Um PIÁ só para elas:
um ensaio para crianças nômades
por Nádia Recioli
prólogo
Em
uma das reuniões gerais do PIÁ uma vez me entregaram um giz na mão
e disseram: escreva qual é sua luta. Assim como nesse ensaio, eu não
sabia exatamente por onde começar. Então escrevi, bem pequenininho,
em uma pilastra: “o lugar de cada um”. Sim, essa é minha luta.
Para que cada pessoa tenha o seu lugar no mundo e seja bem vindo a
esse lugar que é todo seu. Não me refiro a cantos, margens ou
sarjetas, ao “lado de fora” da vida. Me refiro a um bom lugar,
abrigo, aconchego que cada ser merece ter, pelo simples fato
de ter nascido. Se nasceu, merce existir. Se existe, merece viver com
dignidade.
as
crianças nômades de areia
Assim
que cheguei ao CCJ no início de 2015 já ouvi falar sobre as
“Crianças Nômades”, ou “Crianças de Areia”1.
Um grupo grande de meninos e meninas em situação de extrema
vulnerabilidade social, assíduas frequentadoras do equipamento. Na
prática, eu demoraria ainda bastante tempo para conhecê-las, mas
sua fama as antecedeu muito.
O
que foi dito é que no CCJ elas encontram o abrigo que normalmente
lhes é negado em quase todos os espaços da cidade. E que, “cada
hora do dia que passam ali é um tempo a menos que estão na rua,
pedindo nos faróis, se expondo a toda sorte de riscos”. Ainda
assim, elas foram referidas como um problema difícil de lidar. Uma
longa história, de 2 anos de relação entre as equipes do CCJ e
essas crianças nos foi contada, com todas as superações e avanços
no estabelecimento de algum vínculo, assim como com todas as
infindáveis dificuldades encontradas.
Também
ouvi os relatos da equipe anterior do PIÁ, de como eram as aparições
e interferências dessas crianças nos encontros em 2014, de todas as
tentativas de aproximação e de sua inclusão nas atividades com os
piás, dos resultados alcançados e barreiras encontradas. Destas
últimas, a principal era o fato de elas nunca terem conseguido se
inscrever oficialmente no Programa por não haver um adulto que se
responsabilizasse por elas e assinasse sua inscrição. Dessa forma,
se algo lhes acontecesse (e o CCJ é um equipamento bastante
vulnerável, com situações de roubos e assédios vivenciados por
Artistas Educadores e crianças; além de o prédio não ter sido
arquitetonicamente planejado para essa faixa etária, oferecendo
muitos riscos em potencial), quem seria responsabilizado?
Nesse
momento eu começava a cair em uma armadilha, sem perceber, da qual
só muito mais tarde consegui sair. A armadilha de acreditar que
“tudo já havia sido tentado e não havia muito mais o que fazer, a
não ser dar continuidade às abordagens que trouxeram os “melhores
resultados” com essas crianças.
As
narrativas sobre elas eram repletas de situações de violência e de
transgressão. Elas inicialmente mentiam seu nome ou idade, chegaram
a agredir, verbal e fisicamente, alguns gestores, funcionários e
Jovens Monitores, por vezes fizeram xixi ou fezes nas dependências
do equipamento, depredaram tudo o que podiam, invadiram a
brinquedoteca pulando uma “parede” de vidro que poderia ter se
quebrado, caminharam pelo parapeito e ameaçaram se jogar, engoliram
tachinhas na frente da equipe.
Eles
não tinham noção de ordem social.
Das mais vagas era sua concepção dos valores materiais. Nascidos e
criados nas favelas da cidade, cercados por todos os lados
pela autoridade dos pais, polícia e funcionários da escola,
vítimas de um ambiente especialmente estreito e restrito, sua
capacidade de auto-restrição achava-se quase totalmente por
desenvolver, exceto quando em íntima proximidade de alguma
autoridade limitante. Sua ideia
de relações sociais limitava-se à primitiva forma de cooperação
para autoproteção contra
a autoridade.
