Carmen
Pinheiro da Silva/Novembro de 2014
“se os tubarões fossem homens, os peixinhos saberiam que seu futuro só
estaria assegurado se estudassem docilmente. Acima de tudo os peixinhos
deveriam evitar toda inclinação baixa, materialista, egoísta e marxista, e
avisar imediatamente os tubarões, se um dentre eles mostrasse tais tendências”.
- (Histórias do Sr. Keuner – Bertolt Brecht: “Se os tubarões fossem homens”)
“(...) É, portanto, das relações sociais que precisamos partir para
compreender o que, como e por que os homens agem e pensam de maneiras
determinadas, sendo capazes de atribuir sentido a tais relações, de
conservá-las ou de transformá-las. Porém, novamente, não se trata de tomar
essas relações como um dado ou como um fato observável, pois neste caso
estaríamos em plena ideologia. Trata-se, pelo contrário, de compreender a
própria origem das relações sociais, de suas diferenças temporais, em uma
palavra, de encará-las como processos históricos. Mas, ainda uma vez, não se
trata de tomar a história como sucessão de acontecimentos factuais, nem como
evolução temporal das coisas e dos homens, nem como um progresso de suas ideias
e realizações, nem como formas sucessivas e cada vez melhores das relações
sociais. A história não é sucessão de fatos no tempo, não é progresso das
ideias, mas o modo como homens determinados em condições determinadas criam os
meios e as formas de sua existência social, reproduzem ou transformam essa
existência social que é econômica, política e cultural”. (Marilena Chauí – O
que é ideologia)
O Mar Morto contém a água mais salgada do mundo.
Essa grande quantidade de sal aumenta sua flutuabilidade, e os banhistas boiam com facilidade (descrição sobre o mar morto)
Desde o ano de 2012, em que comecei a
trabalhar no PIÁ – Programa de Iniciação Artística, mais devotamente com
crianças com faixas etárias entre 05 e 10 anos de idade e após ouvir a seguinte
provocação de um professor: “As crianças são as principais vítimas da
ideologia”, venho me perguntando: “Como fazer a ponte entre minha pesquisa
com adultos que parte antes de tudo de um olhar crítico sobre as relações
sociais, e o trabalho que venho desenvolvendo com crianças?” Como percorrer o
caminho inverso de uma pedagogia que mergulha cada vez mais a criança para o
mar morto da ideologia?
Ainda sem conseguir obter respostas, e
cometendo muitos tropeços em função do grande binômio, arte e brincadeira, que
no PIÁ é uma grande questão para todos, vou tropeçando no infinito, e tentando
criar uma tese (literalmente), buscando na literatura, na tradição, na
filosofia, na vida, alguns exemplos do que poderia vir a ser uma construção artística
com crianças, baseada no que estou chamando de uma pedagogiacríticadialéticautópica.
Fazendo algumas tímidas atualizações para
nossa realidade, uma das minhas âncoras têm sido o de atracar-se com
instabilidade em alguns pensamentos benjaminianos durante os anos de 1930 sobre
a modernidade, a criança e a educação, em defesa de uma pedagogia comunista,
onde o teatro e a arte deveriam ser as
principais ferramentas, em detrimento de uma pedagogia que ele considerou
cindida, abstrata sem a conexão com a experiência da realidade. (Neste texto
aqui não será possível aprofundar os pensamentos de Walter Benjamin, focarei,
mais para frente, em algumas ideias da filósofa Hannah Arendt, que acredito que
possam ser úteis para nós).
“Psicologia e ética são os polos em torno dos
quais se agrupam a pedagogia burguesa. Não se deve supor que ela esteja
estagnada. Ainda atuam nela forças ativas e, por vezes, também significativas.
Apenas, nada podem fazer contra o fato de que a maneira de pensar da burguesia,
aqui como em todos os âmbitos, está cindida de uma forma não dialética e
rompida interiormente. Por um lado, a pergunta pela natureza do educando:
psicologia da infância, da adolescência; por outro lado, a meta da educação: o
homem integral, o cidadão. A pedagogia oficial é o processo de adaptação mútua
entre esses dois momentos – a predisposição ao natural abstrata e o ideal
quimérico – e os seus progressos obedecem à orientação de substituir cada vez
mais a violência pela astúcia dos escoteiros, hipostasia uma essência
igualmente absoluta do ser humano ou do cidadão, adornando-a como os atributos
da filosofia idealista”. (Walter Benjamin - Reflexão sobre a criança o
brinquedo e a educação).
