quarta-feira, 16 de dezembro de 2015

“que imagem nos habitam e que imagens escolhemos habitar?” isabelle benard - ensaio 2015 coordenadora de pesquisação da leste 1


isabelle benard - ensaio 2015

coordenadora de pesquisação da leste 1

“que imagem nos habitam e que imagens escolhemos habitar?”

inicio o ensaio deste ano com a frase que terminei o ensaio do ano passado: que imagem nos habitam e que imagens escolhemos habitar? não tenho a pretensão de trazer uma resposta definitiva a esta pergunta. pretendo continuar investigando o universo imaginário e simbólico e neste ano solicitei aos artistas educadores com os quais trabalhei que trouxessem uma imagem para cada uma das turmas de piás. a partir destas imagens, que poderiam ser uma música, um desenho, uma foto, uma história, uma palavra, uma poesia, um som, etc, farei um mergulho no universo imagético que me foi apresentado.
1º imagem - a primeiro imagem será a minha: um caleidoscópio. este caleidoscópio é um presente do bruno, da viagem ao México com ele fez com seu grupo de teatro humbalada alguns anos atrás. é um objeto que possui um carga afetiva muito grande e tem relação direta com o meu trabalho no piá. o bruno é uma artista educador deste programa que eu admiro muito. quando apresentei o pequeno caleidoscópio à equipe fiz o seguinte comentário: me vejo neste objeto: a cada vez que mexemos nele, ele nos apresenta uma nova imagem, uma nova composição com os mesmos elementos. é um pouco assim que me sinto visitando as 3 equipes nos 3 equipamentos que coordenei este ano. os mesmos elementos sempre em novas e criativas combinações a cada deslocamento-visita. é um caleidoscópio pequeno, embrulhado em um papel brilhante rosa. é um objeto simples, feito com materiais simples. é um objeto mágico tb, mutante e universal. qualidades que eu poderia facilmente atribuir ao nosso projeto de programa. a escolha deste objeto foi imediata, assim que decidi que deveria apresentar também uma imagem na reunião da equipe o caleidoscópio surgiu em minha mente.
para as próximas imagens não citarei o nome do artista educador por uma questão ética. não quero expor os artistas em um texto que poderá um dia ser lido por pessoas desconhecidas. farei com estas imagens o mesmo procedimento que adotei com a minha, uma livre associação de ideias, que provavelmente dirá tanto de mim quanto das pessoas que as escolheram.
2º imagem – um desenho de linhas com alguns espaços coloridos compondo uma mandala nas cores azul turqueza, azul escuro, amarelo, laranja, vermelho, verde claro e escuro, sobre uma folha de sulfite A4. o que chama atenção neste desenho, além das cores, são as palavras: valores civilizatórios afro-brasileiros; circularidade; religiosidade; corporeidade; musicalidade; cooperativismo/comunitarismo; ancestralidade; memória; ludicidade; energia vital (axé); oralidade. é uma imagem densa, forte e que aponta para um engajamento ético e político claramente definido pela pessoa que a escolheu. em sua explanação fica ainda mais claro que os elementos são valores que norteiam seu olhar e sua atuação. o círculo em forma de roda de conversa é uma prática constante nos encontros, uma opção de conduta pedagógica. desde as rodas pré-estabelecidas do início e do lanche coletivo às rodas propostas quando emergem questões, dúvida ou conflitos durante os encontros. o círculo é uma imagem primordial e está presente em praticamente todas as culturas. esta forma é em sua essência democrática, todos que fazem parte de um círculo encontram-se equidistantes do um mesmo centro, todos tem o mesmo papel e valor e todos podem ver, ouvir e expor suas idéias da mesma forma. os termos citados na imagem são conceitos e são valores e estão todos relacionados entre si, todos equidistantes da expressão central: valores civilizatórios afro-brasileiros. esta mandala foi feita e colorida com cores primárias e secundárias, a partir delas podemos criar todas as outras cores existentes. uma clara demonstração da intenção e do alcance desta imagem.
3º imagem – um conto intitulado cercas e pontes. relata a história de uma desavença entre dois irmão, que moram em fazendas vizinhas, separadas por um riacho. a princípio os dois irmãos sempre foram muito amigos e parceiros. mas ocorreu um evento, não relatado no conto, que provocou a ira e a separação entre os dois. um dia um carpinteiro que passava por perto de uma das fazendas oferece seus serviços. um dos irmãos solicita a construção de uma cerca na margem do rio para impedir a entrada do irmão. no entanto, para surpresa de todos, o carpinteiro constrói uma ponte o que aproxima os irmão, tornando-os novamente amigos e parceiros. o carpinteiro se despede e vai embora construir novas pontes pelo caminho.
