sexta-feira, 11 de dezembro de 2015

Um PIÁ só para elas:
um ensaio para crianças nômades


por Nádia Recioli


prólogo

Em uma das reuniões gerais do PIÁ uma vez me entregaram um giz na mão e disseram: escreva qual é sua luta. Assim como nesse ensaio, eu não sabia exatamente por onde começar. Então escrevi, bem pequenininho, em uma pilastra: “o lugar de cada um”. Sim, essa é minha luta. Para que cada pessoa tenha o seu lugar no mundo e seja bem vindo a esse lugar que é todo seu. Não me refiro a cantos, margens ou sarjetas, ao “lado de fora” da vida. Me refiro a um bom lugar, abrigo, aconchego que cada ser merece ter, pelo simples fato de ter nascido. Se nasceu, merce existir. Se existe, merece viver com dignidade.


as crianças nômades de areia

Assim que cheguei ao CCJ no início de 2015 já ouvi falar sobre as “Crianças Nômades”, ou “Crianças de Areia”1. Um grupo grande de meninos e meninas em situação de extrema vulnerabilidade social, assíduas frequentadoras do equipamento. Na prática, eu demoraria ainda bastante tempo para conhecê-las, mas sua fama as antecedeu muito.

O que foi dito é que no CCJ elas encontram o abrigo que normalmente lhes é negado em quase todos os espaços da cidade. E que, “cada hora do dia que passam ali é um tempo a menos que estão na rua, pedindo nos faróis, se expondo a toda sorte de riscos”. Ainda assim, elas foram referidas como um problema difícil de lidar. Uma longa história, de 2 anos de relação entre as equipes do CCJ e essas crianças nos foi contada, com todas as superações e avanços no estabelecimento de algum vínculo, assim como com todas as infindáveis dificuldades encontradas.

Também ouvi os relatos da equipe anterior do PIÁ, de como eram as aparições e interferências dessas crianças nos encontros em 2014, de todas as tentativas de aproximação e de sua inclusão nas atividades com os piás, dos resultados alcançados e barreiras encontradas. Destas últimas, a principal era o fato de elas nunca terem conseguido se inscrever oficialmente no Programa por não haver um adulto que se responsabilizasse por elas e assinasse sua inscrição. Dessa forma, se algo lhes acontecesse (e o CCJ é um equipamento bastante vulnerável, com situações de roubos e assédios vivenciados por Artistas Educadores e crianças; além de o prédio não ter sido arquitetonicamente planejado para essa faixa etária, oferecendo muitos riscos em potencial), quem seria responsabilizado?

Nesse momento eu começava a cair em uma armadilha, sem perceber, da qual só muito mais tarde consegui sair. A armadilha de acreditar que “tudo já havia sido tentado e não havia muito mais o que fazer, a não ser dar continuidade às abordagens que trouxeram os “melhores resultados” com essas crianças.

As narrativas sobre elas eram repletas de situações de violência e de transgressão. Elas inicialmente mentiam seu nome ou idade, chegaram a agredir, verbal e fisicamente, alguns gestores, funcionários e Jovens Monitores, por vezes fizeram xixi ou fezes nas dependências do equipamento, depredaram tudo o que podiam, invadiram a brinquedoteca pulando uma “parede” de vidro que poderia ter se quebrado, caminharam pelo parapeito e ameaçaram se jogar, engoliram tachinhas na frente da equipe.

Eles não tinham noção de ordem social. Das mais vagas era sua concepção dos valores materiais. Nascidos e criados nas favelas da cidade, cercados por todos os lados pela autoridade dos pais, polícia e funcionários da escola, vítimas de um ambiente especialmente estreito e restrito, sua capacidade de auto-restrição achava-se quase totalmente por desenvolver, exceto quando em íntima proximidade de alguma autoridade limitante. Sua ideia de relações sociais limitava-se à primitiva forma de cooperação para autoproteção contra a autoridade. Individualmente, eram passivos, dominados e apáticos. Combinados, ou em grupo, eram agressivos, destemidos e antissociais.
(…) eram espontâneos, originais, sagazes, porém geralmente em sentido destrutivo. O líder reconhecido era o rapaz que melhor usava a linguagem inconvencional, que se mostrava mais ousado nas atividades destrutivas e assumia a atitude mais desafiante para com os adultos. (LANE, 183)

Essa fala foi proferida em 1918, pelo educador Homer Lane, no Reino Unido2. Mas poderia muito bem referir-se às Crianças Nômades do CCJ, na São Paulo de 2015. Estranha semelhança.