Outra âncora está atracada a uma prática
paralela que venho desenvolvendo com crianças de 11 anos de idade em uma Escola Estadual
no Grajaú, periferia sul de São Paulo, onde meu grupo de teatro, a II Trupe de
Choque, vem desenvolvendo uma pesquisa de residência artística. Esta pesquisa
com as crianças de 11 anos, dentro da escola, está fazendo parte de um projeto
de mestrado intitulado: “Em busca de uma
pedagogiaartísticadialéticautópica com crianças, os pequenos grandes heróis da
contemporaneidade: os catadores de restos, apaches e trapeiros”. Gostaria
de dividir com vocês, algumas destas ideias, já que a questão fundante está
relacionada ao trabalho de arte com crianças, algo que pode interessar a todos.
No meu trabalho artístico, no meu coletivo
teatral, nas cenas, nos processos artísticos pedagógicos e peformances que
crio, produzo e vivencio, seja como atriz, ou como professora, sempre primo e
busco por uma arte que reflita sobre a realidade que vivemos, esta realidade que
como diz Zygmunt Bauman, está aí e que inventamos para nós, esta mesma
realidade de uma sociedade que vive sobre a égide e a ética do consumo, da
liquefação e que nos projeta a todo tempo, para manter seu poder, uma falsa
liberdade (BAUMAN, 2001). A arte nos possibilita: ou salientar certas
aberrações desta realidade, ou permitir que “brinquemos” de tentar fazer as
coisas de outra maneira, “a arte não é um prolongamento da vida, mas significa
uma compreensão qualitativamente diferente da realidade” (KOUDELA, 2011,
p.33). Fazedores de uma arte com este horizonte estão trilhando um
caminho dentre tantos outros e talvez estejam em busca de respostas que possam
simplesmente lhes ajudar a fazer sua passagem por este mundo. Trata-se, de onde
estamos olhando, de uma escolha que vai na contramão de “uma
felicidade construída sem trabalho, ofertada pelo mercado, pelo prazer imediato
e a qualquer preço”, uma escolha “de criar sempre,
responsavelmente, uma identidade e um caminho de
risco, junto a outros criadores”, diferente do apelo da “sociedade
de consumo onde a oferta do prazer aniquila constantemente a responsabilidade para
com o outro” (BAUMAN, 2004).
Uma arte que para existir, precisa ser
experiência, precisa ser transformadora. É desta arte que procura interpelar
criticamente o mundo que estou falando e da qual tentarei refletir durante o
decorrer deste discurso aqui. Para mim ela emerge a partir do que chamarei
então de uma pedagogia artísticacríticadialéticautópica, escrito
propositadamente sem separação, na tentativa de salientar que as coisas estão
juntas convivendo ao mesmo tempo somando-se e tentando gerar um resultado próximo
do ideal, que é a EXPERIÊNCIA, perseguida pela prática e expressão de seus
envolvidos.
Sempre que coordeno processos artísticos como
professora, com jovens e adultos, minha postura ético estética é influenciada
por esta crítica da sociedade de consumo da qual nos fala Bauman e tantos
outros autores, ou deste artista “inventor” que ele propõe para enfrentar esta
realidade, este artista que procura criar “sempre responsavelmente, sua
identidade e seu caminho de risco, junto a outros criadores”. Este é o farol, o
horizonte para onde gosto de olhar, mas isto não quer dizer que seja fácil e
que não haja neste processo muitas contradições, uma vez que o contato com o
outro é quem irá tecer a verdadeira trilha da experiência.
Trabalhar este sentido crítico com
adolescentes e adultos, é uma busca que faz parte dos processos que venho
desenvolvendo ao longo também destes 10 anos. Porém, quando o público de
artista é constituído por crianças, eu sempre me pergunto: como fazer? Como manter
esta mesma postura política estética que me acompanha e me constitui como
sujeito, como artista, como cidadã deste mundo?
