domingo, 3 de janeiro de 2016

ILO KRUGLI, VENTOFORTE E A PRIMEIRA EXPERIÊNCIA EM ARTES INTEGRADAS de ELIANE WEINFURTER

ILO KRUGLI,
TEATRO VENTOFORTE
E A PRIMEIRA EXPERIÊNCIA
EM ARTES INTEGRADAS

Eliane Weinfurter dos Santos

Ilo Krugli, criador do Teatro Ventoforte. Foto: Pollyanna Diniz
Foto: Pollyana Diniz


Em 1991 fui avisada por uma amiga de um Curso de Teatro gratuito que estava acontecendo em uma Biblioteca em Santo Amaro.
Fui pra lá sem saber ao certo o que aconteceria. Até então tinha feito teatro na escola e fazia parte de um grupo que ensaiava aos finais de semana em uma garagem.
Muitos professores e músicos e ele: ILO KRUGLI. O Diretor do Teatro Ventoforte.
O Curso fazia parte de um Projeto chamado MIGRAÇÕES e acontecia em quatro lugares de São Paulo: zona sul (Santo Amaro e M´Boi Mirim), zona oeste (Butantã), zona leste (Mutirão São Francisco ) apoiado pela Prefeitura de São Paulo à época da gestão de Luiza Erundina.
Improvisos com coisas simples: papéis, jornais, barbantes e a música executada ao vivo, sempre presente, dialogando com o que se estava sendo feito nas cenas, ora pontuando, ora contrapondo ritmos e imagens.
Certa vez houve um improviso em que cada um tinha uma folha de jornal para criar algo que durasse alguns segundos. Desespero. O que fazer? Lembro que a mesma amiga que me apresentou o Curso, Adriana Diniz, pendurou a folha de papel em um barbante à sua frente, ficou parada atrás e mesmo tendo começado o improviso, ainda não sabia o que fazer. Silêncio e espera de todos. De repente começou a rasgá-la lentamente e daí a beleza do trabalho. Do jornal sendo rasgado e do som produzido, vieram imagens que estão em mim até hoje. Da simplicidade da construção de algo tão simples mas que, impossível distanciar os olhos de alguém que está totalmente entregue a essa ação, de corpo, alma, suor e respiração.
Não lembro o que eu fiz!
Primeiro curso de teatro, não cheguei com fórmulas nem com molduras, nem querendo me amparar em textos ou teóricos. Vinha tão somente eu vazia e fui me completando, me deixando levar pelo vento que me inspira até hoje, com todos aqueles sons, palavras, gestos e imagens e as possibilidades de se fazer o simples.
Depois de um determinado tempo do curso, a verba acabou e Ilo convidou a todos para continuarem os experimentos na sede do grupo. Um lugar lindo no Itaim Bibi, cercado de árvores, três espaços de encenação (teatro dos pés, teatro das mãos e teatro dos olhos) e um coreto.
Encantamento.
O curso seguia. A quantidade de pessoas foi diminuindo como em todo curso de duração mais prolongada.
Certo dia, depois da divisão em pequenos grupos, ensaiamos uma cena com apoio da Professora Fátima Campidelli. Ilo quis assistir a todas e assim fomos, em pânico, apresentar para ele, para os demais professores e para os outros participantes do curso.
Semanas depois veio o convite para integrar o elenco da remontagem de HISTÓRIAS DE LENÇOS E VENTOS.
Este espetáculo que aconteceu a primeira vez em 1973 foi um marco na dramaturgia para crianças.
Ilo recebeu um convite para apresentar algo no Festival de Curitiba. Então, ele e grupo, ensaiaram por doze dias. A cada dia Ilo escrevia um trecho do espetáculo e Caique Botkay simultaneamente escrevia as músicas.
Com alguns objetos, papéis, latas, panos, lenços...e alguns bonecos que nem foram utilizados, surgia o espetáculo. O trabalho foi muito bem recebido e o entusiamo fez com que continuassem no Rio de Janeiro as temporadas no MAM onde passaram mais de cem mil pessoas durante todo aquele ano e depois fizeram dois ou três meses no Teatro Opinião.
O nome definitivo do grupo veio depois de uma matéria de jornal de duas páginas de Ana Maria Machado, cujo título era “Vento forte no teatro para crianças do Brasil”. Ela dizia no texto que o teatro para crianças no Brasil estava dividido entre antes e depois de Lenços e Ventos.
Surgia o Ventoforte.
Lenços e Ventos conta a história de Azulzinha, um lenço que simboliza a liberdade e sai voando. Acaba presa em um Castelo do Rei Metal Mau (feito de latas) até que Papel, o herói (uma folha de jornal onde eram pintados os olhos e a boca) consegue salvá-la com a ajuda de todos os lenços do quintal.
À época da remontagem do espetáculo, acontecia o Curso de Formação de Atores do Teatro Ventoforte. E lá pude aprofundar o aprendizado.
Como explicar?