E o que mais espanta não é que o comportamento de crianças em situação de marginalidade se assemelhe em contextos históricos distintos mas, principalmente, o fato de que a atitude dos adultos em relação a elas seja absolutamente idêntica, mesmo com um século e um oceano de distância entre os dois casos. É estranho que os adultos, ao longo de cem anos de história, tenham aprendido nada ou tão pouco sobre as crianças. E isso apenas evidencia o óbvio de que ao longo da história do Ocidente as crianças não têm sido ouvidas. Ainda mais quando as crianças em questão vêm da periferia. Falar de uma “criança periférica” chega a ser um pleonasmo. Ou melhor, uma hipérbole. Claro, não me refiro a quaisquer crianças da periferia. Me refiro àquelas em nítida situação de vulnerabilidade: que pedem nos faróis, que têm feridas expostas, piolhos, mau cheiro e fome. Muita fome e fome de tudo, não apenas de comida. E que, por sentirem fome, sentem raiva também.

Roncou, roncou
Roncou de raiva a cuíca
Roncou de fome
Alguém mandou
Mandou parar a cuíca, é coisa dos home

A raiva dá pra parar, pra interromper
A fome não dá pra interromper
A raiva e a fome é coisas dos home

A fome tem que ter raiva pra interromper
A raiva é a fome de interromper
A fome e a raiva é coisas dos home3

Sua situação de grande vulnerabilidade e privação as aproxima, é claro, da delinquência (e esta nada mais é do que função residual das relações de classe operantes nesta sociedade). Elas estão à margem da margem. O mundo lhes é hostil a todo tempo e, por questão de lógica, elas são hostis com o mundo. Unem-se umas às outras e, no grupo, encontram a proteção e a força de que precisam. A postura do grupo em relação ao patrimônio e à autoridade é uma atitude de afronta. Essa atitude é respondida sistematicamente da mesma forma: ou elas são expulsas, devolvidas ao “seu lugar”, que é sempre o lado de fora; ou são repreendidas. Ou seja, sua ação violenta é respondida sempre com mais violência. O que (re)alimenta sua raiva e desejo de afronta. E a pergunta mais cabível, cuja resposta deveria ser óbvia, é se de fato é nas crianças que começa o ciclo da violência ou se a violência primordial é exercida sobre elas.

Antes mesmos de serem questionados a esse respeito os adultos logo repetem a mesma ladainha de justificativas: “mas essa é a única linguagem que elas entendem, a da autoridade”. Como se não houvesse outra maneira. Mais uma vez a culpa pela atitude opressora é do oprimido. No caso, uma criança. Uma criança a quem se quer responsabilizar e punir pelos seus atos, mas de quem não se quer ouvir as angústias.

Quando essas crianças chegam e dizem querer participar de uma atividade do PIÁ, mas no minuto seguinte elas estão fazendo de tudo para atrapalhar, não é que “essas crianças não sabem o que querem”, como foi dito. Elas querem algo. E não é atrapalhar os outros o que elas querem. Elas querem lançar “um grito desumano, que é uma maneira de ser escutado”. Elas gritam sempre, inclusive para conversar entre si. Não faz sentido pedir que falem baixo. Elas querem destruir qualquer coisa. Bater com força com a colher de pau na panela, gritar, xingar. O impulso violento é generalizado. Essa violência e essa raiva irão atingir qualquer coisa que esteja no caminho. Se provocam atitudes autoritárias é justamente para poder transgredi-las e, na transgressão, sentir o gosto de sua liberdade marginal. Isso não é em nada arbitrário. É um ato político.

Não faz sentido tomar pessoalmente e ofender-se. “Ah, agora ela mexeu comigo, ela me xingou, isso eu não vou tolerar!” Porque todo o resto estava justamente sendo “tolerado”. E não tomando como uma causa que é de todos nós.

Ninguém escreveu ou falou seriamente ainda sobre essas crianças. Em uma reunião extraordinária na Divisão de Formação da Secretaria Municipal de Cultura nos foi dito que não se tinha dimensão do caso. E ficou claro que não existe um procedimento burocrático que possa garantir a participação dessas criaças e outras como elas no Programa, o que é inclusive, um direito fundamental que possuem. Elas só não são completamente invisíveis porque se fazem vistas, porque quebram e transgridem e gritam. Não adianta lhes pedir silêncio e bom comportamento.

