quinta-feira, 4 de dezembro de 2014

PIÁ na Escola? Ensaio de pesquisa-ação

PIÁ na Escola?
O fim do mundo para a criação de um mundo novo


   Desde 2008, o PIÁ - Programa de Iniciação Artística - da Secretaria Municipal de Cultural de São Paulo vem atuando em equipamentos como Centros Educacionais Unificados (CEUs) e Bibliotecas espalhadas pela cidade. São cerca de 70 artistas/coordenadores educadores contratados para compor a equipe do programa. Em cada equipamento ficam quatro artistas-educadores que tem como proposta promover, provocar, desenvolver processos de iniciação artística para turmas de diferentes faixas etárias. Nesses seis anos, o programa vem mudando constantemente, ampliando, repensando ações, espaços e estratégias. 

   Neste ano de 2014, passei no processo de seleção para ingressar no programa e fui chamada para escolher o equipamento que iria desenvolver as atividades. Optei pela Biblioteca Padre José de Anchieta, situada no bairro de Perus, fato que me deixou contente, pois é o bairro que moro atualmente. Porém, algumas horas depois que sai da Secretaria Municipal de Cultura, recebi um telefonema da Divisão de Formação, falando que eles queriam fazer um teste nesse ano de colocar o PIÁ dentro da escola, pois haviam recebido uma proposta de uma escola diferenciada, situada no Jaraguá, bairro vizinho a Perus e que, portanto, nossa equipe estaria responsável por dois equipamentos. 

   Dois equipamentos? Sim. “A escola tem uma proposta diferenciada, a diretora é super bacana, pensa artisticamente e a escola fica a duas estações antes de Perus. Não será difícil para vocês!”. Argumento que recebemos para aceitar tal fato. Mas será que tínhamos escolha mesmo? “Topamos”.

   O inicio do ano do PIÁ se caracteriza com ações de divulgação pelo bairro. Cada equipe fica responsável por “atrair” as crianças ao programa e para isso inventam diversas maneiras: saem pelas ruas, passam nas escolas, ligam para os ex-alunos, enfim, fica a critério da proporia equipe. Como fazer isso nos dois bairros e equipamentos? Começou nosso desafio.

   Cada equipamento tem cerca de sete turmas. Na biblioteca ficamos com 5 turmas e somente 2 na Emef Brigadeiro Henrique Raymundo Dyott Fontenelle, escola do Jaraguá. Como a maioria das turmas era a de Perus, nos focamos mais em ações de divulgação nesse bairro. Na escola fizemos uma reunião com a diretora, explicando o programa e ela se responsabilizou em divulgar e formar as turmas por lá. Explicamos que um caráter bem bacana do programa é a mistura das idades das crianças em cada turma e o fato de que vão até o equipamento porque tem vontade de participar das atividades sem serem obrigados a tal. Então pedimos a ela que abrisse e divulgasse pelo bairro para que as turmas não se fechassem apenas com os alunos da escola. Ela concordou e seguimos um pouco mais tranquilos com isso.

   Quando os encontros começaram percebemos que as duas turmas que se formaram eram de crianças da mesma idade, uma de 6 e a outra de 9 anos, crianças do 1º e 4º ano da escola (e não mistas como o combinado). Aquelas que participariam do PIÁ na parte da manhã, chegariam antes na escola e já ficariam por lá para as aulas na parte da tarde. E aquelas que fariam o PIÁ a tarde, estudavam de manhã e já ficavam para o encontro. Todos se conheciam, eram colegas ou da mesma turma ou do mesmo ano. 

   No espaço entre as aulas da escola e as atividades do PIÁ a diretora teve a ideia de deixar os alunos com voluntários que dão aulas de circo na escola para desenvolverem atividades dessa linguagem e não ficarem “sem fazer nada”. 

Escola: derivada do grego SKHOLÉ significava “lazer, descanso, folga, ócio”. Momentos que as pessoas conversavam e discutiam sobre os mais diversos assuntos. Mais tarde fica conhecida como “ instituição concebida para o ensino de alunos sob a direção de professores” (Wikipédia in Escola). 

