sábado, 26 de dezembro de 2015

A Infância para Walter Benjamin: (uma referência poética, social e cultural para o PIÁ) - Carmen Pinheiro da Silva - coordenadora de pesquisa ação da Equipe Sul2




Prólogo explicativo:

A partir do momento em que conheci o PiÁ, no ano de 2012, quando iniciei como Artista Educadora no CEU Guarapiranga, comecei a pensar muito em intersecções  entre a minha visão de mundo, que parte sempre de um olhar crítico para a sociedade capitalista, e a formação artística para crianças. Minhas inquietações eram e ainda continuam sendo: Como faço esta mediação entre o meu trabalho como artista e com as crianças? E pensava: Como incutir nelas um pensamento crítico através da arte? Como alertá-las e prepará-las para “se protegerem” da sociedade em que nos é imposta? E as perguntas não paravam... seguiam soltas e preocupadas e talvez precipitadas, arrogadas (de arrogância e de rogar - paradoxos que sempre se erguem quando estamos falando do sujeito criança)
Daí, para ver se tudo isso fazia sentido,  fui  fazer um mestrado para estudar e pesquisar e entender melhor esses rogares.
Em paralelo com a minha pesquisa como artista/atriz em meu coletivo teatral, a II Trupe de Choque, que desde o ano de 2013 vem atuando em duas escolas estaduais na região do Grajaú, convidei um grupo de crianças dos 6º anos de uma das escolas (crianças com 11 anos de idade) para ver na prática como isso poderia se dar... Trabalhamos juntas uma vez por semana durante 2hs30 de abril a dezembro de 2014. Meu projeto era, foi ou está sendo (porque ainda o estou concluindo e devo defendê-lo em junho de 2016): Como trabalhar os conteúdos, os exercícios do meu grupo com crianças? Como fazer essa “transposição/mediação/adaptação”, para as crianças, sem ser jamais impositiva e doutrinária ou adultocêntrica?
Claro que elas me deram muito olés... E eu aprendi demais e depois de dar muitas voltas e bater muito a cabeça. cheguei a algumas hipóteses: a criança e a arte, já são a própria crítica, basta observamos os sinais que elas nos trazem de como estão incorporando o mundo e toda sua cultura...
Embora minha pesquisa tenha sido com uma turma de crianças fora do PiÁ, essa é uma atitude (crítica, podemos dizer?) que levo  para qualquer processo em que eu esteja inserida,  portanto como atitude e conceito (e não como método) ela sempre esteve presente nos meus processos no PiÁ, que aliás foi quem me levou a querer entender essas questões... Meu ensaio do ano passado, por exemplo, foi uma espécie (muito mal escrita) do meu esboço de projeto... O PiÀ me move e me faz repensar várias questões, a forma como vejo a arte, como lido com as minhas sobrinhas e com todas crianças a minha volta, como penso educação, como penso o mundo os adultos e as crianças e por fim, como penso no amor que deve haver entre esta tríade: mundo, criança e educação.
Portanto, trago mais uma vez esse ano, talvez de uma maneira mais arejada e com mais pé no chão, um  pequeno resultado em forma de texto: uma contribuição do meu projeto de mestrado, que creio que talvez possa ser interessante para o Programa. Peço licença a todos e espero que de fato seja útil... Além de Walter Benjamin, outros dois pensadores que fundamentam meu trabalho são Hannah Arendt e Paulo Freire... Aqui vai então um pedacinho de Benjamin no que toca um assunto que a todos nós apetece: Infância. Boa leitura a todos.

Começando então, após o prólogo explicativo:

