Instruções:
Peço que você que está lendo
me pense como um corpo que durante esse ano ganhou muitas vestes. Peço para que
imagine essas roupas, esses tecidos rasgados, esses laços, esse pedaço de
renda, todos assim incompletos, mas que sobrepostos, justapostos, entrelaçados
,vão ganhando vida de uma forma inexplicável . Tens agora em suas mãos e
olhos uma linha, uma agulha, uma fita
crepe, uma cola , um algo de fazer ajuntamentos. Te convido então, a partir destes pequenos relatos ir costurando sobre mim essas pequenas vestes
que se inventaram sobre o meu corpo
durante esse ano de 2015 no PIÁ. Aos
poucos também pegue essas linhas tecidos, pegue meu próprio corpo e amplie-o,
permeio-, perpasse, de modo que ele vá também conectando-se ao espaço, as paredes,
ao bairro, as pessoas que por mim
passaram. Fique a vontade.
1ª veste- Folhagem
Era uma vez uma árvore de
Eucalipto, grande, grande. Ela já estava ali há muito. Sabe quanto? Bem, nem eu. Mas a Terezinha nos diz que
antes, as árvores é que dividiam os
terrenos daqui e faziam saber o quem era
o dono de um , o que era do outro, e aquilo que não era de ninguém. Ela chegou
e foi morar naquilo que não era de ninguém, tá aqui na Cidade Tiradentes há bem
uns 30 anos. Era tudo um barro muito liso, vermelho, que escorregava . A rua ? Tinha saída não. O Centro Cultural? Tinha não.
Esse monte de prédio, de mercado, de ônibus? Tinha não.
Essa árvore? Tinha. Tinha árvore também de manga, de jabuticaba, até de
jaca. Tinha uma senhora que cuidava de um poço, onde íamos buscar água. Foi
assim durante um bom tempo. Agora, os moradores pediram para cortar a árvore,
por que ficou perigoso, por que o bairro
cresceu e muita gente teve que construir a casa num cantinho de terra, foram se amontoando. E agora se essa árvore
cai na cabeça de todo mundo? É uma tragédia.
Ela contou isso assim de um
jeito rápido e eu e as crianças fomos assistindo os galhos enormes cobrirem o
chão. As folhas no chão eram de muitas cores, as cores das memórias ali
vividas. Descobrimos algumas memórias, fazendo entrevistas, conhecendo histórias tristes, de
morte, histórias de invenção e alegria. Outras memórias descobrimos observando a quantidade
de troncos cortados pelo centro cultural, outras ainda lembrando das nossas próprias
histórias com outras árvores que encontramos durante a vida.
A partir desse corpo árvore,
nesse corpo folha permitimos que se inscrevessem em nós algumas passagens sobre
a formação daquele bairro. As histórias dos pais das crianças, na sua maioria migrantes, que vieram para a Cidade
Tiradentes e demoravam cerca 1 hora para chegar ao ponto de ônibus. O relato da
invenção de um balanço nos galhos da árvore, já que ali no bairro não
havia mais tanto lugar para brincar, o
medo da violência, o medo da rua, a lembrança do que era a rua antes, a
percepção da falta de praças e espaços públicos coletivos. A árvore mesmo cortada fez com que
reinventássemos nossa relação com o entorno, com nós mesmos. Nos vestiu de folhas secas, de restos de
troncos, para que pudéssemos continuar a recontá-la e dizer da sua conexão com
aquela terra, com a nossa terra.
2ª veste- Bruxa, Princesa,
Água, Índia: APARIÇÕES
Começa assim: eu não era artista educadora
dessa turma do PIÁ, mas estava sempre
por perto , era um horário vago, e por possuir a beleza de não ser útil, acabou
servindo pra alguma coisa. Aquelas crianças se apropriaram
da minha presença e me reinventaram, não como uma professora, mas sim como qualquer coisa, como várias coisas, como
coisa , pessoa, bicho , personagem. Assim surgiram o que chamo aqui de aparições,
pra eles eu fui qualquer coisa menos a Bruna.
Da primeira vez nasci
princesa, adormecida em terras distantes, a ser despertada, por uma banda.
Acordei e vi as vocalistas, enfeitadas de papel celofane, óculos escuros e
pedaços de E.V.A. Naquele momento, fiquei sabendo da notícia: eu iria me casar.
O príncipe estava ao lado, alto quadrado, com duas pernas de rodinha, uma boca
de bambolê, e era tão bonito quanto uma lousa enfeitada! Claro que me
apaixonei. Foi um casamento lindo, mas para beija-lo é que era complicado, cabia a minha cabeça
inteira em sua boca!!!
Fui princesa. E já sendo, contei as piás que
era também amiga das bruxas, das bruxas que curam. Elas logo entenderam ,
conversamos sobre o chá camomilico, que tudo acalma. E em seguida, virei também
bruxa. Daí que fiquei sendo bruxa com muita alegria , e inspiradas por elas, apresentei
a uma outra turma do PIÁ algumas plantas e
seus poderes, descobri assim que existiam ali muitos netos de avós benzedeiras
Num outro dia ,
troquei essa pele, meio amarelada-branco-preta, por uma pele toda azul,
um vestido azul, um cabelo de puro mar. Peguei meus conta gotas coloridos e
desenhamos. Naquele dia eu não falei palavra de gente, inventada na língua das águas e da minha boca
só saía barulho de mar, desapareci.