Elas querem um PIÁ só para elas.


a cena que se repete
ou
a raiva é a fome de interromper

É dia de encontro do PIÁ. As Crianças Nômades estão no espaço e são convidadas a participar. Elas aceitam, às vezes com alguma hesitação. Elas têm medo de se expor em determinada atividade, têm medo de “não saber” fazer o que é proposto. Então usam uma estratégia, que é sempre a mesma: criam um mal estar generalizado. Forçam um limite, procuram o ponto fraco e fazem provocações para despertar a repressão que irão desacatar. Querem quebrar algo ou “zoar alguém”.

Desta vez, diferente de outras, elas têm ainda um trunfo: trouxeram a própria comida, não estão com tanta fome assim e não precisam esperar pelo momento do lanche, não precisam barganhar colaboração por alimento.

Inicialmente estavam “esbanjando” e jogando as cascas dos amendoins no chão. Depois, durante a atividade, começaram a discutir entre si e a bater uma na outra. No PIÁ nós não queremos violência. A solução encontrada é apartá-las da atividade. Com uma bronca, é claro. Um ato violento. Porque não queremos violência. Elas, estando de volta ao seu lugar de costume, o lado de fora, passam a atirar amendoins nas crianças que estão do lado de dentro da atividade. Então são convidadas a se retirar do encontro. Com nova bronca. É sempre igual e acontece rápido demais. Perde-se a paciência rápido demais e a chave da repressão é acessada rápido demais. Se isso se estende ou intensifica, especialmente se há a depredação de algum patrimônio envolvida, chega alguém do CCJ e as suspende por alguns dias.

Na cena em questão a resposta delas foi: então vamos todas embora, já que não somos bem vindas. Nesse dia eram cinco meninas, entre 8 e 13 anos, em média. As duas mais novas não foram expulsas e poderiam permanecer na atividade. Uma delas decidiu ir com seu grupo enquanto dizia consigo “são elas que me trazem aqui”. Seu senso de lealdade falou mais alto. A outra quis ficar. As mais velhas exerciam seu poder sobre ela: “você é pequena, não sabe ir embora sozinha, tem que ir com a gente”. A menina ficou dividida. Uma disputa se instaurou entre quem era do PIÁ e as meninas nômades, e o objeto disputado era uma pessoa. Criamos uma cisão no grupo, e agimos como se defendêssemos aquela que queria ficar (ela queria mesmo ficar e também se posicionou contra as outras) sem considerar com mais cuidado a função dessa simbiose e interdependência que existe intragrupo, assim como o tipo de ética e lealdade que opera ali e que rapidamente julgamos como um tipo de “comportamento de bando”.

É claro que abordagens como essa também trazem “avanços” ou bons resultados, dependendo da leitura que se faça. De fato, pelo menos uma delas ficou e participou do encontro. Assim como em outras situações, quando alguns meninos ou meninas nômades foram expulsos da atividade, pelo menos alguns voltavam depois, mais “humildes” (ou deveria dizer humilhados?) querendo participar e se dispondo a colaborar.

Quase todo o tempo eu me recusei a gritar ou expulsar ou o que me parecesse uma atitude repressora a priori. Queria ter algum tempo de sentir que tipo de abordagem poderia ser melhor do que isso. Queria dialogar, por mais difícil que pudesse ser. Queria atravessar o caos para ver o que dele nascia. Tentávamos estabelecer conversas com os piás para que considerássemos essa uma questão de todos nós e não uma situação isolada em que meramente fomos “atrapalhados” por crianças “mal educadas”. Era assim que as turmas do PIÁ se referiam a elas em um primeiro momento. Às vezes com palavras mais pesadas, como “idiotas” ou “trouxas”. Uma menina muito honestamente admitiu que se sentia insegura, achando que poderia ser roubada. E assim vemos que as questões de classe se estabelecem muito cedo. As relações de poder também. Uma garota do PIÁ chegou uma vez a implorar que eu gritasse com as meninas nômades para reestabelecer a ordem.

Acho que você não tem autoridade. É apenas com a linguagem da força que essas crianças entendem.” Foi o que eu ouvi de alguém da equipe. Respondi que eu não sabia se estava certa, mas que precisava de tempo e espaço para experimentar uma abordagem mais dialógica com elas. Precisava ao menos tentar, antes de admitir que não havia outro jeito. Tive medo sincero de que minhas convicções estivessem erradas, que fossem uma espécie de romantismo ou utopia, mas apenas me arriscando poderia saber essa resposta. E assim comecei a escapar da armadilha.


nota sobre uma Infância kitschizada

Quando lemos os Capitães da Areia de Jorge Amado, nós amamos aquelas crianças, que nos parecem tão belas, heroicas e livres. Sua atitude aventureira e desafiadora é pura poesia. Porém, quando temos a oportunidade de encontrá-las na vida real, tudo o que conseguimos sentir é pena, asco e uma certa raiva. Achamos que o ato heroico é o nosso, pela coragem de eventualmente abraçar essas crianças. Por sermos os únicos a não expulsá-las. Por tolerá-las, apesar de seu odor, mal comportamento e falta de educação.