ouvimos esta contação em nossa reunião e ficamos todos surpresos com o final, agradavelmente surpreso com o final. pontes e muros é um dos temas norteadores do trabalho desenvolvido neste equipamento. tema que surgiu pela dificuldade de diálogo existente entre os diferentes setores que compõe o ceu. o carpinteiro construtor de pontes são os aes neste trabalho de promover o diálogo e aproximação entre estes “irmãos” que trabalham no mesmo equipamento público e que não conseguem dialogar.
os aes carpinteiros, ao longo deste ano de forma lúdica, criativa e inesperada, promoveram ações artísticas que propiciam a aproximação entre os funcionários dos diversos departamentos com música, instalações sonoras, comidinhas, apresentações, brincadeiras, jogos, instalações visuais.
4º imagem – um conjunto de 4 fotos onde aparecem os corpos dos piás em diversos posições, em diversas situações. foi o que primeiro me chamou a atenção ao ver estas imagens. numa das fotos uma piá aparece agachada ao lado de um pneu de carro. em outra um grupo de piás estão de pé atrás de uma construção feita de sucata, quase do tamanho deles. na terceira vê-se um rosto visto através de um buraco redondo com um rolo de papel higiênico posicionado no olho do piá. na quarta dois adolescentes, um está sentado diante de uma folha de papel vermelha e o outro deitado no chão diante de uma folha de papel branca. estas fotos dizem muito do piá. elas nos contam dos piás em momentos diferentes, em posições diferentes, em locais diferentes, um corpo presente, vivo e atuante. ao ver estas imagens, minha primeira reação foi compará-las mentalmente com a escola regular. provavelmente no ambiente escolar tradicional não veríamos esta diversidade. é a liberdade de se movimentar, agachar, deitar, correr, pular, sentar no chão, é a euforia que encontro nos piás quando visito os equipamentos. é a liberdade de existir dentro de um corpo criado para o movimento. a variedade de situações que vejo nas imagens me remetem também à diversidade de propostas desenvolvidas com os piás que pude presenciar nesta equipe.
5º imagem – os piás assistem piás improvisando com marionetes feitas de sucatas num teatro de fantoche feito com uma caixa gigante de papelão que embalava as cadeiras enviadas para este equipamento. os piás são da turma de 5/7 anos e cabem dentro da caixa confortavelmente. a imagem me remete a um princípio importante do trabalho do artista educador “passar a palavra”. é nossa missão passar a palavra aos nosso piás. as nossas ações só fazem sentido se tiverem sentido também para os piás. é o espaço/tempo das crianças e dos adolescentes que tem muito a dizer sobre eles próprios e sobre o mundo em que vivem. ter a “palavra” em mãos, para expor suas ideias, seus desejos, suas fantasias, seus medos, para ouvir e ser ouvido. as diversas experiências propostas de forma lúdica abrem espaço para a expressão, para a criação e para reflexão. estar em um ambiente próprio para brincar, onde todos se sintam confortáveis para se experimentar; experimentar os seus sentidos; explorar o tato, a audição, o olfato, a visão, a locomoção, o corpo todo, ultrapassando os limites impostos no cotidiano é uma grande janela para o mundo que se abre e que propicia o empoderamento da vida.
6º imagem – dois meninos lindos abraçados, um negro e outro branco. atrás deles um tronco de uma grande árvore. no relato desta foto ficamos sabendo que esta representa uma superação. ambos, os meninos, tinham medo de se aproximar da árvore e de subir nela. ao longo do ano e aos poucos eles foram se familiarizando com ela e atualmente é o local que eles mais gostam de ir. esta imagem tb fala de uma outra superação, da superação do preconceito racial; os meninos se tornaram grandes amigos no piá.
estas imagens fazem um percurso significativo do trabalho desenvolvido no piá, temos um desenho da amplitude dos processos criativos. a partir do que elas nos contam vemos a abrangência e o alcance da proposta artístico pedagógica do programa. a proposta de interliguagem que se concretiza na relação entre os artistas educadores, na parceria ente artistas de linguagens e experiências artísticas diferentes, que precisam sair da sua zona de conforto para embarcar numa parceria inédita, é o que torna o piá um programa inovador e capaz de realizar as transformações que desejamos. cabe ao artista educador descobrir ao longo deste processo como se faz este casamento, e que não há fórmula e nem receita para que esta parceria seja um sucesso. é do diálogo entre todos os parceiros: as crianças, os adultos e o espaço público que nasce o processo artístico. o espaço, tb, ao seu modo, precisa ser conquistado, ser transformado, ser apropriado por todos nós que fazemos parte deste programa.

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