   Ou seja, lugar em que as pessoas vão para serem ensinadas (então pressupõe-se de que não sabem e que o outro vai passar seus saberes) e não tem mais possibilidade de tempo ócio, porque tem objetivos curriculares a serem alcançados e que o brincar só é “permitido” no intervalo, por 15 minutos (entre aspas porque até mesmo nesse momento as crianças são controladas por pessoas que ditam aonde podem ou não brincar, e como podem fazer isso).

Nas palavras de Maria Amélia Pereira:

Parece que esquecemos que há seres humanos envolvidos nesse bloco chamado infância, e que eles são portadores de uma vida a ser vivida. A educação permanece com o conceito de “preparar para a vida”, esquecendo de que as crianças já estão na vida. Elas trazem um equipamento pronto para sobreviver ao ambiente onde nascem. A verdade é que o aparelho educacional está surdo. É um sistema fechado, pseudo-intelectualizado, no qual a sensibilidade é a palavra excluída do vocabulário tecnocrata que permeia o discurso pedagógico. As escolas precisam urgentemente ouvir a vida que pulsa em cada criança. (PEREIRA, Maria Amélia. Por uma Educação da Sensibilidade. São Paulo: apostila Instituto Brincante: Formação de Educadores Brincantes, 2006).

“O desejo principal do PIÁ é proporcionar espaços-laboratórios para a criação através da brincadeira e ludicidade, abrindo possibilidades de expressão artística, oferecendo e inventando recursos. (...) A construção da poética pedagógica no PIÁ nasce das experiências artísticas mediadas pela brincadeira e pelo jogo” (Revista Piapuru, pág. 16 e 18, ano 1- número 1, São Paulo, Novembro 2013)

   Ao contrário de como é visto nas escolas, para nós do PIÁ a brincadeira é algo sério, ela é nosso caminho, pois acreditamos que o brincar é um ato de conhecimento em si. É preciso um afastamento da esfera exclusivamente utilitária e entender que o brincar contém diferentes graus de subjetividade. O brincar pode ser compreendido não como meio, ou recurso pedagógico, mas como vontade e liberdade, como atitude do corpo e da mente. Nas palavras de Schiller (1794), “o homem só é inteiro quando brinca e é somente quando brinca que ele existe na completa acepção da palavra homem”.

“No PIÁ acreditamos no potencial da arte de educar por ela mesma, no sentido da educação refletir e resignificar o reconhecimento de si e da vida no mundo. Nele cria-se um espaço favorável passa o desenvolvimento e expressão do imaginário da criança. Cria-se também um tempo próprio que se dilata na medida de cada um, de cada processo e experiência artística e que assim, pode não apenas ser ensinado, mas principalmente experiênciado, percebido e reverberado de forma ampla e significativa”. (Revista Piapuru, pág.16, ano 1- número 1, São Paulo, Novembro 2013)

   A criação desse espaço favorável foi um dos maiores desafios nossos com o PIÁ dentro da escola. A sala que foi destinada para os encontros era uma sala maravilhosa, ampla, com chão de madeira, novo, sem cadeiras, lindo. Porém a grande questão é estar dentro da instituição escolar.

   No começo foi difícil para as crianças entenderem que não éramos professores da escola e que não seguíamos as regras da escola como os sinais que tocavam e a relação de professor e aluno que tinham. Era muito difícil instaurar um espaço de escuta, pois eles chegavam muito agitados, após as aulas, e muito agressivos uns com os outros, pois como já se conheciam e conviviam no dia a dia, tinham questões interpessoais bastante presentes.

   Percebendo isso, criamos o momento do “Fim do Mundo”: chegávamos e, com os colchoes da sala, fazíamos uma guerra. Entre pancadas, batidas, saltos e gritos, deixávamos tudo que não queríamos para traz para depois criar um mundo novo. Este nascia primeiro do sentar em roda, nos olhar e escutar.

   Essa foi uma prática repetida em quase todos os encontros com essa turma, que com o tempo foram entendendo esse encontro chamado PIÁ. A cada dia, nós, artistas educadores saíamos de lá nos questionando como faríamos para tornar aquilo um espaço de escuta e troca realmente, porque sentíamos que as crianças tinham a necessidade de uma relação de comandos, falar alto, expulsões da sala de aula... Fatos que não acreditamos e que acontecia com as turmas da biblioteca. Será que é por estarmos dentro da escola?