O teatro é realizado com o Imaginário, para desenvolver o imaginário, e para isso acontecer estabeleceu-se a intrincada rede de relações entre os estímulos através do corpo, da música e da dança, das artes plásticas e dos objetos do cotidiano, o individual estimulando o coletivo e vice-versa” (CAVINATO, 2003).


No curso que acontecia de segunda a quarta feira, no período da noite, tínhamos encontros às segundas e terças com Ilo, e quarta-feira tínhamos aulas de canto com Ricardo Nogueira e danças brasileiras com Tião Carvalho do Grupo Cupuaçu.
Caminhadas pelo espaço em diferentes direções e velocidades iam lavando o corpo e a mente das inquietações cotidianas e a música sempre executada ao vivo acelerava este processo de imersão, de quase sonho em que imagens e sensações podiam surgir nas improvisações, nos diálogos corporais. Abria-se esse espaço para que a mente fluísse em imagens e sons. O espaço para o ritual estava instalado.
Antes e depois dos exercícios, a roda, no círculo ancestral todos falavam e compartilhavam as vivências. Ilo observava sempre atento, comentava imagens que também para ele apareciam, orientava antes, durante e no fim.
Do curso participavam atores, com e sem experiência, mas também músicos, artistas de outras áreas, psicólogos, terapeutas.
Dois anos de aprendizado concomitantemente ao espetáculo Lenços e Ventos. Em busca de uma espontaneidade difícil de se encontrar e quando encontrada como mantê-la com o frescor do primeiro dia? Essa busca que permanece sempre, a cada novo trabalho, porque um ator nunca está pronto.
Dois anos de observação da natureza que rodeava os teatros, das plantas e bichos, buscando nessa natureza as folhas, as pedras, o pé na terra, as sementes que comporiam a poética de cada encontro.
Entre os muitos temas: os quatro elementos da natureza, água, ar, fogo e terra. E os sonhos.
Além de propostas que incluíam cadernos de diários, desenhos, os mapas da vida, tantos e tantos elementos que forjaram a atriz que sou hoje.
A base do trabalho é a criatividade e a imaginação. Além das festas populares brasileiras que encantaram tanto este argentino radicado no Brasil há mais de 40 anos. Ilo diz que seu teatro é improvisado, mas não tão improvisado assim. É um trabalho artesanal e dos mais antigos, a raiz da expressão do ser humano.
“O teatro como forma de conhecimento, forma de desvendar enigmas, ajuda a conhecer a realidade e a si mesmo” Ilo Krugli, in. Cavinato (2003).
No Ventoforte você não é só atriz ou ator, você também é artesão. Faz os bonecos, costura as roupas, cria e recria, faz o café, pinta o cenário, limpa o palco, da mesma forma que  em alguns pouco grupos ainda todos fazem tudo.