Peguemos alguns pensadores que a partir
de suas visões de mundo, já desenvolveram de alguma maneira o tema:
Parece que com Marina Marcondes Machado em seu
texto “O imaginário infantil como trabalho em processo”, em se
tratando da criança é necessário um cuidado especial quando se pretende tal
postura, para não incorrer no que ela chama de “equívocos educativos”. Neste
texto, a autora refere-se à primeira infância, mas é possível que os mesmos
cuidados que ela propõe (talvez com um pouco mais de ousadia) devam prevalecer
até antes da adolescência. É preciso, acima de tudo, diz a autora,
baseada em seus estudos da obra de Mearleau-Ponty, privilegiar o imaginário
infantil que é extremamente rico, ao contrário de educá-la “com base na
realidade dos fatos” ou em “uma intelectualização da infância”. Para o filósofo Melarleau-Ponty de onde ela
busca suas referências, “a criança pequena não vive no mundo com dois polos do
adulto despertado, ela habita uma zona híbrida, que é a zona da ambiguidade do
onirismo”, imersa no que ele chama de “experiência pré-reflexiva”, “um campo
total de sensorialidades, afetos perceptos”, defende Marina Marcondes.
Na busca de acharmos um terreno fértil para
plantarmos mesmo que provisoriamente nossas raízes (não nos opomos em ter que
arrancá-las e comê-las ou replantá-las em outros terrenos se caso estivermos
enganados), gostaríamos de partir do pressuposto de que há na educação uma
discussão de que certos temas, conteúdos ou assuntos não devam ser tratados na
infância. Como estamos propondo justamente o contrário, uma pedagogia que
estamos chamando de artísticacríticadialéticautópica, que estimule a criança a refletir
sobre certos conteúdos que normalmente não são levadas a discutir, convocaremos
mais autores que de alguma maneira se aproximaram do tema seja criticando ou
defendendo um processo de aprendizagem onde a criança é um ser histórico social
que deve ou não a partir de um certa idade ser confrontada com as relações
sociais estabelecidas pelo sistema capitalista, para além do que já sabem, ou
seja, para além da ideologia: “Trata-se, (novamente trazendo Marilena Chauí) pelo contrário, de compreender a própria
origem das relações sociais, de suas diferenças temporais, em uma palavra, de
encará-las como processos históricos”. (CHAUÍ, 2005)
Neste sentido Hannah Arendt será evocada
por trazer importantíssimas contribuições ao assunto. Em um dos seus poucos,
mas fundamental texto sobre educação, chamado “A crise na educação”, escrito
nos anos 50, mais especificamente sobre a crise na educação americana, mas que
se mantém atual e abrangente a outras culturas até hoje, a autora faz uma
severa crítica à educação como ferramenta ideológica usada para iniciar as
crianças na construção de um novo mundo, tornando-as responsáveis por mudar
aquilo que nós adultos não conseguimos mudar. Embora Hannah Arendt, se refira
neste texto especificamente sobre a educação formal, sua contribuição é
extremamente importante, pois ela falará sobretudo da relação entre adultos e
crianças, sobre a importância de se pensar uma educação política para os mais
novos, e tocará num assunto muito caro a
nós: o brincar, visto por ela, dentro do contexto sócio político que ela
apresenta, como uma forma de alienação e não de aproveitamento cognitivo,
criativo.
Deixemos que a própria autora nos fale:
“O papel desempenhado pela educação em todas
as utopias políticas, a partir dos tempos antigos, mostra o quanto parece
natural iniciar um novo mundo com aqueles que são por nascimento e por natureza
novos. No que toca a política, isso implica obviamente um grave equívoco: ao
invés de juntar-se aos seus iguais, assumindo o esforço de persuasão e correndo
o risco do fracasso há a intervenção ditatorial, baseada na absoluta autoridade
do adulto, e a tentativa de produzir o novo como fait accompli,
isto é como se o novo já existisse”.
