quarta-feira, 24 de dezembro de 2014

A Criança e o Audiovisual - por Dodi Leal

A Criança e o Audiovisual
por Douglas Tavares Borges Leal (Dodi Leal)

Este texto visa tratar da interação e do conhecimento da criança com a linguagem audiovisual tomando como referência a experiência as atividades desenvolvidas no Programa de Iniciação Artística - Piá no Centro de Formação Cultural Cidade Tiradentes - CFCCT no ano de 2014. No entanto, mais do que apenas investigar aspectos ligados ao aprendizado do audiovisual em si, pretende-se  por em questão aqui o próprio ato de aprender, a relação da criança com o artista-educador e as características criativas e autorais do ato criador.

Qual o papel do artista-educador na elaboração criativa das crianças? Tem-se como paradigma a ideia de que a ação pedagógica deve proporcionar as condições para uma emancipação intelectual de quem aprende. Diferentemente de uma lógica em que os mestres devem conduzir o aprendizado indicando o que deve ser aprendido, cabe ao pedagogo não explicar, mas possibilitar experiência.

"Explicar alguma coisa a alguém é, antes de mais nada, demonstrar-lhe que não pode compreendê-la por si só. Antes de ser o ato do pedagogo, a explicação é o mito da pedagogia, a parábola de um mundo dividido em espíritos sábios e espíritos ignorantes, espíritos maduros e imaturos, capazes e incapazes, inteligentes e bobos." (RANCIERE, 2013, p. 23).

Em um contexto no qual as crianças tiveram autonomia para desenvolver um projeto artístico, quem está no papel de mediação deve opinar ou não na concepção? Quem define que uma obra está acabada: o artista-educador ou a criança? E quando a criança dá a obra como terminada, pode o artista-educador sugerir novas ações? O artista-educador pode intervir criativamente na obra de uma criança? E o lançamento/exibição/publicação deve ser feito pelo adulto em vez da criança?

Como em todo processo criativo, as funções não precisam ser feitas por todos os participantes, cada um contribui de uma forma diferente. Neste caso consideramos que a relação do mediador em um processo criativo é pedagógica porque orienta o aprendizado das crianças e, ao mesmo tempo, é artística porque, juntamente com elas, elabora e autora uma obra/evento/intervenção. A experiência faz perceber que a apresentação de ferramentas e estratégias para manusear uma criação não está separada de uma postura artística e criativa do próprio artista-educador. Não só a seleção de materiais, cabe ao coordenador também imprimir na sua ação formas artísticas que inevitavelmente farão parte da composição com a criança. A garantia da autonomia da criança no processo criativo não significa que a criação e as escolhas são exclusivas dela. A autoria do que é criado junto entre artistas-educadores e crianças é necessariamente uma autoria compartilhada.

No entanto, talvez o mais relevante aspecto dos processos de criação mútua seja a oportunidade pedagógica do ato de criar. Neste sentido em um contexto de iniciação artística, o papel do artista-educador é muito mais amplo em fazer com que as condições ambientais, de materiais e temáticas sejam favoráveis ao aprendizado. Cabe a ele mais do que ensinar o teatro ou a música, mas possibilitar que a criança experimente cada linguagem com autonomia.

Da mesma forma, não faz qualquer sentido o ato criador emancipador sem a perspectiva da narrativa. Segundo Rancière (2013, p.55), a inteligência ligada a emancipação só pode acontecer quando o aprendiz pode contar, elaborar narrativa do seu percurso: "há inteligência ali onde cada um age, narra o que ele fez e fornece os meios de verificação da realidade de sua ação".

Mas e quando se trata de crianças? Quais as especificidades que a natureza da aprendizagem assume entre os pequenos? O universo infantil traz consigo inexoravelmente a prática da brincadeira. Sem levar em conta a ancestralidade e a naturalidade do ato de brincar, o artista-educador pode perder de vista o sujeito criança: a poética do brincar é sua linguagem essencial.

"Digamos, poeticamente, que Cinema e Psicanálise são brincadeiras de adultos, jogos-crianças: ambos têm cem anos de idade. E o buraco na areia? E a cambalhota? E o aro que desce a ladeira?" (MACHADO, 1998, p. 46).

O audiovisual talvez tenha sido a linguagem artística que mais se adaptou a era da informação. Televisão e internet são os meios propagadores mais populares daquilo que se pode fazer com a imagem em movimento em composição com recursos de som. O cinema continua sendo a modalidade mais autêntica do audiovisual. Isso se dá especialmente pelo fato de o cinema guardar o especial trabalho de narrativa ficcional aliado as etapas de concepção e produção, que acontecem em qualquer forma ou produto.

