TEM UMA MONSTRA MORANDO NO CEU PQ. BRISTOL
Diário de campo sobre
o imaginário
Camila Feltre
“Cuidado
crianças, tem uma mostra lá fora, que entrou na nossa sala e deixou tudo
bagunçado”. Esse foi o começo de uma aventura pelo CEU Pq Bristol, a partir da
fala de uma das educadoras, Marina, com a turma de 05 a 07 anos, mais conhecida
por nós (equipe do CEU) como turminha dos monstros.
A partir de
então, por vários encontros seguidos, vivemos a experiência de procurar
monstros: preparar armadilhas, nos fantasiar, construir equipamentos
multissensoriais, andar por caminhos desconhecidos, ler mapas, procurar em
livros e criar histórias a procura do que viemos a descobrir mais tarde ser uma
mostra, que habita o alto do prédio do BEC, ou às vezes, se esconde atrás das
folhagens amarelas do terreno vizinho do
CEU.
Dar espaço e
tempo ao imaginário das crianças é o que pretendo relatar neste texto. Como
embarcar nas fantasias das crianças e estimular com outras referências uma experiência
como a de procurar monstros?
A aventura
Depois do anúncio
de que um monstro havia passado pelo CEU e devíamos arrumar a bagunça que havia
feito, as crianças passaram a falar do monstro com frequência durante os
encontros. Mas não era a nossa intenção ao iniciar o assunto. Tudo começou num
dia de muita euforia, as crianças estavam muito agitadas e uma vontade de unir
o grupo para algo que estimulasse todos e que traria um trabalho em coletivo. E
os monstros foram capazes disso; de experienciar vivências coletivas, de criação,
de estímulo ao imaginário, de leitura e que reverberaram para fora dos muros do
CEU, ou seja, a história de que havia um monstro por ali chegou a outras
crianças e mães vinham perguntar e contar o que a criança estava falando em
casa.
A procura
Encontrando
e lendo as pistas
Começamos
então, a procurar monstros pelo CEU. Mas como poderíamos, sendo simples
mortais?
Com fantasias
e equipamentos. Vários materiais disponíveis na sala do PIÁ começaram a compor a
fantasia. Retalhos de tecidos, cabos de vassoura e potes descartáveis começaram
a compor os objetos indispensáveis para a captura do monstro, ou dos monstros.
Foram criados aparelhos que captavam sons produzidos pelos monstros a partir de
um fone que uma criança havia trazido em um dos encontros. Com ele era possível
ouvir um ruído de um monstro há quilômetros de distância. Outro equipamento foi
a estrela de ficar invisível. Caso sentíssemos alguma presença, com o toque de
uma estrela estávamos seguros e invisíveis pelo CEU.
Lendo
pistas deixadas pela monstra no CEU
As pistas
Nessa captura,
encontramos muitas surpresas pelo caminho. O que ninguém podia imaginar era que
o monstro tinha deixado várias pistas. A presença da fantasia tornava-se
visível. Era algo que não tínhamos o controle nem o domínio do que vinha a
seguir. Primeiro, a descoberta ao achar uma tiara no chão: “É UMA MONSTRA!”,
disse Lorena, uma das caçadoras de monstros. Essa informação mudava todo o
nosso percurso. Não era mais um monstro, era uma monstra. E Lorena sabia o seu
nome: “GEGÊ”, que pronunciava com dificuldade a palavra “ZEZÊ”.
Uma monstra
que chamava Zezê e deixava pistas pelo CEU. Descobrimos em vários dias de
capturas que Zezê gostava muito de doces, pela quantidade de papéizinhos de
balas que encontramos pelo chão do CEU.
Encontramos
também algo bem assustador, uma frase escrito em vermelho que nos deu a
entender que eram palavras escritas com sangue. Ficamos muito preocupados. A
monstra era má? Precisávamos descobrir isso. Precisávamos de um diálogo com
ela.
“Monstra,
você é legal? A gente quer te ver. Ass: Caçadores de monstros e amigos”
Neste dia, que
escrevemos em giz nas paredes externas do BEC, tínhamos um nome: Caçadores de
monstros e amigos. A identidade do grupo começava a se construir.
Como seria
essa monstra?
Fizemos vários
desenhos.
Otávio e Pedro no nosso esconderijo secreto
Nele
acontece a maioria das reuniões sobre como capturar a monstra. As ideias são
compartilhadas, esconderijos são criados e armadilhas são pensadas para serem
construídas.