“(...) a integração das Artes tem o teatro como um núcleo. A imaginação é considerada o centro irradiador de toda criação. Dança, música, literatura, poesia, contos de tradição oral, contos de autor, contos de fadas, mitos, artes plásticas, teatro de bonecos e animação de formas são integrados na mediação da aprendizagem simbólica e na formulação das experiências interiores tornando-as concebíveis.” (CAVINATO, 2003)



Desta experiência de fazer tudo, vivenciamos as artes integradas cotidianamente nas criações de espetáculos e na observação como estagiária das aulas para crianças e adolescentes que aconteciam no Ventoforte aos sábados. Tudo isso me ajudou e ajuda muito neste Ser e Estar do Piá, nas minhas pesquisas e com as crianças por ser o Piá este espaço de criação compartilhada e em que as fronteiras entre as linguagens são fluidas ou como em algumas crianças, esta fronteira é inexistente pois ela brinca, canta, dança, conta histórias desde os primeiros anos de vida.

“Acredito muito nessa coisa de educação pela arte, sempre penso no tanto que se poderia fazer colocando o processo da arte na frente até das informações intelectuais. E quanta gente talentosa e criativa apareceria. A educação oficial imobiliza, engessa. (…) Todos nós temos o potencial da linguagem de expressão, que é desenhar, falar, pintar, dançar, mas o que vemos é tudo endurecido. (…) Tem o talento nato, mas talento também se conquista” (2009)

Ilo Krugli aprendeu a fazer bonecos aos 8 anos com sua professora que aprendeu com o titiriteiro argentino Javier Villafãne  Antes disso já fazia teatro nas escadarias de casa, ora colocando o público na escada ora fazendo da escada, palco.
Disse que certa vez fez teatro com bolinhas de gude em uma lata de metal (dessas de marmelada) e ao ler isso lembro-me do poema do Manoel de Barros, A Lata.

Estas latas têm que perder, por primeiro, todos os ranços (e artifícios)
da indústria que as produziu. Segundamente, elas têm que adoecer na
terra. Adoecer de ferrugem e casca. Finalmente, só depois de trinta e
quatro anos elas merecerão de ser chão. Esse desmanche em natureza é
doloroso e necessário se elas quiserem fazer parte da sociedade dos
vermes. Depois desse desmanche em natureza, as latas podem até
namorar com as borboletas. Isso é muito comum. Diferentes de nós as
com o tempo rejuvenescem, se jogadas na terra. Chegam quase até
de serem pousadas de caracóis. Elas sabem, as latas, que precisam
chegar ao estágio de uma parede suja. Só assim serão procuradas pelos
caracóis. Sabem muito bem, estas latas, que precisam da intimidade com
o lodo obsceno das moscas. Ainda elas precisam de pensar em ter raízes.
Para que possam obter estames e pistilos. A fim de que um dia elas
possam se oferecer às abelhas. Elas precisam de ser um ensaio de árvore
a fim de comungar a natureza. O destino das latas pode também ser
pedra. Elas hão de ser cobertas de limo e musgo. As latas precisam
ganhar o prêmio de dar flores. Elas têm de participar dos passarinhos.
Eu sempre desejei que as minhas latas tivessem aptidão para
passarinhos. Como os rios têm, como as árvores têm. Elas ficam muito
orgulhosas quando passam do estágio de chutadas nas ruas para o
estágio de poesia. Acho esse orgulho das latas muito justificável e até
louvável.
(Manoel de Barros)


