sexta-feira, 11 de dezembro de 2015

TEM UMA MONSTRA MORANDO NO CEU PQ. BRISTOL

Diário de campo sobre o imaginário

                              Camila Feltre


“Cuidado crianças, tem uma mostra lá fora, que entrou na nossa sala e deixou tudo bagunçado”. Esse foi o começo de uma aventura pelo CEU Pq Bristol, a partir da fala de uma das educadoras, Marina, com a turma de 05 a 07 anos, mais conhecida por nós (equipe do CEU) como turminha dos monstros.
A partir de então, por vários encontros seguidos, vivemos a experiência de procurar monstros: preparar armadilhas, nos fantasiar, construir equipamentos multissensoriais, andar por caminhos desconhecidos, ler mapas, procurar em livros e criar histórias a procura do que viemos a descobrir mais tarde ser uma mostra, que habita o alto do prédio do BEC, ou às vezes, se esconde atrás das folhagens amarelas do terreno  vizinho do CEU.
Dar espaço e tempo ao imaginário das crianças é o que pretendo relatar neste texto. Como embarcar nas fantasias das crianças e estimular com outras referências uma experiência como a de procurar monstros?

A aventura

Depois do anúncio de que um monstro havia passado pelo CEU e devíamos arrumar a bagunça que havia feito, as crianças passaram a falar do monstro com frequência durante os encontros. Mas não era a nossa intenção ao iniciar o assunto. Tudo começou num dia de muita euforia, as crianças estavam muito agitadas e uma vontade de unir o grupo para algo que estimulasse todos e que traria um trabalho em coletivo. E os monstros foram capazes disso; de experienciar vivências coletivas, de criação, de estímulo ao imaginário, de leitura e que reverberaram para fora dos muros do CEU, ou seja, a história de que havia um monstro por ali chegou a outras crianças e mães vinham perguntar e contar o que a criança estava falando em casa.

A procura

 Um dos equipamentos para a captura dos monstros

Encontrando e lendo as pistas

Começamos então, a procurar monstros pelo CEU. Mas como poderíamos, sendo simples mortais?
Com fantasias e equipamentos. Vários materiais disponíveis na sala do PIÁ começaram a compor a fantasia. Retalhos de tecidos, cabos de vassoura e potes descartáveis começaram a compor os objetos indispensáveis para a captura do monstro, ou dos monstros. Foram criados aparelhos que captavam sons produzidos pelos monstros a partir de um fone que uma criança havia trazido em um dos encontros. Com ele era possível ouvir um ruído de um monstro há quilômetros de distância. Outro equipamento foi a estrela de ficar invisível. Caso sentíssemos alguma presença, com o toque de uma estrela estávamos seguros e invisíveis pelo CEU.

Lendo pistas deixadas pela monstra no CEU
As pistas

Nessa captura, encontramos muitas surpresas pelo caminho. O que ninguém podia imaginar era que o monstro tinha deixado várias pistas. A presença da fantasia tornava-se visível. Era algo que não tínhamos o controle nem o domínio do que vinha a seguir. Primeiro, a descoberta ao achar uma tiara no chão: “É UMA MONSTRA!”, disse Lorena, uma das caçadoras de monstros. Essa informação mudava todo o nosso percurso. Não era mais um monstro, era uma monstra. E Lorena sabia o seu nome: “GEGÊ”, que pronunciava com dificuldade a palavra “ZEZÊ”.
Uma monstra que chamava Zezê e deixava pistas pelo CEU. Descobrimos em vários dias de capturas que Zezê gostava muito de doces, pela quantidade de papéizinhos de balas que encontramos pelo chão do CEU.
Encontramos também algo bem assustador, uma frase escrito em vermelho que nos deu a entender que eram palavras escritas com sangue. Ficamos muito preocupados. A monstra era má? Precisávamos descobrir isso. Precisávamos de um diálogo com ela.

“Monstra, você é legal? A gente quer te ver. Ass: Caçadores de monstros e amigos”

Neste dia, que escrevemos em giz nas paredes externas do BEC, tínhamos um nome: Caçadores de monstros e amigos. A identidade do grupo começava a se construir.
Como seria essa monstra?
Fizemos vários desenhos.


      


 Como resposta, uma carta, construída por nós educadoras, foi deixada num lugar muito  secreto para a turma: no nosso esconderijo, que fica embaixo da escada na entrada do BEC.

