Talita Alcalá Vinagre
CEU Quinta do Sol
Já começou...
Revisitar neste ensaio a memória do que foi a minha parceria entre as artistas-educadoras Fabiana Ribeiro (coord. da equipe), Sthefany Leal, Karina Nakahara com as crianças e adolescentes frequentadores do PIÁ no CEU Quinta do Sol, torna-se uma tarefa que não se remete apenas ao presente.
Desde os primeiros encontros com os participantes do PIÁ - digo participantes, pois essa é a palavra mais ajustada para referir-me a esse conjunto (artista-educadores, crianças e adolescentes), por mais que ainda se reproduzam alguns moldes escolares na relação entre artista-educador e crianças -, a minha tentativa foi a de desconstruir esses papéis tão demarcados. Dissolver as hierarquias se tornou um desafio fundamental para que novos processos artístico-pedagógicos ali se instaurassem, exercitando um outro modo de estar junto. Modo este, muitas vezes estranho, inclusive a nós artistas-educadores, pois, querendo ou não, todos somos mais ou menos “marcados” pelas relações de mando e obediência tão arraigadas desde cedo na relação com nossos pais e professores.
Já no meu primeiro dia com as crianças do PIÁ comecei a elaborar um pequeno diário que registra o planejamento dos encontros, assim como o efeito deles no grupo, sob o título: o que foi? Interessante agora retomá-lo e ver que, passada uma semana, minhas anotações de preparação do encontro se voltam mais a uma tentativa de documentação do que foi possível ou do que não foi possível realizar. Ou seja, esse diário dos encontros ganha relevância nesse momento mais pelo o que aponta de dificuldades, de supostas “falhas” e “desvios” frente às propostas que previamente elaboramos (eu e as artistas-educadoras). No entanto, ao invés de encarar isso do ponto de vista da ineficiência e/ou do erro, passei a tomar os efeitos dos encontros em suas singularidades, o que me propiciou dissolver pouco a pouco qualquer tentativa de controlar suas variáveis. Isso fez também com que minha prática artístico-pedagógica radicalmente se transformasse, assim como minha postura corporal, passando por minha respiração e fluxo de pensamentos.
O PIÁ é o funeral dos desejos
Ao contrário desta frase soar de modo negativo, trago ela aqui, pois me ajuda a cada dia a lidar com o poder massacrante daquilo que alguns chamam de “ego”, de “racionalidade” ou ainda “consciência”. Não me interessa, contudo, desdobrar aqui uma análise psicanalítica, tampouco filosófica sobre a atuação dessa forma tão cristalizada de separar o pensamento do corpo, a razão da emoção... Tal frase remete antes de tudo a outra que escutei várias vezes de alguns dançarinos-pesquisadores do Contato e Improvisação: “a improvisação é o funeral dos desejos”. Assim, perceber o corpo como um fenômeno rico, constante e mutável: isso é o que intuitivamente tentei processar ao longo desses encontros no PIÁ.
No entanto, quantas vezes não quis me sobrepor a elas, fazendo a minha vontade prevalecer? Na maior parte das vezes isso me trouxe nada mais do que frustrações, pois querendo me referenciar ao que já conhecia, permanecia presa a códigos e caminhos determinados e que impunham a mim mesma uma retidão moral e corporal. Entretanto, ao passo que fui me abrindo para o tempo e o espaço presente de cada encontro no PIÁ, também a minha dança mudou, tornando-se mais fluída e leve.
Assim, menos destinada a reproduzir alguns procedimentos de dança contemporânea nos encontros, o desafio foi o de captar forças. E, nesse aspecto, a própria dança ganhou novos sentidos para mim, pois muitas vezes era necessário abrir mão do movimento “dançado” para acessar outras coreografias, que acontecem em extensões que constantemente não se pretendem ser reconhecidas como “linguagem de dança”. Aliás, abrir mão de uma “certa de dança” era algo que de início me incomodou muito no PIÁ. Pra mim, era como se eu não estivesse exercendo a minha “competência”... Felizmente, aprendi muito, lembro-me de em várias conversas com a artista-educadora Karina Nakahara, ela ter me ajudado a perceber – sobretudo pelo seu modo assertivo de lidar com as crianças em cada encontro - que não há sentido em cristalizarmos um “dever-ser” para o que fazemos. A partir disso, não mais importava se o que fazíamos no PIÁ era chamado de dança, artes visuais, música ou teatro. Até mesmo a palavra artista-educador começou a me incomodar. Nos encontros, as crianças e adolescentes é que muitas vezes nos mostravam jeitos de desdobrar gestos inventivos e não o contrário.
Por meio de uma aproximação cada vez mais afinada às necessidades de cada turma, considerando as variações diárias também em meu próprio corpo, pude atentar para os diferentes modos de estar presente e como potencializar a minha presença em cada encontro. Isso aconteceu nos momentos de maior dificuldade, nas situações mais angustiantes. Quando não fazia mais sentido preencher o tempo com um monte de ideias e/ou propostas pré-estabelecidas, quando os gestos e as falas se silenciavam é que algo parecia ser acessado de incomum na relação com as crianças. O vazio foi assim ganhando muita importância, sobretudo porque o que mais me chamou atenção nas atitudes das crianças - e minhas também - é a profusão de ideias, de propostas, de diferentes focos. A dificuldade de adensar, de se implicar realmente em uma experiência transformadora, por vezes me assustava. Também porque isso requer um tempo, um espaço, enfim, condições muitas vezes inexistentes no PIÁ e onde ele acontece. Mas exatamente diante desses “obstáculos” é que esses encontros tornaram-se ainda mais interessantes para mim.
A importância dos buracos
Contudo, partir dos obstáculos a fim de construir um outro modo de estar junto, compreendendo o encontro e a singularidade de cada um ali presente, sem idealizações tem os seus riscos. Sobretudo porque quando se vai retirando os clichês das relações, tornando-as mais “simples”, experimentando estratégias sem querer saber onde elas irão chegar, começa-se a olhar para os nossos próprios “buracos”. Por outro lado, tal fato pode possibilitar aberturas a novos percursos na própria produção de si, do artista-educador e da criança como seres no mundo.
Deste modo, é assim que me vejo nessa prática, querendo escavar, como uma arqueóloga mais e mais “buracos”, para fazer irromper o que é improvável nas relações. E, para isso, vi o quanto é necessário me preparar, conversando com as duplas de artistas-educadoras, voltando a atenção para cada turma e, no meu caso, registrando, tal como um modo de relembrar o que restou de cada encontro e o que se poderia retomar, desdobrar no encontro seguinte (ou não).
Leio agora uma de minhas anotações e vejo que um dia escrevi sobre o incômodo de lidar com o fato de uma criança não querer adentrar a brincadeira que fazíamos. Ao mesmo tempo, estávamos percebendo a sua retirada e o grupo, à sua maneira, deu respaldo para que ela pudesse fazer de outro jeito, criando sua própria brincadeira naquele momento. Coexistir num mesmo espaço-tempo, sem forçar uma integração foi algo que me fez repensar qual seria a ética do viver junto que estávamos ali construindo. Satisfiz-me em perceber tal experiência como liberadora, pois sem querer melhorar o outro (a criança “de fora”), tampouco fixar-lhe uma norma ou uma verdade, propiciamos-lhe cavar seu próprio buraco potente também em engendrar suas ficções. E, desse modo, conjuntamente esburacamos uma galeria inteira debaixo da terra, arejando-a, à moda das minhocas, para que outros seres vivos ali crescessem em solo fértil.
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