Do seu Ventoforte já voaram peças, bonecos, para outros palcos, para outros Estados e estados, para outros países. Já se criaram atrizes e atores que floresceram.
Ilo escreveu neste último ano um livro de poesia e segundo um amigo tudo, absolutamente tudo foi tema e tornou-se vivo pelas mãos deste artista. (Ainda não foi editado)
Assim como em seus espetáculos, como Lenços e Ventos, que torcíamos pela vitória do Papel, aquela folha de jornal que vira cinzas em cena e ressuscita e consegue salvar sua amada Azulzinha, somos levados pela imaginação e pela criatividade deste senhor poeta e acreditar que tudo pode ter vida.
Na baixa estatura corporal, mora um Gigante.
Por ele e por seu teatro, muitos redescobriram o quintal de sua infância. Relembraram. Reviveram.
Mas não se engane ao pensar que Ilo Krugli só faz espetáculos para crianças, nunca espetáculos infantis. Ele também faz e muito bem espetáculos para adultos e para todas as idades como o Portal das Maravilhas, em que falava da Inquisição e na sua costura de textos coube uma homenagem à Mãe Coragem de Bertold Brecht, quando acontece a cena da Muda (Eliane Weinfurter) tocando tambor e sobre a ditadura do Chile: estava presente no último discurso de Allende. O convidou para ir assistir ao espetáculo que estava fazendo e teve como resposta: “Eu gosto muito de crianças, também sou uma criança que às vezes gosta de jogos perigosos”. Logo em seguida aconteceu o Golpe.
Fez ainda Círculo de Giz Caucasiano de Bertold Brecht e prólogo de Plínio Marcos, Tempestade de Shakespeare, entre outros espetáculos para adultos. Não posso esquecer de citar os espetáculos em que fazia homenagem a Federico Garcia Lorca, como Sete Corações- Poesia Rasgada, Choro Lorca, Pequenas Histórias de Lorca.
Ilo completou 85 anos no dia 10 de dezembro de 2015 e como menino dançou cirandas e cantou com todos.
Deixo aqui muito menos do que um ensaio e muito mais um memorial de vivências que tive em doze anos de trabalho com este grupo.
O trabalho do Ventoforte tem muito em comum com o que é feito no Piá, desde muito tempo antes deste Programa existir, com relação ao respeito à criança, as possibilidades de estruturação de cenas e animação com pequenos objetos, bonecos, com o resgate dos quintais das nossas infâncias, com a permissão à imaginação fluir e criar e por isso a escolha deste tema, além da pequena homenagem ao meu Mestre.
Acredito que algumas pessoas não conheçam o Teatro Ventoforte e o seu criador Ilo Krugli. Para estes, espero que esses mínimos relatos possam aguçar a curiosidade em saber mais.
Para os que conhecem ou já viveram o que vivi, segue esse afago feito com as mãos e com o coração.

Para saber mais:
ALBUQUERQUE, Johana. Ilo Krugli In: ______.Enciclopédia do teatro brasileiro contemporâneo. São Paulo, 2000. Material elaborado em projeto de pesquisa para a Fundação Vitae. Ficha curricular.
BUENO, José Marcos Pires. Entrevista concedida a Johana Albuquerque. São Paulo, 30 out. 2001.
COSTA, Mônica R. Peça mostra três em um de Oscar Wilde.Folha de S.Paulo, São Paulo, 18 jun. 1995.Folhinha, p. A-2.
CRONOLOGIA das Artes Cênicas em São Paulo 1975 - 1995. São Paulo: Centro Cultural São Paulo,1996. v. 3.
KRUGLI, Ilo; LARANJEIRAS, L. Carlos. Dez anos teatro ventoforte. Rio de Janeiro,1984. Catálogo comemorativo.
______. Grupo Ventoforte sopra poesia de Lorca.Folha de S.Paulo, São Paulo, 11ago. 1996.Folhinha, p. A-5.



BIBLIOGRAFIA

ABREU, Ieda de. Poesia Rasgada / Ilo Krugli. SP. Imprensa Oficial de SP. 2009

CAVINATO, Andrea. Uma experiência em Teatro e Educação: a história do menino navegador Ilo Krugli e seu indomável Ventoforte. Dissertação de Mestrado. 2003


“Essa menina só faz arte! Ai como esse menino é arteiro!”



“Essa menina só faz arte! Ai como esse menino é arteiro!”

É curioso como a arte está relacionada a tantos outros significados além do sentido da própria arte. A arte muitas vezes considerada qualquer coisa, neste caso do menino arteiro e/ou da menina que só faz arte, está diretamente associada à bagunça. Não tenho pretensão aqui nem muito menos audácia de explicar o que é a arte, mas uma pergunta me intriga: o que é de fato a bagunça? Não seria a bagunça a própria brincadeira? Quando uma criança quebra uma cestinha de porcelana que decora a estante de sua casa porque está correndo pela estrada afora brincando de ser Chapeuzinho Vermelho, estaria esta criança brincando ou fazendo bagunça? Quando uma criança abre o guarda-roupa dos pais e tira tudo do lugar para pegar roupas, adereços e maquiagem para brincar de ser adulto, esta criança estaria brincando ou fazendo bagunça? O imaginário da criança é vasto e capaz de transformar tudo em brincadeira. O olhar da criança é cheio de possibilidades e vê nas pequenas e, aparentemente, fúteis coisas, elementos incríveis. Ela é capaz de transformar uma caixa de leite em uma espaçonave cheia de luzes e cores; um sapato em um barco repleto de passageiros, um bambolê em um volante gigante, e assim por diante.