E
tudo tem de ser feito em equipe. Um dia, um dos caçadores de monstros não
estava conseguindo cumprir o combinado. Quase foi expulso do grupo, mas todos
em consenso resolveram dar uma chance. A
preocupação do menino em “ficar fora da turma” me chamou a atenção pelo nível
de envolvimento que estávamos todos naquele momento do grupo.
Bom,
continuando nosso percurso, a carta aos caçadores veio cortada em pedaços para
que o grupo montasse e conseguisse ler. Ela dizia o seguinte:
Para
me encontrar vocês precisam:
1.
Encontrar um lugar redondo do CEU onde habitam
vários monstros
2.
Passar por algum lugar que nunca foram do CEU
Assim,
outros caminhos foram percorridos nesta busca...
E
aos poucos outras brincadeiras foram surgindo. Mas, às vezes, alguém pede:
“Vamos caçar monstros!”, ou trazem o tema a tona: “Eu vi o pé da monstra outro
dia”, “Eu achei esse papelzinho colorido na minha bolsa. Será que foi a monstra
que deixou lá?”
No
livro “Onde vivem os monstros”, de Maurice Sendak, Max, um menino, vê o seu
quarto se transformar em uma floresta e de repente está num barco indo para a
terra dos monstros, onde se torna rei.
O
livro, lido em grupo em um dos encontros, apresenta a transição da realidade
para a fantasia, por meio das ilustrações que começam enquadradas e com o virar
das páginas começam a fazer parte de todo o papel. Não há mais moldura. Estamos
todos na floresta onde Max nos levou.
Imaginação x realidade
Para
Suzy Lee, autora de livros infantis, as crianças não confundem realidade com
fantasia, transitam entre ambas com ousadia e brincam de faz de conta com muita
seriedade (LEE, 2012, p. 90-91).
Mas
procurar monstros é real?
Vigotski
traz no seu livro que na sua concepção comum, a imaginação ou a fantasia designam
aquilo que é irreal, o que não corresponde à realidade e, portanto, sem nenhum
valor prático. No entanto, a imaginação como fundamento de toda a atividade
criadora manifesta-se igualmente em todos os aspectos da vida cultural,
possibilitando a criação artística, científica e tecnologia (2014, p. 04).
Quando
as crianças veem a monstra, com centenas de ouvidos, pelos e pés cor de rosa,
podem estar associando a capacidade de elaboração e construção a partir de
elementos já conhecidos, de fazer novas combinações e isto se constitui o
fundamento do processo criativo.
Segundo
Vigotski, a imaginação é inerente ao ser humano e o processo criativo muito
importante para a infância.
o menino que cavalga num cabo
de vassoura imagina que monta um cavalo, a menina que brinca com a boneca
imagina-se a mãe, a criança que no jogo se transforma em ladrão, em soldado ou
em marinheiro, todas essas crianças que brincam são exemplos do mais autêntico
e verdadeiro processo criativo (VIGOTSKI, 2014, p. 06).
“A
imaginação é para a criança um espaço de liberdade e de decolagem em direção ao
possível, quer realizável ou não” (GIRARDELLO, 2011). Vamos decolar? Vamos
caçar monstros?
Exercícios de ser criança
No aeroporto o menino perguntou:
- E se o avião tropicar num
passarinho?
O pai ficou torto e não
respondeu.
O menino perguntou de novo:
- E se o avião tropicar num
passarinho triste?
A mãe teve ternuras e pensou:
Será que os absurdos não são as
maiores virtudes da poesia?
Será que os despropósitos não são
mais carregados de poesia do que o bom senso?
Ao sair do sufoco o pai refletiu:
Com certeza, a liberdade e a poesia
a gente aprende com as crianças.
E ficou sendo.
(BARROS, 2013, p. 453)
Referências Bibliográficas
BARROS, Manoel de. Poesia Completa. São Paulo: Leya, 2013.
GIRARDELLO, Gilka. Imaginação:
arte e ciência na infância. In: Pro-Posições,
vol.22 no.2, Campinas , maio/agosto de 2011. Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?pid=S0103-73072011000200007&script=sci_arttext. Acesso em: 05. Nov. 2015.
LEE, Suzy. A trilogia da margem: o livro-imagem
segundo Suzy Lee. São Paulo: Cosac Naify, 2012.
VIGOSTKI, Lev Semenovitch. Imaginação
e criatividade na infância. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2014.
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