   Na biblioteca um dos momentos mais preciosos que tínhamos era o lanche. Um momento de sentar juntos, compartilhar o que cada um trouxe e conversar de diferentes coisas. Na Fontenelle porém não tínhamos esse momento, porque o lanche era oferecido pela escola em uma determinada hora especifica (fato que não gostávamos, pois o tempo era ditado pela escola e não pelo encontro e se estivéssemos no meio de uma atividade, por exemplo, e desse a hora do lanche, tínhamos que parar para ir comer porque não serviriam depois). Tentamos mudar isso propondo para que trouxéssemos algo para compartilharmos no lanche para assim não dependermos da escola e horário, mas não foi aderido porque eles gostavam do lanche da escola e queriam sair naquele determinado horário.

“O sinal tocou professora! Hora do lanche!”

   Nossa grande surpresa foi no encontro com os pais que organizamos. Combinamos com a diretora a data cerca de um mês antes e quando chegou o dia, para nossa surpresa, a escola tinha marcado uma reunião de pais e professores no mesmo horário. Isso até que foi bom, pois muitos pais já estavam pela escola e assim participaram das duas atividades. Mas a nossa grande surpresa foi nas falas deles. 

  Ouvimos de muitos pais que depois que seus filhos entraram no PIÁ eles estão mais criativos, querendo brincar mais de coisas sem ser vídeo-game ou televisão, que chegam em casa contando novas historias e compartilhando algumas atividades que fizemos. Todos falaram que os filhos pediam para estar lá e não gostavam de faltar, pois era o dia mais esperado. 

“Nossa!”. Nos espantamos porque para nós a luta era grande e muitas vezes saiamos insatisfeitos com o espaço criado e não sentíamos tudo isso com as crianças.

   O ano se passou muito rápido principalmente porque no primeiro semestre tivemos poucos encontros devido à greve dos professores que paralisou todas as atividades da escola. Como era difícil, tanto para os alunos, quanto para os pais e até os próprios professores da escola entenderem que não tínhamos vinculo com a instituição, sentimos de não seguir com as atividades durante o período de greve porque nos olhavam como “fura-greves”.
 
   Participamos de uma assembleia da greve com os professores, onde nos apresentamos e explicamos o programa. Fizemos também algumas reuniões com a diretora da escola e somente um encontro com os pais. Não conseguimos nos envolver muito com a escola, promover ações culturais, passeios e tão pouco com a comunidade ao redor devido ao fato de estarmos em dois equipamentos.  Fato que nos deixou bastante divididos e não inteiros em ambos.

   Sinto que para inserir o PIÁ nas escolas temos que primeiro ter muito diálogo, entender de fato o porquê que a escola quer o programa, como ela vê e pensa a educação... Pois esse foi um primeiro teste, como falaram, realizado em uma escola “diferenciada”, mas que na prática não vimos muita diferenciação assim, principalmente no âmbito humano, pessoal, de tratamento.

   Fizemos também um reunião com o Mica, da Secretaria de Cultura, para dialogar como estava sendo esse processo de estar na instituição escolar e tentar entender o porque inserir o PIÁ na escola. 

Por que inserir o PIÁ nas escolas?
Há diálogos possíveis e compatíveis entre essas instituições e as propostas e ideais do programa?
Ou queremos somente números? Aumentar o campo de atuação do programa?
Como a escola vê e pensa a arte? E o brincar?
PIÁ na escola?

   Acho um grande desafio instaurar um espaço para a sensibilidade, escuta, troca, criatividade, falar de uma pedagogia que é também poesia em um lugar onde a criança sai da sala e é proibida de correr, conversar, estar livremente como se é ser criança e onde todo o equipamento/instituição esta com outros pensamentos. Mas não é impossível, basta saber o que queremos.

   Entre fins e recomeços de mundos atravessamos essa travessia um tanto quanto conturbada. É isso que queremos? O que nós, artistas-educadores agentes ativos do programa pensamos disso?


Por Kallu Whitaker
Biblioteca Padre José de Anchieta e Emef Fontenelle

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