No Piá em 2014 experienciamos diversas formas de linguagem audiovisual com as crianças. Procuro enunciar aqui apenas três possibilidades. A forma de apresentação é a orientação de condução para o artista-educador tendo em vista sua aplicação em outros contextos. No primeiro caso, do Stop-Motion, insiro comentários de duas crianças que participaram do processo para dar ideia ao leitor da assimilação da proposta pela criança e do seu exercício de elaboração narrativa.


STOP-MOTION

Reunidos em uma sala de projeção, os artistas-educadores exibem filmes produzidos com a técnica do Stop-Motion. De natureza diversificada, os filmes exemplificam que há várias formas e materiais possíveis de ser utilizados. No entanto, o mais importante desta exibição no início é demonstrar a variedade narrativa. As crianças ora se atentam para as histórias, ora para o conceito. Não importa! O que faz valer esse contato é a ampliação de referências e a nutrição estética. Evidentemente a presença dos artistas-educadores aqui é fundamental no sentido de dar destaque ao conteúdo e aos tratamentos feitos em cada obra.

Terminada a exibição, passa-se a etapa de produção. Há a possibilidade de trabalho em grupo ou individualmente. As perguntas feitas neste momento são: « Qual história você quer contar? » e « Qual material você quer usar para contar essa história? ». Para facilitar a organização dos projetos, os artistas-educadores se dividem e vão acompanhando a execução de cada um. Um eventual critério de divisão dos grupos são as formas expressivas escolhidas para o trabalho. Resumimos em três: o desenho, os objetos e o corpo.

Quando já se sabe a história e o material, é hora de começar a produzir. No caso do desenho pode-se trabalhar com uma folha de sulfite na qual não há nada escrito ou desenhado. Inicia-se com uma foto deste estado. Em seguida faz-se o primeiro traço. Tira-se uma foto. Depois o segundo traço. Uma nova foto. E assim sucessivamente até a criança finalizar a história.

Se a matéria escolhida forem os objetos, há uma variedade grande de trabalho. Desde objetos prontos até a confecção com materiais recicláveis ou massinha de modelar. As crianças são convidadas, neste caso, a produzir todo o cenário onde se passa a história, além, é claro, dos personagens. A mistura de massinha com objetos recicláveis é uma experiência interessante para criação já que amplia as variantes de combinação dos materiais e, consequentemente, aumenta a riqueza expressiva do trabalho.

A última possibilidade é o corpo. Neste caso, pede-se que a criança desempenhe pequenas variações de movimento no lugar ou em deslocamento. O objetivo é tirar uma foto a cada instante de movimento sem deixar que qualquer posição diferente escape da fotografia.

Por fim, realiza-se a montagem dos filmes. Após a transferência dos arquivos de foto para o computador, realiza-se uma pesquisa de sons que podem dialogar com o conjunto de fotos que será posto em movimento. Em seguida, importam-se todos os arquivos em um programa de edição, de preferência com um visual simplificado e linguagem em português. Passam-se para as escolhas de apresentação, em que o artista-educador verificará as preferências da criança na abertura e fechamento do filme (tipo de fonte, qual texto, cor, efeito de animação); se há alguma foto que deve sair (em geral por ter ficado fora de quadro); qual a duração das imagens.

A experiência da duração é algo interessante: é preciso dar a oportunidade de as crianças conhecerem mais de uma possibilidade de duração. Na maior parte das vezes, por desconhecerem a medida exata que dá a ideia de ilusão de movimento a partir de fotogramas, a criança acha que a unidade mínima de cada foto é 1 segundo, e as vezes até 3 segundos!

É recomendável que seja feita uma mostra com os filmes das crianças estimulando outras pessoas a conhecerem o trabalho. O momento é oportuno para que cada grupo ou criança, no caso das que fizeram sozinhas, compartilhe as etapas de elaboração dos projetos e a sensação que tiveram de desenvolvê-lo e de vê-lo pronto.

A seguir apresento o relato de duas crianças que participaram da experiência. Foi solicitado que elas explicassem as razões de escolha das histórias bem como os procedimentos e materiais utilizados.

Por se tratar de uma experiência de elaboração manual e corporal altamente criativa,  e por ser extremamente flexível com relação a forma e conteúdo, essa modalidade pode ser realizada por crianças das três faixas etárias atendidas pelo programa: 5-7; 8-10 e 11-14. Outra observação: as próprias crianças podem fotografar cada momento do Stop-Motion. Quanto mais funções assumirem mais fácil será reproduzirem depois a experiência fora do programa.