Individualmente, eram passivos, dominados e apáticos. Combinados, ou
em grupo, eram agressivos, destemidos e antissociais.
(…)
eram espontâneos,
originais, sagazes, porém
geralmente em sentido destrutivo.
O líder reconhecido
era o rapaz que melhor usava a linguagem inconvencional, que se
mostrava mais ousado nas atividades destrutivas e assumia a
atitude mais desafiante para com os adultos.
(LANE,
183)
Essa
fala foi proferida em 1918, pelo educador Homer Lane, no Reino
Unido2.
Mas poderia muito bem referir-se às Crianças Nômades do CCJ, na
São Paulo de 2015. Estranha semelhança.
E
o que mais espanta não é que o comportamento de crianças em
situação de marginalidade se assemelhe em contextos históricos
distintos mas, principalmente, o fato de que a atitude dos adultos em
relação a elas seja absolutamente idêntica, mesmo com um século e
um oceano de distância entre os dois casos. É estranho que os
adultos, ao longo de cem anos de história, tenham aprendido nada ou
tão pouco sobre as crianças. E isso apenas evidencia o óbvio de
que ao longo da história do Ocidente as crianças não têm sido
ouvidas. Ainda mais quando as crianças em questão vêm da
periferia. Falar de uma “criança periférica” chega a ser um
pleonasmo. Ou melhor, uma hipérbole. Claro, não me refiro a
quaisquer crianças da periferia. Me refiro àquelas em nítida
situação de vulnerabilidade: que pedem nos faróis, que têm
feridas expostas, piolhos, mau cheiro e fome. Muita fome e fome de
tudo, não apenas de comida. E que, por sentirem fome, sentem raiva
também.
Roncou,
roncou
Roncou
de raiva a cuíca
Roncou
de fome
Alguém
mandou
Mandou
parar a cuíca, é coisa dos home
A
raiva dá pra parar, pra interromper
A
fome não dá pra interromper
A
raiva e a fome é coisas dos home
A
fome tem que ter raiva pra interromper
A
raiva é a fome de interromper
A
fome e a raiva é coisas dos home3
Sua
situação de grande vulnerabilidade e privação as aproxima, é
claro, da delinquência (e esta nada mais é do que função residual
das relações de classe operantes nesta sociedade). Elas estão à
margem da margem. O mundo lhes é hostil a todo tempo e, por questão
de lógica, elas são hostis com o mundo. Unem-se umas às outras e,
no grupo, encontram a proteção e a força de que precisam. A
postura do grupo em relação ao patrimônio e à autoridade é uma
atitude de afronta. Essa atitude é respondida sistematicamente da
mesma forma: ou elas são expulsas, devolvidas ao “seu lugar”,
que é sempre o lado de fora; ou são repreendidas. Ou seja, sua ação
violenta é respondida sempre com mais violência. O que (re)alimenta
sua raiva e desejo de afronta. E a pergunta mais cabível, cuja
resposta deveria ser óbvia, é se de fato é nas crianças que
começa o ciclo da violência ou se a violência primordial é
exercida sobre elas.
Antes
mesmos de serem questionados a esse respeito os adultos logo repetem
a mesma ladainha de justificativas: “mas essa é a única linguagem
que elas entendem, a da autoridade”. Como se não houvesse outra
maneira. Mais uma vez a culpa pela atitude opressora é do oprimido.
No caso, uma criança. Uma criança a quem se quer responsabilizar e
punir pelos seus atos, mas de quem não se quer ouvir as angústias.
Quando
essas crianças chegam e dizem querer participar de uma atividade do
PIÁ, mas no minuto seguinte elas estão fazendo de tudo para
atrapalhar, não é que “essas crianças não sabem o que querem”,
como foi dito. Elas querem algo. E não é atrapalhar os outros o que
elas querem. Elas querem lançar “um grito desumano, que é uma
maneira de ser escutado”. Elas
gritam sempre, inclusive para conversar entre si. Não faz sentido
pedir que falem baixo. Elas querem destruir qualquer coisa. Bater com
força com a colher de pau na panela, gritar, xingar. O impulso
violento é
generalizado. Essa violência e essa raiva irão atingir qualquer
coisa que esteja no caminho. Se provocam atitudes autoritárias
é justamente para poder transgredi-las e, na transgressão, sentir o
gosto de sua liberdade marginal. Isso não é em nada arbitrário. É
um ato político.
