Thaís dos Santos Marcolino
Artista-Educadora de Música
CEU Jardim Paulistano
CEU Jardim Paulistano -
uma quarta-feira, às 8h00
São oito horas da
manhã, a aula de ginástica já começou, e por enquanto, estão no alongamento.
Pouco depois, em ritmo constante e fala pouco melodiosa, inicia-se um exercício
(ou seria um mantra?): sobe, sobe, desce, desce. Vários minutos se passam e
(finalmente) o exercício muda. Ligam o rádio, músicas animadas para dar ritmo
ao exercício. Às nove horas a aula de alongamento começa. É necessário um bom
repertório que auxilie a atividade, visando a concentração e estímulo dos
participantes: Elton John, Kenny G, Enya, Djavan etc. Às dez horas iniciam-se
os ensaios com mulheres da terceira idade para eventos diversos. Elas possuem
dificuldade em executar as coreografias, logo, quanto mais ensaios, melhor: uma
hora por um ou dois meses de “Vira-virou” tocada incessantemente; mais um ou
dois meses de Elvis cantando “It’s now or never” e “House Rock”. Do andar de
cima não podemos ver a coreografia, mas nós - crianças e artistas-educadoras do
PIÁ - sabemos e cantamos as músicas decór.
Subo até a Gestão do
CEU para minhas duas horas vagas para o almoço. A conversa é quase sempre
animada e às vezes o rádio também canta. Pela janela da sala de reuniões, posso
ver e escutar a entrada e saída de estudantes, sempre conversando, brincando,
correndo... Aqui o som do vento é constante e o ruído também.
A quadra é
movimentada de manhã e à tarde. Aulas de educação física, basquete, vôlei,
futebol... tanto faz, a bola vai quicando e os jogadores vibram. Em alguns
dias, a bola dá lugar a alguns eventos, como o campeonato de xadrez, com
direito a Hino Nacional, diversas escolas e alunos participantes, entrega de
prêmios e euforia. Às vezes também é necessário algum ajuste em sua estrutura,
então martelos, serras e furadeiras se fazem ouvir por todo o prédio. Nestes
dias em que a quadra está ocupada ou em “recuperação”, as crianças da EMEI
fazem as aulas de educação física no mesmo andar da sala em que o PIÁ fica. Acredito
não ser necessário descrever a voz e a animação delas correndo e brincando.
Transformando ruído em
arte: Jornal do PIÁ e o jogo das paisagens sonoras
Desde o início do PIÁ-2015,
a turma de quarta-feira de manhã estava em um processo muito teatral, pois decidiram
fazer programas de TV (séries, novelas, programa infantil etc.). No dia 10/06, ainda
dentro deste processo, surgiu a proposta de criarmos um telejornal do PIÁ. As crianças
decidiram quem seriam os ancoras, os repórteres e criaram as pautas. A Karen,
de 12 anos, quis falar sobre os problemas que encontrávamos no CEU
semanalmente: armário quebrado, invasão de pombos e, é claro, do barulho excessivo.
Ela mesma diz no vídeo que “os problemas são todos os dias, não só quando a
gente vem”. Nós gravamos semanalmente muitos vídeos, a fim de montar a
programação da TV, no entanto, em absolutamente todos eles, é perceptível o
ruído excessivo. Por falta de equipamento mais adequado (utilizamos o celular
em qualidade alta para as gravações), o barulho interferiu negativamente em
nosso processo e tornou os vídeos praticamente inutilizáveis.
Durante
o encontro de 26/08, com esta mesma turma, propus
às crianças um jogo diferente. Levei figuras de paisagens diversas (floresta,
escola, feira, cidade e praia), conversamos sobre que sons encontrávamos em
cada um destes lugares e o que/quem produzia estes sons. Em círculo, nós
deveríamos fazer os sons de cada um destes lugares, sempre prestando atenção em
quais sons eram constantes, quais eram intervenções e tomando cuidado para
fazer sons diferentes um do outro. Foi uma experiência interessante. Aos poucos as crianças entraram na proposta e
os sons também ganhavam ações, como correr da chuva na praia, ser assaltado na
Av. Paulista, conversar com vendedores, responder as questões feitas pela
professora da escola etc. Quando minhas sugestões de lugares acabaram,
espontaneamente, eles quiseram representar o som do CEU. O que ouvimos e representamos
foi o ruído excessivo descrito anteriormente, com direito ao barulho da quadra,
instruções do professor de ginástica e as músicas da aula de alongamento e dos
ensaios que a seguiam.