   Neste ano de 2015, no qual integrei uma das equipes do PIÁ, percebi que a brincadeira, que muitas pessoas confundem com a bagunça, é a própria arte da criança, o jeito que ela encontra de transformar aquilo que ela imaginou em criação. Ao lado de outros educadores: uma atriz, um músico e uma bailarina, eu que estava inserida no Programa como Artista-educadora de Artes Integradas, pude brincar de tudo que se pode imaginar, porque nos permitimos enquanto artistas-educadores adentrar o universo lúdico e mágico das crianças.

Para tanto, algumas perguntas instigavam o nosso trabalho. Como dança o corpo da criança? Dança com os passos de jazz? Dança com as posições do Balé? Dança com os golpes da capoeira? Ou será que quando esse pequeno e flexível corpo desliza no chão como uma cobra, quando pula como um sapo ou quando abre os braços correndo como um pássaro este corpo já não está dançando? 

Como a criança faz música? Ela faz música aprendendo a ler a partitura? Será que ela faz música entendendo ritmo e pulsação? Faz música contando compassos? Ou será que a criança faz música quando bate palma? Faz música quando descobre os sons de objetos que bate no chão ou no próprio corpo? Faz música combinando sons aleatórios da maneira que ela bem entende? Será que faz música quando canta uma cantiga?

Como atua a criança? Atua decorando um texto? Atua decorando as marcas e deixas? Ou atua quando brinca de ser polícia e ladrão? Quando brinca de ser bruxa, príncipe e princesa? Quando brinca de ser um monstro terrível e para isso faz a careta mais assustadora e brinca com sua voz que mais parece um grunhido? Ou será que atua quando enfeita o corpo com adereços e fantasias encontrados no espaço em que está, seja ele qualquer espaço? Qualquer coisa vira qualquer outra coisa. O nada vira tudo.

Para responder estas perguntas na prática, propusemos diversas brincadeiras utilizando as várias artes, mas sobretudo estávamos abertos para as brincadeiras propostas pelas próprias crianças. O brincar foi, portanto, desenvolvido tendo a criança como protagonista das aulas. Sendo assim, percebemos que esse universo da brincadeira permeia todas as linguagens artísticas porque a criança vê o mundo de uma maneira totalmente diferente do adulto. Longe da metodologia, longe das fórmulas, longe da obrigatoriedade. A criança vê o mundo de uma maneira muito mais simples, mais leve e divertida.

            Ao assistir brincadeiras realizadas pelas próprias crianças, nossas propostas pensadas para aquela aula eram modificadas ou incrementadas e o resultado disso era sempre incrível. Brincadeiras com tantas facetas e resultados dos mais diversos. Constatamos assim, que as crianças já trazem dentro de si possibilidades artísticas sem saber que são possibilidades artísticas. O que elas trazem é a imaginação e a ousadia tão essenciais para a arte. E quando penso nisso, lembro sempre da arte dramática que é o jogo, o brincar, e se o teatro parte deste princípio, não poderiam as outras artes partir da mesma essência pensando na infância?

            As crianças possuem um repertório próprio. Repertório de brincadeiras, jogos, ideias, palavras. Sorte dos artistas-educadores que tem a possibilidade de entrar em contato com as crianças e se repertoriar. Mais sorte ainda dos artistas-educadores que estão abertos à troca e ao aprendizado; a falar de igual para igual com os educandos, e vou além, penso então, quem seriam de fato os educandos? Não seríamos todos nós? Todos nós, artistas e crianças que nos propomos a fazer esta grande bagunça coletiva?