Não
faz sentido tomar pessoalmente e ofender-se. “Ah, agora ela mexeu
comigo, ela me xingou, isso eu não vou tolerar!” Porque todo o
resto estava justamente sendo
“tolerado”. E não
tomando como uma causa que é
de todos nós.
Ninguém
escreveu ou falou seriamente
ainda sobre
essas crianças.
Em uma reunião
extraordinária na
Divisão de Formação da
Secretaria
Municipal de Cultura
nos foi dito que não se
tinha dimensão do caso. E
ficou claro que não existe um procedimento burocrático que possa
garantir a participação dessas
criaças e outras como elas
no Programa, o que é inclusive, um direito fundamental que
possuem.
Elas só não são completamente
invisíveis porque se fazem
vistas, porque quebram e
transgridem e gritam. Não adianta lhes pedir silêncio e bom
comportamento.
Elas
querem um PIÁ só para elas.
a
cena que se repete
ou
a
raiva é a fome de interromper
É
dia de encontro do PIÁ. As Crianças Nômades estão no espaço e
são convidadas a participar. Elas aceitam, às vezes com alguma
hesitação. Elas têm medo de se expor em determinada atividade, têm
medo de “não saber” fazer o que é proposto. Então usam uma
estratégia, que é sempre a mesma: criam um mal estar generalizado.
Forçam um limite, procuram o ponto fraco e fazem provocações para
despertar a repressão que irão desacatar. Querem quebrar algo ou
“zoar alguém”.
Desta
vez, diferente de outras, elas têm ainda um trunfo: trouxeram a
própria comida, não estão com tanta fome assim e não precisam
esperar pelo momento do lanche, não precisam barganhar colaboração
por alimento.
Inicialmente
estavam “esbanjando” e jogando as cascas dos amendoins no chão.
Depois, durante a atividade, começaram a discutir entre si e a bater
uma na outra. No PIÁ nós não queremos violência. A solução
encontrada é apartá-las da atividade. Com uma bronca, é claro. Um
ato violento. Porque não queremos violência. Elas, estando de volta
ao seu lugar de costume, o lado de fora, passam a atirar amendoins
nas crianças que estão do lado de dentro da atividade. Então são
convidadas a se retirar do encontro. Com nova bronca. É sempre igual
e acontece rápido demais. Perde-se a paciência rápido demais e a
chave da repressão é acessada rápido demais. Se isso se estende ou
intensifica, especialmente se há a depredação de algum patrimônio
envolvida, chega alguém do CCJ e as suspende por alguns dias.
Na
cena em questão a resposta delas foi: então vamos todas embora, já
que não somos bem vindas. Nesse dia eram cinco meninas, entre 8 e 13
anos, em média. As duas mais novas não foram expulsas e poderiam
permanecer na atividade. Uma delas decidiu ir com seu grupo enquanto
dizia consigo “são elas que me trazem aqui”. Seu senso de
lealdade falou mais alto. A outra quis ficar. As mais velhas exerciam
seu poder sobre ela: “você é pequena, não sabe ir embora
sozinha, tem que ir com a gente”. A menina ficou dividida. Uma
disputa se instaurou entre quem era do PIÁ e as meninas nômades, e
o objeto disputado era uma pessoa. Criamos uma cisão no grupo, e
agimos como se defendêssemos aquela que queria ficar (ela queria
mesmo ficar e também se posicionou contra as outras) sem considerar
com mais cuidado a função dessa simbiose e interdependência que
existe intragrupo, assim como o tipo de ética e lealdade que opera
ali e que rapidamente julgamos como um tipo de “comportamento de
bando”.