* * *
A proposta deste
ensaio de pesquisa-ação surgiu em uma quarta-feira, em minha hora de almoço no
CEU Jardim Paulistano. Busquei durante algum
tempo, um tema que fosse parte do dia-a-dia com as crianças, que me fizesse
refletir e que tivesse a ver com música. Eis que no meio de meu pensar nesta
quarta-feira já citada, conversas e um rádio ligado interromperam minha concentração,
então comecei a lembrar e a tomar consciência que todos os meus dias de PIÁ
haviam sido “interrompidos” por ruídos externos aos encontros.
Para começar, é
importante explicar a estrutura física dentro da qual o PIÁ do CEU Jardim
Paulistano está inserido. Os encontros acontecem em uma sala chamada “Espaço
Cultural”, localizada no 1º andar do BEC – Bloco de Esporte e Cultura, que nada
mais é do que uma estrutura de três andares. No térreo existe um amplo espaço,
utilizado para as aulas de alongamento e ginástica. Ao lado, existe uma quadra
esportiva – utilizada para aulas de vôlei, basquete, futebol e educação física
da EMEI e EMEF, além de salas para outras aulas. No 1º andar, temos nossa sala
(o espaço cultural) e um espaço amplo, como o do térreo, utilizado para aulas
de judô/karatê, e eventualmente, para aulas de educação física da EMEI,
ginástica, alongamento e apresentações musicais/teatrais/culturais diversas.
Acima de nós, temos mais algumas salas, que quase não foram utilizadas nos
momentos em que estávamos lá. Vale ressaltar que a sala do “Espaço Cultural” não
é fechada, ou seja, as paredes são de plástico, não vedam toda a sua estrutura
e não há isolamento acústico, então, do primeiro andar, podemos acompanhar
tranquilamente tudo o que acontece dentro do BEC inteiro (vendo ou escutando).
Outro problema deste
CEU são os pombos. Há uma tentativa de controle realizado lá, mas até o
momento, não fez com que os pombos se afastassem de forma efetiva. Nossa sala,
os instrumentos musicais do CEU e os colchonetes, são exemplos de sujeira de
pombos. Como estamos falando de ruído especificamente, os pombos também acabam
interferindo desta maneira nos encontros do PIÁ: quando os funcionários do CEU
soltam bombas a fim de espantá-los, ou quando eles limpam as salas acima de nós,
mais barulho e sujeira surgem em nossa sala.
O NAC (Núcleo de
Ação Cultural) do CEU Jd. Paulistano, responsável por nos auxiliar e acompanhar
as atividades do PIÁ, na medida do possível, tenta nos ajudar com relação a
estes problemas. O que acontece é que estas são questões estruturais que
demandam tempo e dinheiro. Por outro lado, no momento, não existe nenhum outro
espaço fechado em que possamos realizar os encontros com as crianças, ou seja,
nos dias de sol ainda podemos escolher ir para espaços abertos, mas no frio ou na
chuva, com ou sem barulho, com ou sem sujeira de pombos, temos que ficar na
nossa sala dentro do BEC.
Vale ressaltar que, apesar
dos casos relatados terem “quarta-feira” como dia símbolo, o ruído excessivo
ocorre todos os dias, o dia todo.
Reflexões sobre o tema
fundamentadas em Murray Schafer
O
compositor e educador canadense Raymond Murray Schafer nasceu em 1933 e,
segundo Fonterrada (2004, p. 56), foi “[a] primeira pessoa a desenvolver
pesquisa sistemática a respeito do som ambiental”. Em 1965, foi contratado pela The University
of Simon Fraser, em Vancouver, onde lecionou por dez anos e desenvolveu “uma
pesquisa com a proposta de analisar o
ambiente acústico como um todo e sua influência na vida das pessoas” (MIGUEL,
2006, p. 24). Este projeto recebeu o nome “The World Soundscape Project”
(Projeto Paisagem Sonora Musical) e foi determinante para a criação do que
chamamos hoje de ecologia acústica:
[...] Esse projeto, chamado “The World
Soundscape Project”, era um estudo multidisciplinar sobre o som ambiental, suas
características e modificações sofridas no decorrer da história e sobre o
significado e o simbolismo desses sons para as comunidades afetadas por eles. A
grande preocupação de Murray Schafer, nessa pesquisa, era conferir um enfoque
positivo à questão da poluição sonora e do ruído ambiental indiscriminado,
questões essas, segundo o autor, geralmente tratadas através de leis
restritivas. Sua proposta era a elaboração de um projeto acústico mundial que,
através da conscientização a respeito dos sons existentes, pudesse prever o
tipo de sonorização desejada para determinado ambiente. (FONTERRADA In:
SCHAFER, 1991, p. 9 e 10)
Além
destes conceitos para ecologia acústica, Schafer também criou o termo soundscape (traduzido como paisagem
sonora), que é uma analogia a palavra landscape,
que significa paisagem. A partir desta pesquisa muitas outras se realizaram e
foram formados grupos para a discussão do ambiente sonoro (MIGUEL, op. cit., p.