E continua a autora:
“Quem desejar seriamente criar uma nova ordem
política mediante a educação, isto é, nem através de força e coação, nem
através da persuasão, se verá obrigado à pavorosa conclusão platônica: o
banimento de todas as pessoas mais velhas do estado a ser fundado. Mas mesmo as
crianças que se quer educar para que sejam cidadãos de um amanhã utópico é
negado, de fato, seu próprio papel futuro no organismo político, pois, do ponto
de vista dos mais novos, o que quer que o mundo adulto possa propor de novo é
necessariamente mais velho do que eles mesmos. Pertence à própria natureza da
condição humana o fato de que cada geração se transforma em um mundo antigo, de
tal modo que preparar uma nova geração para um mundo novo só pode significar o
desejo de arrancar das mãos dos recém-chegados sua própria oportunidade face ao
novo”.
É importante pinçar estes pensamentos de
Hannah Arendt para localizarmos o que ainda nos pode ser útil. Quando trazemos uma
ideia de abordagem que traz em seu núcleo, a palavra utopia estamos nos
referindo a uma pedagogia que ainda se deseja alcançar, sonhada e construída
por todos os participantes do processo de investigação. Estamos em busca de
proporcionar um ambiente criativo através da arte, onde as crianças também
possam experimentar e sonhar novas formas de se relacionar seja com o pequeno
grupo que se formou, seja em casa, na escola, ou em outras instancias de suas
vidas ainda imberbes, mas potentes e em construção para trilhar os caminhos
futuros. Não temos, ao contrário do que a palavra utopia possa
sugerir, o objetivo de criar uma nova ordem social e não temos a menor força ou
condição para fazer a revolução a exemplo do que muitas utopias sonharam e
sucumbiram. No entanto, ainda não deixamos de sonhar sempre com um mundo melhor
para todos mesmo acreditando que atualmente o horizonte é nebuloso e nossa
sociedade está totalmente submersa por relações líquidas, incertas e voláteis.
Por isto e apesar de tudo, nossa intenção, apesar de pequena é importante
dentro de uma perspectiva tão macro que é a vida em sociedade, nossa intenção
será criar algumas fissuras, ou antiestruturas para voltar a dialogar com
Mariana Marcondes. Para Walter Benjamin este tipo de proposta de propiciar à
criança esta dimensão política em suas experiências de aprendizagem e no nosso
caso aqui de Arte (e, portanto de educação) não deveria jamais se dar no
discurso, já que “sobre crianças, ao contrário, frases não têm nenhum poder,
não contribuem em nada”, (BENJAMIN, 2009, p. 112) mas sim na prática, no jogo,
através do que o autor chama de gesto infantil.
A análise de Hannah Arendt é precisa porque
ela toca em pontos fundamentais para pensarmos a crise na educação e a crise
das relações, sobretudo entre adultos e crianças, entre o novo e o velho, entre
o público e o privado, entre o coletivo e o indivíduo. Neste texto a autora
dedica boa parte à educação das crianças, destes seres novos e em formação que
chegam ao mundo e que precisam ser aos poucos introduzidos para dentro dele.
(ARENDT, 2011)
Seria preciso enfrentar a verdadeira crise na
educação para além da superfície de que “Joãozinho não sabe ler”. (ARENDT,
2011, p. 222) A forma como a autora constrói o seu texto e seu raciocínio
propõe exatamente um mergulho nesta crise que ela constata ser global e não
localizada: “É de fato tentador considerá-la (a crise) como um
fenômeno local e sem conexão com as questões principais do século, pelo qual se
deveriam responsabilizar determinadas peculiaridades da vida nos Estados Unidos
que não encontrariam provavelmente contrapartidas nas demais partes do mundo”.
(ARENDT, 2011, p. 222) Propõe uma reflexão que desmascara a forma ditatorial
com que os adultos recebem e preparam as crianças para viverem neste mundo e
nos alerta sobre a responsabilidade que temos sobre aqueles que nascem e a
naturalidade com que isto poderia acontecer, não fosse a desordem com que
estamos vivendo. Para a autora, há muito que se refletir sobre o fato de que
pessoas de todas as idades se encontram reunidas neste mundo, porém esta
naturalidade das relações humanas entre adultos e crianças se encontra
suspensa, pois a criança foi banida para fora desta relação (a partir da
modernização da vida e por consequência da escolar) para ser colocada em grupos
onde o autoritarismo do adulto está aparentemente diluído no autoritarismo do
grupo de outras crianças. Esta responsabilidade para com os mais novos não nos
deveria ser imposta, mas sim implícita em nossas atitudes políticas. “Qualquer
pessoa que se recuse a assumir a responsabilidade coletiva pelo mundo não
deveria ter crianças, e é preciso proibi-las de tomar parte em sua educação”.