E assim o ano foi passando e
fui sendo de um tudo aprendendo a ter
que me lançar num jogo de improvisos sem fim. Sendo alimentada por esse jogo
com as crianças e deixando que ele reverberasse também para as outras turmas
onde eu era além de personagem, educadora. E por que não uma as duas funções
misturadas? Aparecendo e desaparecendo!
Graças a abertura e gentileza das Beatriz Miguez e da Glauce
Medeiros( arte-educadoras, dessa turma) e das crianças , pude experimentar um
lugar de ensino e aprendizagem que tem
como fundamento a invenção descompromissada. Que nasce do não saber e de um se
despir, de não ter que ser nada e ir me tornando qualquer coisa. Que nasce
também da crença que quando uma relação verdadeira se estabelece entre ambas as
partes, alguma aprendizagem dai irá
surgir, seja ela do mundo que a gente já sabe que existe, seja ela do mundo que
se cria.
3ª veste: A ocupação Wilma
flor- O PIÁ para além do PIÁ.
Ocupar o
lugar onde se estuda, onde se estudou.
Torná-lo sua propriedade para além da grade curricular, do horário destinado,
das funções , dos afazeres. Criar nele uma resistência cotidiana as opressões
vividas durante anos, durante décadas, durante épocas em que você ainda não
vivia. Quem viviam eram outros, mas que já se sentiam
assim também: gradeados.
Ter a oportunidade de
enquanto educadora, adentrar um ambiente escolar, tão parecido a aquele que foi
meu: uma escola estadual em um bairro de periferia em São Paulo. Mas ao
adentra-la, ser recebida por um estudante guerreiro, com suas vestes jeans, o
cabelo comprido meio desarrumado, o corpo ágil e magro e uma lança indígena. O
menino-garoto-estudante-homem-guerreiro, nos apresenta seu território de luta e
convivência e diz: - Pode até soar brega, mas não tem como ser diferente. Tudo
isso que eu tenho feito aqui nasce da minha relação de amor com a escola. Então, chega uma menina, que aos dezessete,
trabalha fora, estuda, cuida da irmã e conta de uma maneira tímida , mas
orgulhosa que agora aprendeu a discutir com policial e a não ter medo.
E assim fomos conhecendo a E.E
Wilma Flor a partir das experiências e olhares daqueles estudantes, que estavam
ali a procura de algo, que estava muito além
do fim da reorganização escolar ,proposta pelo governo do estado de São Paulo, isso era só o mote. O que eu aprendi ali , em um contato muito pequeno, foi uma coisa que os jornais não sabem noticiar, que os políticos,
em sua maioria, perderam o poder de ver e participar, que a mídia nos faz crer como impossível. Vi uma
experiência de organização coletiva. Estudantes de todos os tipos: os que se
identificam mais com os livros e letramentos, aqueles que entendem das plantas,
outros puxar uma extensão elétrica, aqueles que antes iam pra escola “não fazer
nada”, aqueles que largaram os estudos. E também professores que já esfolados de uma briga tão
antiga com o Estado, decidiram estar junto a seus “ alunos". Todos juntos ali criando suas redes de resistência.
Naqueles encontros vi todos ali agachados, como escreve Marina
Machado, ao falar da educação infantil, propondo que o adulto esteja na mesma
posição que a criança, de igual para igual, para que uma verdadeira experiência
educacional aconteça. Assim estávamos todos durante aqueles encontros: agachados.
Foi algo transformador,
transformer, como brincamos ser a pedagogia do PIÁ. Sair de dentro do
equipamento onde o PIÁ acontece e
visitar uma outra escola do bairro, juntar equipes e levar assim como
nos encontros ideias que pudessem ser reapropriadas. Criar um fazer artístico a
partir da convivência. Trazer a escuta e a liberdade que o PIA nos propicia, para
estar junto de outras demandas educacionais. Pegar pequenos tecidos e ir
brincando de transformar as grades, de colorir, de escrever sobre elas a
palavra: LUTA e ir assim enquanto se tece, sabendo a história de um, a música
preferida do outro, os desejos , falar um pouco de si. Assim como já faziam os
índios, os artesãos e tantos outros, tornar o tecer , o “trabalho”, um lugar de
troca de saberes.
Agradecimentos especiais a
todos os estudantes que nos receberam na escola e as minhas companheiras de
trabalho: Beatriz , Glauce e Vanessa.
4ª veste- Poema
Por fim, como uma última veste, como pequena conclusão
da experiência do PIÁ, compartilho este pequeno poema, esse meu:
Emaranhado
O
presente da invenção,
A
careta do porvir,
A sujeira do fazer,
A purificação do afeto.
De cada
saber ganho um treco
E com cada treco me resta fazer um cacareco
Me refaço
então, desses ecos
Crio
então, todos esses mundos submersos.
De
lá pra cá tanto, de cá pra lá cantos
O
desconhecimento, o cimento.
Se
perde ? Se ganha ?
Se,
na verdade, emaranha.
Bruna Amado - Centro de Formação Cultural Cidade Tiradentes- CFCCT
Bruna!!! Que delícia poder vivenciar através da escrita momentos tão especiais, me emocionei ao ler seu relato. Quanta coisa rica o Piá nos proporciona! bj
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