Otávio e Pedro no nosso esconderijo secreto

Nele acontece a maioria das reuniões sobre como capturar a monstra. As ideias são compartilhadas, esconderijos são criados e armadilhas são pensadas para serem construídas.
E tudo tem de ser feito em equipe. Um dia, um dos caçadores de monstros não estava conseguindo cumprir o combinado. Quase foi expulso do grupo, mas todos em consenso resolveram dar uma chance.  A preocupação do menino em “ficar fora da turma” me chamou a atenção pelo nível de envolvimento que estávamos todos naquele momento do grupo.
Bom, continuando nosso percurso, a carta aos caçadores veio cortada em pedaços para que o grupo montasse e conseguisse ler. Ela dizia o seguinte:
Para me encontrar vocês precisam:
1.       Encontrar um lugar redondo do CEU onde habitam vários monstros
2.       Passar por algum lugar que nunca foram do CEU
Assim, outros caminhos foram percorridos nesta busca...
E aos poucos outras brincadeiras foram surgindo. Mas, às vezes, alguém pede: “Vamos caçar monstros!”, ou trazem o tema a tona: “Eu vi o pé da monstra outro dia”, “Eu achei esse papelzinho colorido na minha bolsa. Será que foi a monstra que deixou lá?”
No livro “Onde vivem os monstros”, de Maurice Sendak, Max, um menino, vê o seu quarto se transformar em uma floresta e de repente está num barco indo para a terra dos monstros, onde se torna rei.
O livro, lido em grupo em um dos encontros, apresenta a transição da realidade para a fantasia, por meio das ilustrações que começam enquadradas e com o virar das páginas começam a fazer parte de todo o papel. Não há mais moldura. Estamos todos na floresta onde Max nos levou.

Imaginação x realidade

Para Suzy Lee, autora de livros infantis, as crianças não confundem realidade com fantasia, transitam entre ambas com ousadia e brincam de faz de conta com muita seriedade (LEE, 2012, p. 90-91).
Mas procurar monstros é real?
Vigotski traz no seu livro que na sua concepção comum, a imaginação ou a fantasia designam aquilo que é irreal, o que não corresponde à realidade e, portanto, sem nenhum valor prático. No entanto, a imaginação como fundamento de toda a atividade criadora manifesta-se igualmente em todos os aspectos da vida cultural, possibilitando a criação artística, científica e tecnologia (2014, p. 04).
Quando as crianças veem a monstra, com centenas de ouvidos, pelos e pés cor de rosa, podem estar associando a capacidade de elaboração e construção a partir de elementos já conhecidos, de fazer novas combinações e isto se constitui o fundamento do processo criativo.
Segundo Vigotski, a imaginação é inerente ao ser humano e o processo criativo muito importante para a infância.
o menino que cavalga num cabo de vassoura imagina que monta um cavalo, a menina que brinca com a boneca imagina-se a mãe, a criança que no jogo se transforma em ladrão, em soldado ou em marinheiro, todas essas crianças que brincam são exemplos do mais autêntico e verdadeiro processo criativo (VIGOTSKI, 2014, p. 06).

 “A imaginação é para a criança um espaço de liberdade e de decolagem em direção ao possível, quer realizável ou não” (GIRARDELLO, 2011). Vamos decolar? Vamos caçar monstros?




Exercícios de ser criança
No aeroporto o menino perguntou:
- E se o avião tropicar num passarinho?
O pai ficou torto e não respondeu.
O menino perguntou de novo:
- E se o avião tropicar num passarinho triste?
A mãe teve ternuras e pensou:
Será que os absurdos não são as maiores virtudes da poesia?
Será que os despropósitos não são mais carregados de poesia do que o bom senso?
Ao sair do sufoco o pai refletiu:
Com certeza, a liberdade e a poesia a gente aprende com as crianças.
E ficou sendo.
(BARROS, 2013, p. 453)

Referências Bibliográficas
BARROS, Manoel de. Poesia Completa. São Paulo: Leya, 2013.
GIRARDELLO, Gilka. Imaginação: arte e ciência na infância. In: Pro-Posições, vol.22 no.2, Campinas , maio/agosto de 2011. Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?pid=S0103-73072011000200007&script=sci_arttext. Acesso em: 05. Nov. 2015.
LEE, Suzy. A trilogia da margem: o livro-imagem segundo Suzy Lee. São Paulo: Cosac Naify, 2012.
VIGOSTKI, Lev Semenovitch. Imaginação e criatividade na infância. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2014.




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