"O Stop-Motion surgiu nas minhas aulas de Piá no Centro de Formação Cultural Cidade Tiradentes com a ideia dos meus educadores Dodi Leal e Fernando Siviero. Foi uma ideia muito legal por isso todos nós topamos então começamos imediatamente o Stop-Motion. Pode ser de quatro maneiras como: massinha, desenho, corpo e construção de objetos. Você faz um movimento com qualquer uma dessas quatro sugestões e tira uma foto, depois outro movimento e tira outra e assim por diante. O título do meu filme foi Dor, mais dor. Escolhi esse título porque a história foi de lutas e mortes. E é sobre Karatê porque no momento em que os educadores deram a proposta eu estava pensando no assunto. Agradeço por essa ajuda dos meus educadores Dodi Leal e Fernando Siviero." (Luis Felipe - turma 7 - 11 a 14 anos - Piá CFCCT 2014).

"Fazer o Stop-Motion foi uma experiência legal, como eu gosto de música resolvi fazer uma história sobre música junto com minha amiga, a Giuliana. Na verdade a ideia veio de uma proposta anterior de um teatro musical que a gente ia fazer." (Stefanye Camili - turma 7 - 11 a 14 anos - Piá CFCCT 2014).

VIDEO-SELFIES
Em meio a um mundo em que as redes sociais parecem ser o meio de comunicação mais intenso e acessível nos grandes centros urbanos, a proposta de gravação de video-selfies é uma alternativa de experiência de criação com a linguagem audiovisual a partir de uma modalidade não só bastante difundida mas perfeitamente compreendida pelas crianças.

Justamente por se tratar de algo bem conhecido, é possível com os video-selfies ampliar o desafio de criação. Pode-se aqui trabalhar com propostas mais sofisticadas de argumentação ou performance. O caso experimentado vai de encontro com a oportunidade de desenvolver propostas mais elaboradas. Tratamos de criar video-selfies a partir de trechos textuais de uma obra literária.

O texto escolhido, As Histórias do Sr. Keuner, de Bertolt Brecht, contém inúmeros pequenos causos que colocam em questão o comportamento social e político dos seres humanos. Depois de lermos em grupo, cada criança é convidada a escolher um texto e memorizar.

Fora da sala de aula, de preferência em um lugar aberto, a criança posicionará a câmera um pouco acima do rosto, segurando com braços estendidos. A lente precisa estar direcionada para o rosto. Ao apertar o "rec" a criança pode começar a falar o texto a sua maneira. Em muitos casos em que elas não tiverem decorado exatamente o texto como foi escrito pelo autor, pede-se que falem o que se lembram dele.

Por se tratar de uma elaboração que tem a performance verbal e a oportunidade do tratamento literário, recomenda-se que esta modalidade seja desenvolvida com turmas de 11-14 anos.

 


TV CRIANÇA
Essa é a experiência de elaboração de um ou mais programas de TV cuja curadoria, apresentação, interpretação, produção e gravação são feitas pelas próprias crianças. Pergunta-se as crianças qual o programa que querem fazer. As possibilidades são muitas entre telejornal, programa de auditório, telenovela, desenho animado, etc. O mais importante é que apenas uma modalidade de programa seja escolhida de cada vez para que todos tenham a oportunidade de experimentar uma criação conduzida do começo ao fim.

Para os casos de programas com apresentadores em cena, será preciso construir os cenários. Se for um talk-show, podem-se desenhar em cartolinas os ambientes ou até mesmo fazer colagens a partir de revistas. Se for um telejornal será preciso elaborar mapas para indicação das previsões de tempo (ou até mesmo notícias geopolíticas!). A elaboração de um microfone de mão é opcional para um programa de auditório, mas imprescindível quando houver reportagem de rua. No estúdio pode-se elaborar um boom com vassoura e outros elementos. Para o telejornal é interessante construir uma bancada e para o talk-show um sofá para receber os entrevistados.

Um conteúdo interessante de se trabalhar é a organização da produção a partir da ordenação das informações de gravação. O instrumento que pode ser experimentado aqui é a claquete. As crianças podem fazer uma claquete de cartolina ou, se for possível, trabalhar com uma real. Nela poderão ser escritas as informações relativas ao plano e ao dia de filmagem, além do nome do programa, diretor, número de tomadas, etc.

Por se tratar de uma elaboração que tem a brincadeira e a imaginação a partir de algo já conhecido como fundamentos, o trabalho desta modalidade com turmas de 8-10 anos é ideal.







Referências

AUMONT, Jacques. O Olho interminável - Cinema e Pintura. São Paulo: Cosac Naify, 2011.

LEAL, Douglas. A Linguagem Cinematográfica e a Cena Teatral. Revista de Cinema. São Paulo, out 2013.

MACHADO, Marina Marcondes. A poética do brincar. São Paulo: Edições Loyola, 1998.

OSTROWER, Fayga. Criatividade e Processos de Criação. Rio de Janeiro: Editora Vozes, 1977.


RANCIERE, Jacques. O mestre ignorante - Cinco lições sobre a emancipação intelectual. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2013.

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