segunda-feira, 28 de dezembro de 2015

O equipamento e suas precariedades como palco e personagem

Criança do PIÁ em performance na obra parada do teatro do CEU Jardim Paulistano

Tatiana Eivazian
CEU Jardim Paulistano

Personagens: CEU
AEs
Crianças
Cenários: Sala do CEU. Pombos. Cocô de pombos. Chão frio. Colchonetes rasgados e sujos. Pregos aparentes na sala. Barulho. Muito, mas muito barulho vindo da quadra. / Área externa do CEU. Pombos. Cocô de pombos. Barulho. Gramado verdinho onde nem sempre se pode desfrutar. Geodésica com cacos de vidros pontudos saindo pelas paredes. Parquinho perto de pedreira onde dizem ser perigoso. Escombros de um teatro em ex-construção.
AEs  - Meninos, mês que vem já teremos uma nova sala. Sem pombo! Sem coco de pombo! Sem barulho! E como hoje não limparam a sala, vamos lá pra fora!
Um mês depois, as AEs tentam reinventar a roda furada
AEs - Meninos, hoje essa sala vai ser usada como QG do bazar de roupas do aniversário do CEU...
Criança 1 – Ah, por isso que hoje ela está limpa e arrumada?
AEs (desconcertadas) – Olhe, veja bem, na verdade... olha que legal, vamos lá pra fora.
Criança 2 – Vamos pra sala nova? Ficou pronta?
AEs – Não, ainda não...
Criança 3 (descrente)– Mas de novo sem uma sala? De novo lá pra fora?
Criança 4 – Lá fora a gente não pode fazer muita coisa, os seguranças não deixam.
Criança 5 – E esconde-esconde ou detetive perdeu a graça, já sabemos todos os esconderijos do CEU
Criança 6 – E se chover de novo? Vamos ficar sem espaço de novo?
AEs - ...
A cena descrita acima poderia ser o início de uma peça de teatro com dramaturgia baseada em acontecimentos reais. Um metapiá com teatro do oprimido. E foi. Esses acontecimentos se repetiram a exaustão durante todo o ano. Promessas sempre adiadas, que nunca se cumpriram. Negativas, interrupções, proibições. E precariedades - do espaço, dos materiais e até de algumas condições sanitárias.
Diante de tais condições, como continuar o diálogo acima? Como empreender a hercúlea tarefa de resolver a situação? Claro que nós AEs não tínhamos o poder nem a varinha mágica para exterminar os problemas do equipamento e devolvê-lo lindamente às crianças.  Uma luz no fim do túnel veio de uma frase despretensiosa de uma criança “A gente tem que fazer do limão uma limonada”. Na verdade, a princípio não gostei dessa frase, que me soou conformista. Então quer dizer que, além de nós não termos o direito de escolha, vamos ter que achar esse drama todo legal? – pensei. Sim, vamos - respondi de volta para mim. Isso pode não ser conformismo,  e sim uma espécie de segunda ‘chance’. Seria a escolha da escolha. Então pensei que o verbo não era resolver a situação, e sim transformar. Tirar as crianças da passividade do ‘esperar’ e do fazer onde dá e transformar isso numa linguagem própria. Pensei também na palavra drama - etimologicamente a palavra vem do grego e nela está o sentido do fazer. Pensei na minha linguagem, teatro, que também etimologicamente do grego é lugar de assistir. E pensei na minha trajetória artística pessoal. 
Venho de um movimento de ‘teatro em comunidade’: eu e meu grupo exercemos residência artística em Heliópolis, pesquisando o teatro aplicado (segundo definição do autor inglês Tim Prentki, é um amplo leque de práticas teatrais e processos criativos que levam os participantes e as audiências além do teatro convencional e mainstream para o mundo de um teatro que responde a pessoas comuns, suas histórias, suas localidades e prioridades). Dentro dessa pesquisa, lidamos com a ‘periferia’ como o novo ‘centro’, na qual nenhuma questão é somente ‘periférica’. Além disso, olhamos a comunidade-favela não só como palco, mas como personagem, como sujeito, não permitindo que o nosso olhar de ‘fora pra dentro’ se imponha sobre o olhar “de dentro pra fora”. Mais interessante, é não negar nem um nem outro e investigar as diferenças e as intersecções desses olhares. O lugar no qual residimos artisticamente fala. E é pelo resgate da memória afetiva e cultural da comunidade que empenhamos nossa arte.
Da mesma forma, transferindo essa prática ao drama do equipamento no PIÁ (equipamento também inserido nua comunidade periférica, Jardim Paulistano), estava descobrindo nessas dificuldades e negativas um dos motes do trabalho esse ano, onde o elemento surpresa e a busca de soluções poéticas a partir disso passariam a ditar nossos encontros. Mas era preciso orientar as crianças em várias ações: a não negarem as dificuldades e precariedades das condições do equipamento, a não esperarem soluções mirabolantes partirem tão somente das AEs, a enxergarem possibilidades a partir daí, tratando os problemas como materiais de ‘trabalho’. Decidimos que não seríamos mais reféns; agora inventaríamos brincadeiras, narrativas e espaços alternativos. Não só numa tentativa de positivar as precariedades (a tal da ‘limonada’), mas que isso realmente virasse um desafio gostoso de buscar alternativas, ao encararmos o CEU como palco, e principalmente como personagem. Suas precariedades, suas surpresas eram o que iam interferir. Era hora de deixar o CEU contar sua própria história. Se o CEU agora fala e hoje ele nos disse “não vai ter sala”, o que podemos responder pra ele em forma de ação? E assim, as precariedades viraram nossa matéria-prima. E assim, sucederam-se várias perguntas e respostas.