É
claro que abordagens como essa também trazem “avanços” ou bons
resultados, dependendo da leitura que se faça. De fato, pelo menos
uma delas ficou e participou do encontro. Assim como em outras
situações, quando alguns meninos ou meninas nômades foram expulsos
da atividade, pelo menos alguns voltavam depois, mais “humildes”
(ou deveria dizer humilhados?) querendo participar e se dispondo a
colaborar.
Quase
todo o tempo eu me recusei a gritar ou expulsar ou o que me parecesse
uma atitude repressora a priori. Queria ter algum tempo de sentir que
tipo de abordagem poderia ser melhor do que isso. Queria dialogar,
por mais difícil que pudesse ser. Queria atravessar o caos para ver
o que dele nascia. Tentávamos estabelecer conversas com os piás
para que considerássemos essa uma questão de todos nós e não uma
situação isolada em que meramente fomos “atrapalhados” por
crianças “mal educadas”. Era assim que as turmas do PIÁ se
referiam a elas em um primeiro momento. Às vezes com palavras mais
pesadas, como “idiotas” ou “trouxas”. Uma menina muito
honestamente admitiu que se sentia insegura, achando que poderia ser
roubada. E assim vemos que as questões de classe se estabelecem
muito cedo. As relações de poder também. Uma garota do PIÁ chegou
uma vez a implorar que eu gritasse com as meninas nômades para
reestabelecer a ordem.
“Acho
que você não tem autoridade. É apenas com a linguagem da força
que essas crianças entendem.” Foi o que eu ouvi de alguém da
equipe. Respondi que eu não sabia se estava certa, mas que precisava
de tempo e espaço para experimentar uma abordagem mais dialógica
com elas. Precisava ao menos tentar, antes de admitir que não havia
outro jeito. Tive medo sincero de que minhas convicções estivessem
erradas, que fossem uma espécie de romantismo ou utopia, mas apenas
me arriscando poderia saber essa resposta. E assim comecei a escapar
da armadilha.
nota
sobre uma Infância
kitschizada
Quando
lemos os Capitães da Areia de Jorge Amado, nós amamos aquelas
crianças, que nos parecem tão belas, heroicas e livres. Sua atitude
aventureira e desafiadora é pura poesia. Porém, quando temos a
oportunidade de encontrá-las na vida real, tudo o que conseguimos
sentir é pena, asco e uma certa raiva. Achamos que o ato heroico é
o nosso, pela coragem de eventualmente abraçar essas
crianças. Por sermos os únicos a não expulsá-las. Por tolerá-las,
apesar de seu odor, mal comportamento e falta de educação.
As
crianças de rua fictícias são belas e romantizadas justamente
porque não possuem corporeidade (e assim não têm cheiro, nem fome,
nem piolho, nem fezes), são ideia pura. Esse
ar bucólico
associado a
uma Infância
generalizada e absoluta
– desconsiderando as
múltiplas experiências de diferentes
infâncias – é
o que podemos chamar de kitsch, “o
ideal estético de todas as ideologias políticas”. Em
A Insustentável Levez do Ser, Milan Kundera descreve
uma cena em que um senador americano observa quatro crianças
correrem sobre a relva e diz à Sabina – “uma mulher vinda de um
país comunista onde, estava ele convencido, a relva não cresce e as
crianças não correm” – que
para ele aquela
cena é a felicidade.
Ao que o narrador questiona:
Como
o senador podia saber que as crianças significavam
felicidade?Enxergaria dentro de suas almas? E se três dessas
crianças, assim que saíssem de seu campo visual, se atirassem sobre
a quarta e começassem a espancá-la?
O
senador tinha apenas um argumento a favor de sua afirmação: a
sensibilidade dele. Quando o coração fala, não é conveniente que
a razão faça objeções. No reino do kitsch se pratica a ditadura
do coração. É preciso evidentemente que os sentimentos suscitados
pelo kitsch possam ser compartilhados pelo maior número possível de
pessoas. Por isso, o kitsch não se interessa pelo insólito; ele
apela para as imagens-chaves profundamente ancoradas na memória dos
homens: a filha ingrata, o pai abandonado, os garotos correndo num
gramado, a pátria traída, a lembrança do primeiro amor.