            Que bom que “Essa menina só faz arte!” E que ótimo que “esse menino é arteiro!” Afinal, uma criança que não faz bagunça, que não brinca, não está cumprindo o seu papel de criança, o seu papel de brincante. 

Adreísa Cangussú
Artista-educadora PIÁ 
CEU Cantos do Amanhecer 








terça-feira, 29 de dezembro de 2015

PIÁ CURIÁ

Dalilla Leon.

Artista educadora do CEU Vila Atlântica.


Liberdade criativa, nata!
Agregar, acolher e não escolher….
Mas quem colocou vos aqui?
Violência do lugar e o reflexo no corpo.
Realidade local.
O pertencimento e o não pertencer.
Como ser artista num CEU que nunca teve PIÁ?
A proposta não proposta.
Resistência nas situações de conflito.
O que é educar artisticamente? Demanda um tempo mais largo?

Trabalhei a arte do movimento... A arte de me mover no sentido mais singelo da palavra- agir em mim mesma. Submergir de si mesmo faz parte, se desestruturar para se montar outra vez, e outra vez, e outra vez... E a cada dia novo de PIÁ.Começo meu texto a partir da reflexão do texto de Marina Marcondes Machado- Fazer surgir antiestruturas: Abordagem em espiral para pensar um currículo em arte. Meu ensaio parte do desdobramento e atravessamentos relacionados ao seguinte parágrafo:
“Será necessário experienciar uma espécie de descentramento do lugar do adulto educador. O saber não pertence ao educador, não reside em sua formação, técnicas e conhecimento; o saber encontra-se entre ele e seus alunos. Trata-se de encarnar uma atitude relacional cuja primeira modificação no ensino da Arte é a lista do “material necessário” para começar a trabalhar: você e eu!”. (MACHADO, Marina Marcondes.2012).
A DESCENTRALIZAÇÃO DO SABER: Pensamentos em trânsito.
Há quem diga que para haver experiências transformadoras é preciso se transformar na própria transformação, e aprendi no PIÁ que tudo a qualquer momento pode se transformar, e eu também. Dentro desse processo de transformações do PIÁ se torna necessário abrir a percepção para a morada do saber eprocurar-se vestir cada vez mais da realidade do ponto de vista da própria criança, isso faz parte do interesse nas relações e aproximações.
Vivi na prática que o educador dentro do processo artístico participa e coordena, mas não é autoritário nem detém o saber. Problematizar as atividades, indagar as crianças sobre suas atitudes pensando em uma educação que as leve a reflexão e autonomia são pontos respeitáveis e também desafiadores, é preciso estar atento e vigilante sobre nossas atitudes, isso faz parte da nossa auto descentralização, é um movimento que o PIÁ nos permite- “O PIÁ é o lugar do erro”.
Li uma vez que dentro da história do teatro, chega um momento em que o palco rasga as suas cortinas porque quer revelar e questionar a si mesmo quer pensar sua própria função, e dentro do programa nós somos levados o tempo todo a nos descortinar e revelar questionamentos de nós mesmos e do nosso ensino enquanto artistas educadoras.
Revelar a potência, querer menos e deixar ir mais afundo! Há processos que independem de nossa participação e dos velhos materiais tradicionais.
O Piá é feito do melhor material necessário para se começar a trabalhar: os artistas e as crianças. É preciso a presença e participação estável ou transitória delas. O recebimento de uma nova criança é sempre celebrado com muito boas vindas, e o afastamento de cada uma delas já matriculadas é um vazio no peito do artista.
