os pombos também acabam interferindo desta maneira nos encontros do PIÁ: quando os funcionários do CEU soltam bombas a fim de espantá-los, ou quando eles limpam as salas acima de nós, mais barulho e sujeira surgem em nossa sala.
O NAC (Núcleo de Ação Cultural) do CEU Jd. Paulistano, responsável por nos auxiliar e acompanhar as atividades do PIÁ, na medida do possível, tenta nos ajudar com relação a estes problemas. O que acontece é que estas são questões estruturais que demandam tempo e dinheiro. Por outro lado, no momento, não existe nenhum outro espaço fechado em que possamos realizar os encontros com as crianças, ou seja, nos dias de sol ainda podemos escolher ir para espaços abertos, mas no frio ou na chuva, com ou sem barulho, com ou sem sujeira de pombos, temos que ficar na nossa sala dentro do BEC.
Vale ressaltar que, apesar dos casos relatados terem “quarta-feira” como dia símbolo, o ruído excessivo ocorre todos os dias, o dia todo.
Reflexões sobre o tema fundamentadas em Murray Schafer
O compositor e educador canadense Raymond Murray Schafer nasceu em 1933 e, segundo Fonterrada (2004, p. 56), foi “[a] primeira pessoa a desenvolver pesquisa sistemática a respeito do som ambiental”.  Em 1965, foi contratado pela The University of Simon Fraser, em Vancouver, onde lecionou por dez anos e desenvolveu “uma pesquisa com a proposta de analisar o ambiente acústico como um todo e sua influência na vida das pessoas” (MIGUEL, 2006, p. 24). Este projeto recebeu o nome “The World Soundscape Project” (Projeto Paisagem Sonora Musical) e foi determinante para a criação do que chamamos hoje de ecologia acústica:
[...] Esse projeto, chamado “The World Soundscape Project”, era um estudo multidisciplinar sobre o som ambiental, suas características e modificações sofridas no decorrer da história e sobre o significado e o simbolismo desses sons para as comunidades afetadas por eles. A grande preocupação de Murray Schafer, nessa pesquisa, era conferir um enfoque positivo à questão da poluição sonora e do ruído ambiental indiscriminado, questões essas, segundo o autor, geralmente tratadas através de leis restritivas. Sua proposta era a elaboração de um projeto acústico mundial que, através da conscientização a respeito dos sons existentes, pudesse prever o tipo de sonorização desejada para determinado ambiente. (FONTERRADA In: SCHAFER, 1991, p. 9 e 10)
Além destes conceitos para ecologia acústica, Schafer também criou o termo soundscape (traduzido como paisagem sonora), que é uma analogia a palavra landscape, que significa paisagem. A partir desta pesquisa muitas outras se realizaram e foram formados grupos para a discussão do ambiente sonoro (MIGUEL, op. cit., p. 24). Até que em 1993 é criado o World Forum for Acoustic Ecology, com o objetivo de pesquisar e documentar trabalhos de ecologia acústica, além de editar um jornal bianual denominado Soundscape.
Schafer (1991, p. 68) diz que “ruído é qualquer som que interfere. É o destruidor do que queremos ouvir”. Uma das propostas mais preciosas do PIÁ é escutar as crianças, descobrindo seus desejos, medos, gostos, sonhos e histórias.  Infelizmente, muitas vezes o ruído interferiu nesta escuta atenta, nos compartilhamentos de ideias, nas tomadas de decisão, no espaço utilizado para os encontros e, quiçá, até na saúde das crianças e das artistas educadoras. Para contornar a situação, principalmente nos dias em que não podíamos ficar em outro espaço, sempre foi necessário falar mais alto e a exposição aos ruídos foi constante por um período mínimo de duas ou três horas. Não possuo um decibelímetro para afirmar com precisão a que nível de ruídos ficamos expostos e quais os danos exatos para a nossa saúde, mas dores de cabeça, dores de garganta e rouquidão foram queixas frequentes.
Além disso, é notável que as crianças não percebem sonoramente o ambiente em que estão inseridas. Em seu livro, A Afinação do Mundo, Schafer afirma que “a poluição sonora ocorre quando o homem não ouve cuidadosamente. Ruídos são os sons que aprendemos a ignorar” (2001, p. 18). A escola, os carros na rua e os aparelhos eletrônicos que temos em nossa casa e em nossas mãos, são exemplos de sons que prejudicam nossa audição, e nós, muitas vezes, nem nos damos conta. Em vários encontros as crianças demonstraram falta de concentração e uma agitação excessiva, as quais relaciono diretamente com o contexto sonoro. Para elucidar tais fatos, vale mais um relato: no encontro do dia 03/09 (uma quinta-feira de manhã), as crianças estavam neste estado de espírito – dispersas e inquietas – e o ambiente estava bastante ruidoso. No final do encontro, Elisa e eu pedimos para que todos fechassem os olhos, respirassem fundo e tentassem ouvir os sons que estavam acontecendo do lado de fora da sala. Ninguém quis fechar os olhos, a respiração continuou rápida e, no mínimo sinal de “silêncio”, eles mesmos faziam barulhos (risos, cadeira etc.). Por fim, antes de irem embora, perguntamos a eles o que gostaram ou não do encontro. As crianças foram incisivas quanto ao que não gostaram: o momento do silêncio.
Silêncio é uma caixa de possibilidades. Tudo pode acontecer para quebrá-lo.
O silêncio é a característica mais cheia de possibilidades da música. Mesmo quando cai depois de um som, reverbera com o que foi esse som e essa reverberação continua até que outro som o desaloje ou ele se perca na memória. Logo, mesmo indistintamente, o silêncio soa.
O homem gosta de fazer sons e rodear-se com eles. Silêncio é o resultado da rejeição da personalidade humana. O homem teme a ausência de sons como teme a ausência de vida (SCHAFER, 1991, p. 71).
Portanto, busquei com este ensaio chamar a atenção para os ruídos excessivos no CEU Jardim Paulistano e mostrar, através dos relatos, como eles interferiram em nossos encontros e no convívio com as crianças. Na maior parte do tempo ele nos causou problemas, gerando desconforto físico e até mudança de espaço. Porém, acredito que as crianças começaram a perceber o ruído de uma maneira diferente, despertando uma reflexão crítica sobre ele, seja criando artisticamente ou questionando o porquê de ficarmos em um espaço tão barulhento. Talvez desta forma, aprendendo a não ignorar estes sons e tomando consciência do problema, aos poucos as crianças vão se apropriando dos espaços que as cercam e levando para as suas famílias a ideia de um mundo com menos poluição sonora.






Referências
FONTERRADA, M. T. Música e meio ambiente: a ecologia sonora. São Paulo: Irmãos Vitale, 2004 – (Conexões musicais).

MIGUEL, F. Entre ouvires: a paisagem sonora da Igreja Batista em Jardim Utinga em foco. 2006. 193 f. Dissertação (Mestrado). Instituto de Artes, UNESP. São Paulo, 2006.

SCHAFER, R. M. A afinação do mundo. São Paulo: Editora UNESP, 2001.

__________. O ouvido pensante. São Paulo: Editora UNESP, 1991.


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