O
kitsch faz nascer, uma após a outra, duas lágrimas de emoção. A
primeira lágrima diz: como é bonito crianças correndo num gramado!
A
segunda lágrima diz: como é bonito se emocionar com toda a
humanidade ao ver crianças correndo num gramado! (KUNDERA, 245)
Então,
no universo kitschizado da Infância,
não há espaço para crianças
que quebrem
com esse ideal ao
expor seu e excesso de vida,
de realidade e
de humanidade, o que implica
na
existência de corpo,
impulsos
e conflitos. Nós, os
adultos, somos responsáveis pelas crianças. Exigir de uma
criança tão vulnerável, que
demonstre
um
mínimo de
gratidão pelo
amparo ou afeto que lhe dispomos é
ser cruel e infantil
no mal sentido.
É partir do pressuposto de se estar oferecendo
até mais do que ela merece.
Uma
vez havia no CCJ uma linda
exposição que
procurava um resgate das brincadeiras e
brinquedos tradicionais,
enfatizando a ideia de que todas as crianças devem ter seu direito à
infância garantido. Naturalmente, as Crianças
Nômades
adoraram a exposição, brincaram muito e, como crianças fazem,
quebraram alguns dos objetos
que estavam ali disponíveis
para o uso. As crianças do
PIÁ também fizeram isso.
Mas são pesos e medidas diferentes. Então ouvi a seguinte frase:
“uma
coisa é a criança vir para brincar, numa boa, outra coisa é ela
querer destruir as coisas. Aí não. Aí eu acho que tem que expulsar
mesmo!”
Isso
revela a característica de
simulacro de quase
todos os discursos, objetos e espaços
direcionados especificamente
para crianças. Por
exemplo: em um primeiro momento foram disponibilizados objetos
e brinquedos aos quais normalmente a criança não tem acesso para
brincar. Se em casa as mães não deixam mexer nas panelas, ali havia
panelas e colheres de pau disponíveis para
serem batucadas. Havia
outros brinquedos simples,
feitos de lata e madeira, para deixar
claro que não precisamos de
brinquedos caros, se temos a imaginação. Agora, se a
criança começar
a sujar tudo e quebrar as coisas, então
ela
está passando dos limites. E
o adulto em questão,
assim como o pai
que ela provavelmente
não tem, ou qualquer outro adulto repressor, vai
brigar com ela,
expulsar, e recolher os brinquedos. Porque a liberdade da
criança vai até onde
o adulto determina. E
o adulto determina que a criança não deve intervir nem
estragar nada que seja “de
verdade”. Afinal, existe
uma vastidão de representações da
realidade feitas de plástico
(ou madeira, ou lata),
um mundo de
objetos de kitschizados oferecidos
à criança para que ela possa “brincar”
de viver e representar a
brincadeira sem atrapalhar a
vida real.
O
kitsch
é tido como
o lugar
próprio da Infância.
O
lugar de cada um
Afinal,
o PIÁ e um programa aberto a todas as
crianças, certo?
Se
a resposta for não, então quais são os critérios?
Se
a resposta for sim, então será que o programa está de fato
preparado para receber
todas as crianças?
Quais
são os caminho para o programa verdadeiramente adaptar-se às
demandas e público específicos de cada equipamento?
Tais questionamentos foram
disparadores de uma proposta de ação compartilhada realizada por
mim e pela companheira de equipe Patríca Silva. Não podíamos ficar
detidas e inertes simplesmente porque não haviam fichas de inscrição
para essa Crianças de Areia. E tratá-las como visitantes que
chegavam e partiam quando quisessem dos encontros era interessante
porém claramente insuficiente. Elas não entendiam os ritos
estabelecidos com as turmas justamente por não participarem da
dinâmica completa do encontro e tinham dificuldade de colaborar
justamente por isso. Em diversas situações se sentiam inibidas em
participar das atividades por não conseguirem se sentir à vontade
ou confiar na turma. Elas precisavam de um PIÁ só para elas e
decidimos atender esse pedido.