(ARENDT, 2011, p. 239).
Percebemos que Hannah Arendt nos fala de uma
responsabilidade coletiva, política, ética para com o mundo, responsabilidade
que não deveríamos simplesmente delegar àquele que é novo e que chega a um
mundo velho que precisa ser cuidado por todos, onde o adulto precisa assumir a
responsabilidade e o papel de aos poucos ir dosando esta inserção dos mais
novos ao mundo como ele é. O que a autora propõe é um resgate ao bom senso e a
naturalidade das relações humanas: “juntar-se aos nossos iguais, assumindo o
esforço de persuasão e correndo o risco do fracasso”. Para isto haveria que se
enfrentar verdadeiramente a crise na educação, infelizmente, esta
responsabilidade para com o mundo, na educação, acaba assumindo uma forma
autoritária, equivocada em que o educador comete seus mais imperdoáveis “erros
educativos” para retomar o diálogo com Mariana Marcondes.
Parece que o ponto alto
do raciocínio de Arendt é quando ela traz para a discussão um dos aspectos que
aparece com mais evidência na educação moderna, e que atualmente vem ganhando dimensões incomensuráveis aqui
entre nós: a substituição do aprendizado pelo fazer, que defende o pressuposto
de que só aprendemos aquilo que nós mesmos fazemos. Os processos educativos
passam não mais a ensinar conhecimentos, mas sim habilidades, atividades que
sejam importantes para a “arte de viver”. Após esta constatação, Hannah Arendt
tocará num assunto delicado que é o brincar, a forma espontânea com que as crianças
aprendem:
Vejamos:
“A intenção consciente não era a de ensinar conhecimentos,
mas sim de inculcar uma habilidade, e o resultado foi uma espécie de
transformação de instituições de ensino em instituições vocacionais que tiveram
tanto êxito em ensinar a dirigir um automóvel ou a utilizar uma máquina de
escrever, ou o que é mais importante para a “arte” de viver (...) Entretanto,
essa descrição é falha, não apenas por exagerar obviamente com o fito de
aclarar um argumento, como por não levar em conta como, nesse processo, se
atribuiu importância toda especial à diluição, levada tão longe quanto
possível, da distinção entre brinquedo e trabalho – em favor do primeiro.
O brincar era visto como o modo mais vívido e apropriado de comportamento da
criança no mundo, por ser a única forma de atividade que brota espontaneamente
de sua existência enquanto criança. Somente o que pode ser aprendido mediante o
brinquedo faz justiça a essa vivacidade. A atividade característica da criança,
pensava-se, está no brinquedo; a aprendizagem no sentido antigo, forçando a
criança a uma atitude de passividade, obrigava-a a abrir mão de sua própria
iniciativa lúdica”.