Walter Benjamin não se propõe em sua obra a traçar uma historiografia da infância, como o fez, por exemplo, o grande cânone do assunto, Philipe Ariès em sua obra História social da criança e da família (1981)[1], 40 anos após Benjamin já ter levantado algumas considerações importantes sobre estudos sociais que abrangeram de um modo muito especial,  a infância. O que se encontra de uma maneira até dispersa na obra de Benjamin sobre infância são, podemos dizer, alguns apontamentos gerais, muitos deles até repetidos. O que acontece é que estes apontamentos, mesmo não sendo o grande assunto de sua vasta obra, colocam a criança em um lugar de extrema importância em relação aos tempos confusos da modernidade, que o autor tanto se debruçou. Tempo este em que a criança ainda era considerada um adulto em miniatura e não tinha alcançado o status que possui hoje. Portanto, Benjamin por possuir este repertório singular e revolucionário para sua época pode ser considerado um dos pioneiros no assunto, por enxergar na criança um ser histórico e com um grande senso crítico e criativo: alguém capaz de instaurar outras lógicas para os tempos e desafios que o mundo estava vivendo.
De acordo com MARCHI (2011), Benjamin já nos anos 1920, do século XX, muito antes de Philipe Ariès, teria elevado, mesmo que sutilmente, a “criança ao estatuto de sujeito digno de observação e nota” (ibidem).
Para a autora, por este motivo, Benjamim poderia ser muito bem considerado um precursor “da abordagem sociológica, que somente nos anos 80 do século XX, vai olhar para a criança como um ator social, portanto, como “produtora de cultura”” (ibidem).
Portanto, a criança ganha, no olhar de Benjamin, um lugar de muito destaque, aparecendo como um sujeito de grande importância na história, tal como os importantes personagens sinalizados em suas obras que seriam capazes de sobreviver à cultura da modernidade, personagens como o bárbaro, ou os grandes construtores, os artistas, ou mesmo a figura do herói baudelairiano[2]. A criança seria também este ser lírico em potencial, capaz de construir a partir do nada ou de muito pouco, ou mesmo este colecionador de pérolas[3], que consegue juntar aquilo que precisa ser resgatado e enxergado com outros olhos. E, diferente do colecionador que diante de sua coleção possui uma atitude senil, na criança esta atitude diante do material coletado aparece de forma mais corajosa. As crianças, dirá Benjamin, diferente do adulto, “tem a capacidade de renovar a existência graças a uma prática múltipla e nunca complicada” (BENJAMIN, 2012, p. 91). Essa sabedoria para criar com tão pouco, ou “essa necessidade de recomeço radical”, dirá Benjamin (2012, p. 87) também está presente na maneira como o artista elabora seu trabalho.
Estas analogias entre estes importantes personagens da modernidade, entre a criança e o artista, é possível ser capturada, como dissemos, na obra de Benjamin.  No ensaio A modernidade (2000), tendo como objeto de estudo as cidades e a modernidade, a partir de um olhar dirigido para a obra de Charles Baudelaire, Benjamin (2000) vai nos dizer que para sobreviver à modernidade seria necessária uma atitude heroica. Vários autores da época de Baudelaire nos diz Benjamin, apostaram em personagens heroicos, mas Baudelaire, (diferentemente de muito de seus contemporâneos), se contrapondo à ideia romântica da idealização do indivíduo, encontrou em seu herói a figura do apache e do trapeiro, a dos soterrados e não levados a sério pela sociedade. (BENJAMIN, 2000, p. 15). Enquanto Balzac tem no seu herói a figura do gladiador, “Baudelaire ao contrário, reconhece no proletário lutador escravizado” a sua sombra de herói.

“Aqui temos um homem – ele tem de recolher na capital o lixo do dia que passou. Tudo que a cidade grande jogou fora, tudo o que ela perdeu tudo o que desprezou, tudo o que destruiu, é reunido e registrado por ele. Compila os anais da devassidão, o cafarnaum da escória; separa as coisas, faz uma seleção inteligente; procede como um avarento com seu tesouro e se detém no entulho que, entre as maxilas da deusa indústria vai adotar a forma de objetos úteis ou agradáveis”. – (BENJAMIN, apud Baudelaire, 2010, p. 15).

Benjamin (ibid) dirá que o lixo, os detritos, os restos, as ruínas que sobram da civilização é que servirão de assunto heroico para os poetas, os loucos, os marginalizados. São estes, os desfiliados, os grandes personagens da história que rompem com a normatividade e quebram todo o contrato social, renegando as virtudes e as leis sociais, instaurando no mundo da produtividade uma nova forma de vida.  São eles os trapeiros e os apaches, que solitários ou rebeldes “realizam os seus negócios na hora em que os burgueses se entregam ao sono” e que invadem as grandes vias das cidades com suas carroças e trapos atrapalhando o trânsito e a ordem, são a escória que a sociedade capitalista rejeitou os mesmos a juntar os restos das mercadorias descartadas pela intensa e desenfreada produtividade. (BENJAMIN, 1994). Estes personagens esconderiam na sua aparente incapacidade de convencimento, seja pela sua mudez ou pelo seu aspecto, o único e autêntico grau de heroísmo de que esta sociedade ainda é capaz de erigir, ou seja, aqueles que irromperiam o tempo e escreveriam outra historiografia, com outra língua e outra lógica (BENJAMIN, 2010, p. 9).
Para ANDRÉ (2012, p. 97), Benjamin vai compreender a criança como um ser dotado de razão e sensibilidade, mas que ainda possui certa inabilidade para lidar com a linguagem adulta. É justamente por ainda possuírem esta inabilidade com a linguagem do mundo racional dos adultos que a criança pode nos fazer enxergar o nosso inacabamento e, portanto, a nossa pré-disposição em aprender algo novo com elas.
Esta semelhança entre a criança e o herói baudelairiano, como veremos a seguir, é possível também ser encontrada nos apontamentos que Benjamin fez sobre a infância, onde há um trecho que lembra muito o de Baudelaire sobre o trapeiro que recolhe os detritos deixados pela humanidade:

“(...) É que as crianças são especialmente inclinadas a buscarem todo local de trabalho onde a atuação sobre as coisas se processa de maneira visível. Sentem-se irresistivelmente atraídas pelos detritos que se originam da construção do trabalho no jardim ou na mercearia, da atividade do alfaiate ou onde quer que seja. Nesses produtos residuais elas reconhecem o rosto que o mundo das coisas volta exatamente para elas e só para elas. Neles, estão menos empenhadas em reproduzir as obras dos adultos do que em estabelecer uma relação nova e incoerente entre estes restos e materiais residuais” (BENJAMIN, 2009, p. 57)

Semelhante ao personagem do trapeiro, as crianças também se sentem atraídas pelos restos deixados pela humanidade, pela “deusa indústria” e passam a agir como colecionadores diante deste universo “de coisas que dão o rosto ao mundo das coisas”, descartando, catalogando e subtraindo dos restos deixados pelos adultos ou da própria natureza aquilo que lhes interessa. Semelhante aos grandes personagens que tentam resistir à modernidade, o poeta, o louco, o apache, o trapeiro, o marginalizado, os renegados, podemos dizer salvo engano, que a criança também seria este indivíduo que “esconderia na sua aparência esta incapacidade de convencimento” e que por isto mesmo seriam aqueles capazes de um “recomeço radical”, de “começar tudo de novo, a voltar ao princípio, a saber viver com pouco, a construir algo com esse pouco” (BNEJAMIN, 2012, p. 87). 
Ora, não seria exatamente este o desafio que, segundo Benjamin (2012), nós “pobres de experiência” seríamos obrigados a nos colocar: instaurar um novo conceito positivo de barbárie e começarmos por fazer “tábua rasa”?
Ao trazer a criança para a baila de seu pensamento sobre modernidade e história, Benjamin a coloca em pé de igualdade com os artistas, os loucos e marginalizados, aqueles capazes de instaurar uma nova possibilidade de escrita, uma nova forma de se relacionar com os detritos deixados pelo progresso. Para este autor, de nada nos serve a cultura, se não encontrarmos uma experiência real que nos mantenha ligados a ela. “Preservar é um verbo que se aplica hoje a um pequeno grupo de poderosos” (BENJAMIN, 2012, p. 90).

“Ficamos pobres. Fomos desbaratando o patrimônio da humanidade, muitas vezes tivemos de empenhá-lo por um centésimo de seu valor, para receber em troca a insignificante moeda do atual” (ibidem).

 No lugar de preservação, Benjamin (ibidem), proporá então para que nos rearranjemos com muito pouco, com os restos e as ruínas deste progresso que tivemos que engolir. A criança seria pela sua maneira de olhar o micro e os sinais do mundo, inclinada a realizar esta tarefa de coletar os detritos deixados pelos adultos e construir o mundo ao seu modo, com o rosto que ele lhes aparece e não tentando reproduzir o que os adultos fazem. Fazem isto criando, brincando. Deste modo conseguem inaugurar algo novo com o que é coletado, montando e remontando outras histórias.
Na concepção benjaminiana,  a criança não é uma tábua rasa, mas um ser histórico e social capaz de ver o mundo com seus próprios olhos, alguém que monta e remonta a sua própria história. Nos seus textos, Benjamin fala sobre o modo peculiar de como a criança é capaz de criar, colecionar, relacionar, fantasiar e ler o mundo, e é justamente essa forma de percepção que acreditamos  que a criança possui, mesmo em tempos de capitalismo financeiro, em que elas, por fazer e pertencer à cultura também estão submetidas cada vez mais precocemente. Se Benjamin estiver certo, as crianças então seriam estes seres utópicos por natureza, capazes de refazerem e denunciarem o mundo com suas brincadeiras, gestos e reorganização das coisas subtraídas dos vestígios deixados por nós adultos.
A criança está no início de sua formação e por ainda não compreender e não ser totalmente dominada pela cultura, ela cobra, exige e merece um mundo melhor do que lhe é dado. É neste sentido que Benjamin pode ser extremamente útil, pois ele traz à baila essa força inovadora e criadora das crianças que é seu poder de imaginação e de olhar para as coisas e transformá-las em algo novo a ser inaugurado.
A concepção de infância para Benjamin, portanto, vai totalmente contra a infantilização da criança, para este autor, a criança é autônoma, criadora, capaz de subverter a ordem das coisas e com seu olhar sensível e despido de pré-conceitos criar outras realidades, refazer a história a cada peça, cada pedra, retalho, pedaço, toco, resto, tijolo, detrito. A criança brinca e brincando ela cria, apreende e transforma a realidade a sua volta.