Uma das primeiras experiências partiu do ensurdecedor barulho no entorno da sala. Na verdade, o barulho vindo da quadra poliesportiva (localizada no mesmo complexo que a sala do PIÁ) é constante. Mas nesse dia os níveis dos decibéis estavam realmente no limite do suportável. Ou seja, o CEU nos gritou “vocês tem a sala hoje, mas tente fazer algo com essa cacofonia que eu produzo. E não adianta fugir, pois hoje chove lá fora”. O enigma da esfinge foi decifrado por uma menina de 9 anos, e rapidamente ganhou seguidores. “Vamos fazer um telejornal com uma reportagem sobre o barulho onde quem assiste em casa não consegue ouvir por causa do barulho”.  E as pautas desse telejornal foram além desse encontro: os cocôs de pombo também renderam uma hilária edição extraordinária, como Os Pássaros de Hitchcock, só que na versão ‘dejetos’.  Num terceiro encontro, a ideia era fazer a justaposição desses dois ‘problemas’: barulho e sujeira; ninguém escutaria nada e ninguém veria a cara da “repórter” e dos entrevistados, visto que todos estariam cobertos de excrementos brancos, mas essa ‘encenação-filmagem’ não aconteceu porque foi sendo postergada para dar espaço a outras ideias. Mas para eles, valeu como criação crítica, ainda que só na ideia. Partimos para outras descobertas: a invasão de zumbis no CEU, a minissérie policial e a novela mexicana pós-melodramática, “rodada” dentro da malfadada sala, onde o cenário construído era uma espécie de Dogville, filme de Lars Von Trier, porém com espaços delimitados não por giz, mas por cadeiras de plásticos e colchonetes. Rasgados. E com cocôs de pombo.  
Depois de algumas experimentações dentro ou ao redor da sala, aos poucos fomos ganhando as áreas abertas do CEU, primeiramente explorando diversas possibilidades de palco, ideia esta que, a esta altura, fugia do imaginário de palco/teatro das crianças. Ao irem para “fora” fazer teatro, as crianças romperam – algumas a contragosto - com o espaço convencional e transformaram diversos espaços em espaços cênicos. Com isso, as experiências que aos poucos surgiam era menos “discussões de problemas” e mais a ideia de que o fazer teatral ou qualquer ato performático ali representa em si a afirmação da voz e do corpo deles. E também se constituía as primeiras experiências em ‘criação coletiva’, com improvisações diversas que viravam incríveis jogos lúdicos e cênicos.  
A expedição na floresta proibida pelos seguranças sem maiores explicações (“não pode andar por essa parte, é perigoso”) transformou-se na luta de uma “organização do mal” contra um bando de cientistas “do bem”. A dança na cama de gato instalada no parquinho foi abruptamente interrompida porque, talvez durante a hora do lanche, danificaram os fios dos novelos que formavam a instalação. “E se atravessássemos os fios invisíveis na cama de gato invisível, formando uma dança maluca e visível?”
O CEU Jardim Paulistano tem uma obra parada há anos e é justamente um teatro. A obra fica numa parte mais isolada das instalações escolares e esportivas, e é cheia de restos de construção, entulhos, escombros. A topografia do CEU ainda confere ao ex-futuro teatro um clima apocalíptico fantasmagórico, pois fica na ponta de um morro onde os ventos uivam e, talvez por isso, é raro ver alguém por lá. Claro que várias lendas foram criados sobre esse teatro, pra alimentar ainda mais o mito assombroso. “Tem osso cimentado nas paredes levantas”, “um pedreiro morreu lá e tem gente que já viu a alma dele vagando à noite” e por aí vai. Relutantes no início, mas encorajadas pelas AEs, as crianças concordaram em ir até lá um dia. E quando se libertaram do medo imaginário, tomaram gosto de frequentar o espaço e encará-lo também como palco e personagem. De cenário da terceira guerra mundial a superfície de um outro planeta, as crianças permitiram-se escutar as várias histórias que os escombros tinham a contar.  
Ao longo desse processo de descoberta, de executarem acontecimentos artísticos provocados pelos espaços do CEU, as crianças passaram a olhar o equipamento por meio de um ‘caleidoscópio’, que a cada giro ilumina um novo modo de ver, investigar, entender. E por consequência sua comunidade, suas ruas, sua casa: algumas crianças nos relatavam de volta pequenas e divertidas descobertas interativas e estéticas fora do PIÁ.
Assim, essa “pesquisa” e experiências todas me fizeram rever meu papel, que me soa melhor não como ‘educadora’, mas como facilitadora.  Facilitar as crianças cruzarem suas próprias fronteiras e se transformarem de objetos a sujeitos de seu próprio desenvolvimento, ao invés de educá-las com meu olhar de fora pra dentro, mas fazer emergir o de dentro pra fora. Afinal, quem espremeu os limões e fez a ‘limonada’ foram eles. Facilitei o ato artístico coletivo, e com isso ação e reflexão sobre seu próprio lugar no mundo, ao interferirem nos espaços físicos ao seu redor. Não sei dizer o que considero mais importante ter facilitado. As crianças serem donas de suas histórias, criando espaços e voz, agindo de forma coletiva e exercitando o pertencimento. Penso que todo AE no fundo age como facilitador para a criança assumir seu papel de sujeito, para oxalá no futuro, tornar-se cidadão capaz de interferir no seu destino.


Referências bibliográficas:
- COUTINHO, Marina Henrique. A favela como palco e personagem (FAPERJ, 2012)
- COELHO, Teixeira. O que é ação cultural (Ed. Brasiliense, 1989)

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