Marcamos dia e horário em que
estaríamos à espera delas e paramos de aceitá-las nas outras
turmas, afinal elas tinham seu horário específico. Foram
pouquíssimos encontros (pois só conseguimos sair da armadilha
depois de um tempo considerável no Programa, quando já
compreendíamos melhor sua dinâmica e estrutura), mas com resultados
bastante significativos. Inicialmente achávamos que elas não viriam
e planejamos estratégias para despertar seu interesse. Não foi
necessário, elas compareceram e sabiam bem que tipo de atividade
queriam fazer.
Logo no primeiro dia houve o
furto do meu celular por um grupo de meninos que entrou na
brinquedoteca aparentemente querendo brincar ou participar do
encontro. As meninas (eram três nesse dia) ficaram visivelmente
abaladas com isso, o que culminou em uma guerra de tinta entre elas.
Ficaram sujas dos pés à cabeça, assim como a sala virou um caos.
Foi esta a primeira oportunidade de uma atitude simples e
significativa: sujou? Então limpe, eu ajudo. E ficamos horas a
limpar a brinquedoteca. Objetos e espaços não são mais importante
do que pessoas. Se queremos construir com essas crianças o sentido
de cuidar do espaço público porque ele pertence a todos nós,
precisamos primeiro passar pelo direito ao uso (o que inclui a
possibilidade de sujar e quebrar) e pelo exercício do cuidado e do
zelo (nesse caso, o ato de limpar). A consequência do ato é
inerente ao mesmo e não algo arbitrário e desconexo como um castigo
ou uma suspensão. Foi divertido sujar e foi chato limpar a
brinquedoteca. Mas é melhor limpar e sentir-se respeitada enquanto
ser humano do que ser ofendida e tratada como uma delinquente. Uma
cena análoga teve de se repetir apenas uma vez para que as meninas
passassem a pensar melhor se queriam mesmo usar as tintas e de que
maneira fariam isso.
Esses poucos encontros foram
pautados pela escuta e pela construção gradativa (veja bem, não
exigida a priori) de um respeito mútuo. Elas continuaram a nos
testar e procuramos oferecer atenção e limites na medida certa e de
acordo com a demanda. Frequentemente a medida do limite é a medida
daquilo que se sente, não é preciso simular nada. Foi visível a
diferença de postura das Crianças Nômades durante esse processo. E
impressionante o afeto real que desenvolvemos em pouco tempo. Minhas
convicções pedagógicas sobre respeito e diálogo apenas se
confirmaram. Meu interesse pelo universo do outro, daquele que não
sou eu, também. Minha única dor foi não ter iniciado antes, muito
antes esse processo.
A
obediência veio a ser encarada como virtude. Mas a obediência é a
mesma virtude que a mediocridade – ambas deixarão as pessoas fora
das cadeias, e esse é o padrão de respeitabilidade numa sociedade
medíocre. (LANE,
171)
notas
1 “Nômades” devido ao fato de não estarem oficialmente inscritas no programa e sua interação nos encontros ser sempre fugaz e esporádica; “de Areia”, em adequada alusão aos Capitães da Areia, de Jorge Amado.
2 Refere-se ao primeiro grupo de jovens atendidos pela Little Commonwealth. Uma espécie de reformatório para onde eram enviados os jovens “delinquentes” condenados pela justiça. Ali não havia muros e os jovens eram membros de uma comunidade rural que deviam ajudar a gerir. Os grifos são meus.
referências
bibliográficas
KUNDERA,
Milan. A Insustentável Leveza do Ser. São
Paulo: Companhia das Letras. 1999
LANE,
Homer. Conversa com pais e mestres.
São Paulo: Editora Theor S/A. 1972
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