As crianças de rua fictícias são belas e romantizadas justamente porque não possuem corporeidade (e assim não têm cheiro, nem fome, nem piolho, nem fezes), são ideia pura. Esse ar bucólico associado a uma Infância generalizada e absolutadesconsiderando as múltiplas experiências de diferentes infânciasé o que podemos chamar de kitsch, o ideal estético de todas as ideologias políticas”. Em A Insustentável Levez do Ser, Milan Kundera descreve uma cena em que um senador americano observa quatro crianças correrem sobre a relva e diz à Sabina – “uma mulher vinda de um país comunista onde, estava ele convencido, a relva não cresce e as crianças não correm” – que para ele aquela cena é a felicidade. Ao que o narrador questiona:

Como o senador podia saber que as crianças significavam felicidade?Enxergaria dentro de suas almas? E se três dessas crianças, assim que saíssem de seu campo visual, se atirassem sobre a quarta e começassem a espancá-la?
O senador tinha apenas um argumento a favor de sua afirmação: a sensibilidade dele. Quando o coração fala, não é conveniente que a razão faça objeções. No reino do kitsch se pratica a ditadura do coração. É preciso evidentemente que os sentimentos suscitados pelo kitsch possam ser compartilhados pelo maior número possível de pessoas. Por isso, o kitsch não se interessa pelo insólito; ele apela para as imagens-chaves profundamente ancoradas na memória dos homens: a filha ingrata, o pai abandonado, os garotos correndo num gramado, a pátria traída, a lembrança do primeiro amor.
O kitsch faz nascer, uma após a outra, duas lágrimas de emoção. A primeira lágrima diz: como é bonito crianças correndo num gramado!
A segunda lágrima diz: como é bonito se emocionar com toda a humanidade ao ver crianças correndo num gramado! (KUNDERA, 245)


Então, no universo kitschizado da Infância, não há espaço para crianças que quebrem com esse ideal ao expor seu e excesso de vida, de realidade e de humanidade, o que implica na existência de corpo, impulsos e conflitos. Nós, os adultos, somos responsáveis pelas crianças. Exigir de uma criança tão vulnerável, que demonstre um mínimo de gratidão pelo amparo ou afeto que lhe dispomos é ser cruel e infantil no mal sentido. É partir do pressuposto de se estar oferecendo até mais do que ela merece.

Uma vez havia no CCJ uma linda exposição que procurava um resgate das brincadeiras e brinquedos tradicionais, enfatizando a ideia de que todas as crianças devem ter seu direito à infância garantido. Naturalmente, as Crianças Nômades adoraram a exposição, brincaram muito e, como crianças fazem, quebraram alguns dos objetos que estavam ali disponíveis para o uso. As crianças do PIÁ também fizeram isso. Mas são pesos e medidas diferentes. Então ouvi a seguinte frase: uma coisa é a criança vir para brincar, numa boa, outra coisa é ela querer destruir as coisas. Aí não. Aí eu acho que tem que expulsar mesmo!”

Isso revela a característica de simulacro de quase todos os discursos, objetos e espaços direcionados especificamente para crianças. Por exemplo: em um primeiro momento foram disponibilizados objetos e brinquedos aos quais normalmente a criança não tem acesso para brincar. Se em casa as mães não deixam mexer nas panelas, ali havia panelas e colheres de pau disponíveis para serem batucadas. Havia outros brinquedos simples, feitos de lata e madeira, para deixar claro que não precisamos de brinquedos caros, se temos a imaginação. Agora, se a criança começar a sujar tudo e quebrar as coisas, então ela está passando dos limites. E o adulto em questão, assim como o pai que ela provavelmente não tem, ou qualquer outro adulto repressor, vai brigar com ela, expulsar, e recolher os brinquedos. Porque a liberdade da criança vai até onde o adulto determina. E o adulto determina que a criança não deve intervir nem estragar nada que seja “de verdade”. Afinal, existe uma vastidão de representações da realidade feitas de plástico (ou madeira, ou lata), um mundo de objetos de kitschizados oferecidos à criança para que ela possa brincar” de viver e representar a brincadeira sem atrapalhar a vida real.

O kitsch é tido como o lugar próprio da Infância.


O lugar de cada um

Afinal, o PIÁ e um programa aberto a todas as crianças, certo?