Trabalhamos nesse ano de 2015 em cima de uma plataforma flutuante e instável, sempre estivemos de recomeço, reprogramando, acolhendo, readaptando, modificando, chamando, propagando... Sempre abertas para novas companhias e abraços, sorrisos e presença. E essa instabilidade também se fez generosa no processo de crescimento e desenvolvimento de cada uma de nós do PIÁ Curiá. CEU novo, equipe nova: Ideias novas!
Atravessada pela citação de Marina Marcondes Machado sobre o material necessário para se começar a trabalhar, me veio uma identificação muito forte com a realidade que eu vivia dentro do PIÁ, fui ao encontro dessa proposta da forma mais vívida e educadora possível. No começo do programa vi-me em um espaço para a troca onde nosso único material era apenas eu, a parceira artista e as crianças. Algumas vezes contamos com a ajuda de alguns colchonetes que se transformaram em coisas, objetos fantásticos emodificaramnossas estruturas em movimentos, sons, cores, lugares, espaços, planetas...
Cada vez mais evolvida nas propostas do programa, durante as práticasdiárias vi surgir antiestruturas de minhas experiências, ou as que eu havia experimentado. Um grande educativo para eu e meu “material”, pois a consciência dentro das atividades de criação da criança e a ênfase no fazer coletivo oportunizam a nós artistas anos reconstruir artisticamente.
Nosso fazer artístico diário baseou-se em atitudes de escuta, estruturando-se com proposições de experiências, a fim de instigar as crianças a formular suas descobertas e explorar o processo de aprendizagem a partir de seu próprio conhecimento e reciclar o método tradicional que eles estão acostumados, uma tarefa desafiante e necessária. Relacionamos aspectos importantes sobre compreender a arte como educadora por si própria e a relevância entre o fazer artístico pessoal.
Em suas características as atividades tinham o intuito de apresenta-se também como um instrumento de análise do mundo, as “brincadeiras” exploravam a capacidade das próprias crianças em modificar a situação. Em nosso segundo encontro de famílias no PIÁ Curiá o pai de uma criança nos disse: “A criança nunca brinca por brincar, na verdade ela está aprendendo, ela está o tempo todo da brincadeira sendo estimulada pelas situações, assim como vejo que as brincadeiras do PIÁ sempre têm algo educativo e lúdico”.
Proporcionar o lugar para as escolhas das crianças, das amizades, dos segredos, das memórias...Proporcionar a mim mesma o lugar das descobertas, dos desafios, da curiosidade e também dos olhares novos para o dia-a-dia.
“No CEU Vila Atlântica exercemos o papel de artísticas educadoras como ‘atravessantes’ de conhecimentos. Atravessamos de um lado para o outro diariamente em nossos encontros com as crianças saberes e olhares sobre a vida e sobre as coisas. Testamos de formas criativas elementos que despertem a curiosidade e o interesse das crianças, e por serem naturalmente muito ativas e curiosas nos batizamos de equipe CURIÁ, que explicado por elas mesmas quer dizer: curioso, ‘futriqueiro’, observador das coisas alheias, bisbilhoteiro... Somos aqui todos Curiás de formas de expressão.”
Curiá-Dalilla Leon (Reflexões de Agosto de 2015).
Dalilla Leon.
Artista educadora do CEU Vila Atlântica.