24). Até que em 1993 é criado o World Forum for Acoustic Ecology, com o
objetivo de pesquisar e documentar trabalhos de ecologia acústica, além de
editar um jornal bianual denominado Soundscape.
Schafer (1991, p. 68)
diz que “ruído é qualquer som que interfere. É o destruidor do que queremos
ouvir”. Uma das propostas mais preciosas do PIÁ é escutar as crianças,
descobrindo seus desejos, medos, gostos, sonhos e histórias. Infelizmente, muitas vezes o ruído interferiu
nesta escuta atenta, nos compartilhamentos de ideias, nas tomadas de decisão,
no espaço utilizado para os encontros e, quiçá, até na saúde das crianças e das
artistas educadoras. Para contornar a situação, principalmente nos dias em que
não podíamos ficar em outro espaço, sempre foi necessário falar mais alto e a exposição
aos ruídos foi constante por um período mínimo de duas ou três horas. Não
possuo um decibelímetro para afirmar com precisão a que nível de ruídos ficamos
expostos e quais os danos exatos para a nossa saúde, mas dores de cabeça, dores
de garganta e rouquidão foram queixas frequentes.
Além disso, é
notável que as crianças não percebem sonoramente o ambiente em que estão
inseridas. Em seu livro, A Afinação do
Mundo, Schafer afirma que “a poluição sonora ocorre quando o homem não ouve
cuidadosamente. Ruídos são os sons que aprendemos a ignorar” (2001, p.
18). A
escola, os carros na rua e os aparelhos eletrônicos que temos em nossa casa e
em nossas mãos, são exemplos de sons que prejudicam nossa audição, e nós, muitas
vezes, nem nos damos conta. Em vários encontros as crianças demonstraram falta
de concentração e uma agitação excessiva, as quais relaciono diretamente com o
contexto sonoro. Para elucidar tais fatos, vale mais um relato: no encontro do
dia 03/09 (uma quinta-feira de manhã), as crianças estavam neste estado de
espírito – dispersas e inquietas – e o ambiente estava bastante ruidoso. No
final do encontro, Elisa e eu pedimos para que todos fechassem os olhos,
respirassem fundo e tentassem ouvir os sons que estavam acontecendo do lado de
fora da sala. Ninguém quis fechar os olhos, a respiração continuou rápida e,
no mínimo sinal de “silêncio”, eles mesmos faziam barulhos (risos, cadeira
etc.). Por fim, antes de irem embora, perguntamos a eles o que gostaram ou não
do encontro. As crianças foram incisivas quanto ao que não gostaram: o momento
do silêncio.
Silêncio
é uma caixa de possibilidades. Tudo pode acontecer para quebrá-lo.
O
silêncio é a característica mais cheia de possibilidades da música. Mesmo
quando cai depois de um som, reverbera com o que foi esse som e essa
reverberação continua até que outro som o desaloje ou ele se perca na memória.
Logo, mesmo indistintamente, o silêncio soa.
O homem gosta de fazer sons e
rodear-se com eles. Silêncio é o resultado da rejeição da personalidade humana.
O homem teme a ausência de sons como teme a ausência de vida (SCHAFER, 1991, p.
71).
Portanto, busquei
com este ensaio chamar a atenção para os ruídos excessivos no CEU Jardim
Paulistano e mostrar, através dos relatos, como eles interferiram em nossos
encontros e no convívio com as crianças. Na maior parte do tempo ele nos causou
problemas, gerando desconforto físico e até mudança de espaço. Porém, acredito que as crianças começaram a perceber
o ruído de uma maneira diferente, despertando uma reflexão crítica sobre ele,
seja criando artisticamente ou questionando o porquê de ficarmos em um espaço
tão barulhento. Talvez desta forma, aprendendo a não ignorar estes sons e
tomando consciência do problema, aos poucos as crianças vão se apropriando dos
espaços que as cercam e levando para as suas famílias a ideia de um mundo com
menos poluição sonora.
Referências
FONTERRADA, M. T. Música e meio ambiente: a ecologia sonora. São Paulo: Irmãos Vitale, 2004 – (Conexões
musicais).
MIGUEL, F. Entre ouvires: a paisagem sonora da Igreja Batista em Jardim Utinga
em foco. 2006. 193 f. Dissertação (Mestrado). Instituto de Artes, UNESP. São
Paulo, 2006.
SCHAFER, R. M. A afinação do mundo. São Paulo: Editora UNESP, 2001.
__________. O ouvido pensante. São Paulo: Editora
UNESP, 1991.
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