Ao nosso ver , tentando penetrar o pensamento
de Hannah Arendt por traz deste trecho em relação com toda a tese que ela
desenvolve em seu texto “A crise na educação”, percebemos que não se trata de
uma crítica para com o brincar, esta atividade lúdica, fundamental e espontânea
da criança como muitos já apregoaram a partir de uma leitura ligeira da autora,
mas sim uma crítica à exclusão e
tratamento que se dá às outras formas de aprendizado, a substituição da
aprendizagem pelo fazer e do trabalho pelo brincar, uma contradição ao desejo
que se quer de preparar a criança para o mundo adulto e também a nossa responsabilidade
para com este que deveria ser um procedimento natural e fundamental de cultivo
e perpetuação do mundo. O hábito gradativo do trabalho e do contato com a
realidade é totalmente dizimado em favor de uma autonomia que nem se quer
existe, pois é artificial e está disfarçada de respeito à independência da
criança, que é na realidade, cada vez mais excluída do mundo dos adultos e
mantida momentaneamente no seu próprio mundo que só existe superficialmente “porque
extingue o relacionamento natural entre adultos e crianças, o qual entre outras
coisas consiste do ensino e da aprendizagem, e porque oculta ao mesmo tempo o
fato de que a criança é um ser humano em desenvolvimento, de que a infância é
uma etapa temporária, uma preparação para a condição adulta.” Tudo isto,
para a filósofa não passou de uma desesperada tentativa de reformar todo o
sistema educacional radicalmente sem de fato discutir todas as crises
existentes, e isto para ela é uma atitude autoritária de um ensino que só
poderá ser conduzido sob a tutela do autoritarismo. “O brinquedo, por exemplo,
será interrompido durante as horas de aula, e o trabalho “serio” retomado”
(ATENDT, 2011 p. 234). O que foi feito na realidade, foi uma adaptação às
exigências novas do mundo moderno, distanciando assim o papel do adulto e do
professor da responsabilidade para com os mais novos. O que foi feito foi
acabar com as relações naturais entre adultos e crianças que a autora tanto
defende e que seria o mais responsável e humano para com a educação daqueles que
nascem no mundo, esses “recém-chegados, em estado de vir a ser” e que precisam
ser cuidados, protegidos e aos poucos introduzidos à realidade, “na medida em que
eles cheguem à fruição em relação ao mundo como ele é”. (ARENDT, 2011, p. 239).
O fato é que, não trouxemos as nossas crianças
ao mundo somente para que a espécie humana seja perpetuada, mas sim
simultaneamente para viverem no mundo, agir sobre ele e transformá-lo,
tornando-o um lugar melhor para todos. Ao fazermos isto, assumimos a
responsabilidade para com a vida para com as crianças “e para a continuidade do
mundo” (ARENDT, 2011, p. 235). Infelizmente devido às confusões que estamos
vivendo no modelo de sociedade que criamos, esta responsabilidade volta-se
contra o mundo, pois a criança requererá de nós cuidados especiais para que
nada de ruim lhe aconteça, ensinamo-nas ao invés de amar e defender o mundo a
se defender e a lutar contra ele. No entanto o que fazer se também o mundo
precisa de cuidados? Se também o mundo precisa de nós e de nossas crianças?
Talvez não seja uma coincidência que esta nova
política educacional estivesse diretamente ligada ao que vislumbrava o modo
americano de viver já nos seus primeiros anos de república, impresso inclusive
em toda e qualquer nota de dólar: “Novus Ordo Seclorum”, Uma nova ordem
do mundo, que tinha como lema a fundação de um novo mundo contra o antigo e a
eliminação da pobreza e da opressão, visão que já ecoava na boca de John Adams
em 1976 antes da Declaração da Independência: “Sempre considerei a
colonização da América como a abertura de um grandioso designo da providência
para a iluminação e emancipação da parte escravizada do gênero humano sobre
toda a terra”. (ARENDT, 2011, p. 224).
Para Arendt, quanto mais se pretende que
a criança seja pensada como “o futuro do amanhã”, mais ela é distanciada deste
objetivo. A elas, com este tipo de educação que recebem, lhes é negado por
exemplo um papel futuro nas decisões políticas de suas vidas.
Ao preparar as crianças para um novo mundo com
estes dogmas velhos travestidos de novo, sem de fato nos debruçarmos no legado
que nos deixa Arendt: o de que precisamos urgentemente ensinar as nossas
crianças a ver como o mundo é e não instruí-las simplesmente na “arte” de viver,
estaremos arrancando-lhes de vez a possibilidade delas próprias encararem o
novo e agir sobre ele.
Próxima questão: Como a arte age politicamente
na criança? A arte por si só ensina a criança a modificar o mundo a sua volta e
a compreender melhor as relações sociais em que estamos envolvidos?
Bibliografia:
Arendt,
Hannah. A crise na educação in Entre o
passado e o futuro. São Paulo: Perspectiva, 2011.
Bauman,
Zygmunt. A arte da vida. Rio de janeiro:
Zahar, 2009.
Benjamin,
Walter. Reflexões sobre a criança, o brinquedo e a educação. Ed. 34, 2009.
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