[1] Livro em que é possível ver uma historiografia da criança, desde a idade média até as nossas sociedades modernas.
[2] Para saber mais sobre estes personagens que Benjamin coloca como “os heróis da modernidade” ver os ensaios: Experiência e Pobreza in: O anjo da história e A modernidade in: A modernidade e os modernos.
[3] Termo que Hannah Arendt utilizou para homenagear postumamente Benjamin em um ensaio intitulado: “O pescador de pérolas”.   

Ampliações Benjaminianas: O PiÁ, eu, as crianças e a minha querida equipe: Adreisa, Eliane, Joice, Luis Vítor ,Verônica Fátima e Selma.

Criança mastigando palavras:
Entra-se em bando para dentro da biblioteca, lugar acolhedor sem a sobriedade dos tempos de outrora. Por um instante um pouquinho de ordem até sacar das caixas de madeira o livro que mais apraz cada um. Muitas vezes, vê-se o livro desejado parar nas mãos de outro. Finalmente contenta-se com outro para só então entrar nele com uma confiança sem limites. O silêncio do livro convida a avançar e avançar. Escutam de escorregão os colegas e não tiram os olhos das palavras que terão que dizer quando chegar a sua vez. Ao ler as crianças tampam as orelhas, segura o queixo, lê suspirando em meio ao redemoinho das letras, sente na face o sopro de toda a história e quando finalmente termina a leitura, toma a coragem para começar de novo e de novo.









 A corda e a o lanche:
Roda, mochilas pequenininhas com cores e desenhos da infância que quer se instituir. A criança resiste e na hora do lanche, narra histórias. Divide o alimento com os amigos, come depressa para brincar... Deixa tudo espalhado ali, o lixo, os potinhos, as mochilinhas. O educador atento chama a atenção, é preciso colaboração. Com a mesma pressa voltam e recolhem seus lixos e mochilas para voltarem correndo para a brincadeira.







Criança desordeira:
Já conhece todas as artimanhas do jogo. Faz de conta o tempo todo. Tudo é ensaio sem pausa para tal. Na criança as coisas passam-se como nos sonhos: não conhecem nada de duradouro, acha sempre que tudo lhe cai em cima, vem ao seu encontro, esbarra-se com ela. 





Criança num carrossel:
O balanço tem a altura certa para sonhar que se está voando. A criança corre para ele e senta-se como se fosse sentar em um trono onde poderá dominar este mundo que lhe pertence. Nesses momentos o que há é um eterno ir e vir, pura sabedoria. Quando o balanço começa a parar o espaço gagueja e as árvores e todas as sombras, voltam a si. O carrossel balanço torna-se terreno seguro mais uma vez, ponto zero para mais uma viagem e trono para outro rei sábio.






Bibliografia:
ANDRÉ, Carminda Mendes. Apontamentos de uma Arte-Educadora  – Artes Cênicas. São Paulo: Unesp, 2013.
ARENDT, Hannah. Walter Benjamin. In Homens em tempos sombrios. São Paulo: Ed. Schwarcz, 2003.
BENJAMIN, Walter. Charles Baudelaire um lírico no auge do capitalismo. Ed. Brasiliense, 1994.
_______. Reflexões sobre a criança, o brinquedo e a educação. Ed. 34, 2009.
_______. O narrador. Considerações sobre a obra de Nikolai Leskov. In: Magia e técnica, arte e política. Ed. Brasiliense, 1994.
_______. Experiência e pobreza. In: Magia e técnica, arte e política. Ed. Brasiliense, 1994
._______. Sobre o conceito de história. In: Magia e técnica, arte e política. Ed. Brasiliense, 1994.
._______. A hora das crianças. Rio de Janeiro. Ed. Nau. 2015
._______. Rua de Mão única. Infância Berlinense. Belo Horizonte. Ed. Autêntica, 2013.
._______. O coelho da páscoa descoberto ou Pequeno Guia dos esconderijos. Belo Horizonte. In: Imagens do pensamento. Ed. Autêntica, 2013
._______. Conto e cura. Belo Horizonte. In: Imagens do pensamento. Ed. Autêntica, 2013
CHAUI, Marilena. O que é ideologia. São Paulo: Brasiliense, 1980.



[1] A ideia foi se apropriar de alguns textos de Walter Benjamin em sua obra "Rua de mão única"  e “Infância Berlinense” (Ed.Autêntica, 2013) e ilustrar com algumas fotos. Foram usados trechos da parte do livro que se chama "Ampliações" em que Benjamin escreve sobre a percepção das crianças em relação a alguns temas. Fiz várias e pequenas adaptações para nossa realidade, mas procurei manter o tom onírico e poético que o autor dá aos textos. Os textos originalmente (em português) chamam-se: "Criança lendo",  "Criança gulosa", "Criança num carrossel", "Criança desarrumada" e "Criança escondida".

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