Se a resposta for não, então quais são os critérios?
Se a resposta for sim, então será que o programa está de fato preparado para receber todas as crianças?
Quais são os caminho para o programa verdadeiramente adaptar-se às demandas e público específicos de cada equipamento?

Tais questionamentos foram disparadores de uma proposta de ação compartilhada realizada por mim e pela companheira de equipe Patríca Silva. Não podíamos ficar detidas e inertes simplesmente porque não haviam fichas de inscrição para essa Crianças de Areia. E tratá-las como visitantes que chegavam e partiam quando quisessem dos encontros era interessante porém claramente insuficiente. Elas não entendiam os ritos estabelecidos com as turmas justamente por não participarem da dinâmica completa do encontro e tinham dificuldade de colaborar justamente por isso. Em diversas situações se sentiam inibidas em participar das atividades por não conseguirem se sentir à vontade ou confiar na turma. Elas precisavam de um PIÁ só para elas e decidimos atender esse pedido.

Marcamos dia e horário em que estaríamos à espera delas e paramos de aceitá-las nas outras turmas, afinal elas tinham seu horário específico. Foram pouquíssimos encontros (pois só conseguimos sair da armadilha depois de um tempo considerável no Programa, quando já compreendíamos melhor sua dinâmica e estrutura), mas com resultados bastante significativos. Inicialmente achávamos que elas não viriam e planejamos estratégias para despertar seu interesse. Não foi necessário, elas compareceram e sabiam bem que tipo de atividade queriam fazer.

Logo no primeiro dia houve o furto do meu celular por um grupo de meninos que entrou na brinquedoteca aparentemente querendo brincar ou participar do encontro. As meninas (eram três nesse dia) ficaram visivelmente abaladas com isso, o que culminou em uma guerra de tinta entre elas. Ficaram sujas dos pés à cabeça, assim como a sala virou um caos. Foi esta a primeira oportunidade de uma atitude simples e significativa: sujou? Então limpe, eu ajudo. E ficamos horas a limpar a brinquedoteca. Objetos e espaços não são mais importante do que pessoas. Se queremos construir com essas crianças o sentido de cuidar do espaço público porque ele pertence a todos nós, precisamos primeiro passar pelo direito ao uso (o que inclui a possibilidade de sujar e quebrar) e pelo exercício do cuidado e do zelo (nesse caso, o ato de limpar). A consequência do ato é inerente ao mesmo e não algo arbitrário e desconexo como um castigo ou uma suspensão. Foi divertido sujar e foi chato limpar a brinquedoteca. Mas é melhor limpar e sentir-se respeitada enquanto ser humano do que ser ofendida e tratada como uma delinquente. Uma cena análoga teve de se repetir apenas uma vez para que as meninas passassem a pensar melhor se queriam mesmo usar as tintas e de que maneira fariam isso.

Esses poucos encontros foram pautados pela escuta e pela construção gradativa (veja bem, não exigida a priori) de um respeito mútuo. Elas continuaram a nos testar e procuramos oferecer atenção e limites na medida certa e de acordo com a demanda. Frequentemente a medida do limite é a medida daquilo que se sente, não é preciso simular nada. Foi visível a diferença de postura das Crianças Nômades durante esse processo. E impressionante o afeto real que desenvolvemos em pouco tempo. Minhas convicções pedagógicas sobre respeito e diálogo apenas se confirmaram. Meu interesse pelo universo do outro, daquele que não sou eu, também. Minha única dor foi não ter iniciado antes, muito antes esse processo.

A obediência veio a ser encarada como virtude. Mas a obediência é a mesma virtude que a mediocridade – ambas deixarão as pessoas fora das cadeias, e esse é o padrão de respeitabilidade numa sociedade medíocre. (LANE, 171)


notas

1 “Nômades” devido ao fato de não estarem oficialmente inscritas no programa e sua interação nos encontros ser sempre fugaz e esporádica; “de Areia”, em adequada alusão aos Capitães da Areia, de Jorge Amado.
2 Refere-se ao primeiro grupo de jovens atendidos pela Little Commonwealth. Uma espécie de reformatório para onde eram enviados os jovens “delinquentes” condenados pela justiça. Ali não havia muros e os jovens eram membros de uma comunidade rural que deviam ajudar a gerir. Os grifos são meus.
3“O Ronco da Cuíca”, canção de Aldir Blanc e João Bosco


referências bibliográficas

KUNDERA, Milan. A Insustentável Leveza do Ser. São Paulo: Companhia das Letras. 1999
LANE, Homer. Conversa com pais e mestres. São Paulo: Editora Theor S/A. 1972

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