segunda-feira, 28 de dezembro de 2015

Encontro de Piás nos territórios dos mundos (im)possíveis

Carmem Lazari - Coordenadora de Pesquisa/Ação
Região Noroeste

A idéia inicial deste ensaio veio após escutar o meu filho caçula que começou a freqüentar o PIÁ no CEU Butantã deste ano, ele me disse:
- Até que enfim achei um lugar num mundo pra mim !
Francisco tem 11 anos e é disléxico (transtorno de leitura e escrita) na escola  ele é muito incompreendido e por muitas vezes tem sua auto estima abalada pelas cobranças do ensino formal, suas habilidades são artísticas, o Chico desenha muito bem, canta, dança e fala com muita desenvoltura, mas a escola formal não quer saber disso, pra ela o que vale são apenas as inteligências lingüísticas e lógico matemática.
Segundo a  teoria de Howard Gardner que considera a inteligência como possuindo várias facetas, tais facetas, que na verdade são talentos, capacidades e habilidades mentais e que são chamadas de inteligências na teoria das Inteligências Múltiplas, como o próprio nome explicita. A teoria das inteligências múltiplas foi estudada pelo psicólogo Howard Gardner como um contrapeso para o paradigma da inteligência única. Ele propôs que a vida humana requer o desenvolvimento de vários tipos de inteligências. Portanto, Gardner não entra em conflito com a definição científica de inteligência como sendo “a capacidade de resolver problemas ou fazer coisas importantes”.
Quando o Chico diz que há um lugar num mundo para ele, ele quer dizer que existe um espaço onde as habilidades dele são respeitadas e levadas em consideração e essa consideração para ele é importante.
Sendo este o meu primeiro ano no PIÁ na função de coordenadora de pesquisa/ação observei muitos Chicos nesse caminho, assim como encontrei um programa que além de atender essas crianças sem distinção também acolhe no seu corpo de artistas educadores e coordenadores pessoas com muitas potências e especialmente provocativas.
Percebi no piá um mundo próprio, e vou me utilizar da leitura do livro da Anne Cauquelin chamado “No ângulo dos mundos possíveis” pra me ajudar a refletir sobre esse tema de possibilidades de outros mundos.
Sendo a arte um universo de representação da realidade que podemos criar Anne Cauquelin faz um questionamento sobre o mundo ‘aberto’ pela arte, é lícito perguntar: que mundo, ou que mundos ? Um ou vários ? Será possível qualificá-lo? Uma vez que se leve a sério a definição de arte enquanto abertura do(s) mundo(s) teremos de ser capazes de descrever esses mundos identificar seus elementos , esboçar as leis de sua composição, etc

No PIÁ tive contato com palavras ou frases fora do comum, algumas se repetem, são elas:

-Porosidade
-Dilatamento do tempo
-Ordem do afeto
-O corpo performer
-Antiestrutura
-Pedagogia da Precariedade
-Pertencimento
-Ressignificação
- Atividade que não anula o corpo e por aí vai.

As palavras acima são palavras/frases muito utilizadas nos encontros de discussões sobre o fazer artístico pedagógico do PIÁ, palavras essas que causam um grande estranhamento no primeiro momento e todo um sentido no segundo momento quando já estamos adaptados ao piá  e no fazer cotidiano.
         Cada substância singular expressa todo o universo à sua maneira e em sua noção estão incluídos todos os seus acontecimentos , com todas as suas circunstâncias e toda a sequência das coisas externas[1]
        O MUNDO DO PIÁ é um mundo que acolhe e escuta, um mundo onde os lugares são muitos e estão em ambientes abertos e fechados, um lugar onde o erro não será julgado, e sim visto como construtivo de uma prática de criação e ao mesmo tempo libertador nos desprendendo de amarras.
        O Mundo do PIÁ é um mundo de ressignificação, da ampliação da comunicação do tempo estendido, é o não lugar de posturas tradicionais, é o lugar de pessoas reflexivas e provocativas.
        Agora esse mundo é um mundo ainda precário, um  mundo que precisa ser constantemente revisto e discutido, um mundo onde não há limites entre o certo e o errado, onde o artista  educador acaba sendo resultante desse encontro entre crianças, espaços, ações colocando em xeque suas certezas sobre o fazer criativo.
        O PIÁ é um mundo que vai sendo construído coletivamente pelos componentes do seu quadro de artistas educadores, coordenadores, crianças, famílias, funcionários dos equipamentos, etc, sem a ativa participação desses agentes o programa fica capenga, não progride.
Trata-se de um  mundo potencialmente existente, realmente crível, que coexiste  de maneira a priori ao nosso mundo atual.
        Para o Chico foi libertador, e segundo ele foi encantado pela “meiguice” das artistas .
        Para mim enquanto artista e coordenadora foi um conforto fazer parte de um lugar que escuta até aquilo que em outros lugares não se quer escutar, foi lugar de confronto honesto, de construção de coletivo artístico e por que não dizer de coletivo político também.

Bibliografia:

CAUQUELIN, Anne. No ângulo dos mundos possíveis. São Paulo: Martins Fontes. 2011
http://revistaescola.abril.com.br/formacao/cientista-inteligencias-multiplas-423312.shtml




[1] Gottfried Wilhem Leibniz, Discours de métaphysique  [Discurso de metafísica] § IX, Paris, Puf, 1959