ILO KRUGLI,
TEATRO VENTOFORTE
E A PRIMEIRA EXPERIÊNCIA
EM ARTES INTEGRADAS
Eliane Weinfurter dos Santos
Foto: Pollyana Diniz
Em 1991 fui avisada por uma amiga
de um Curso de Teatro gratuito que estava acontecendo em uma
Biblioteca em Santo Amaro.
Fui pra lá sem saber ao certo o
que aconteceria. Até então tinha feito teatro na escola e fazia
parte de um grupo que ensaiava aos finais de semana em uma garagem.
Muitos professores e músicos e
ele: ILO KRUGLI. O Diretor do Teatro Ventoforte.
O Curso fazia parte de um Projeto
chamado MIGRAÇÕES e acontecia em quatro lugares de São Paulo: zona
sul (Santo Amaro e M´Boi Mirim), zona oeste (Butantã), zona leste
(Mutirão São Francisco ) apoiado pela Prefeitura de São Paulo à
época da gestão de Luiza Erundina.
Improvisos com coisas simples:
papéis, jornais, barbantes e a música executada ao vivo, sempre
presente, dialogando com o que se estava sendo feito nas cenas, ora
pontuando, ora contrapondo ritmos e imagens.
Certa vez houve um improviso em
que cada um tinha uma folha de jornal para criar algo que durasse
alguns segundos. Desespero. O que fazer? Lembro que a mesma amiga
que me apresentou o Curso, Adriana Diniz, pendurou a folha de papel
em um barbante à sua frente, ficou parada atrás e mesmo tendo
começado o improviso, ainda não sabia o que fazer. Silêncio e
espera de todos. De repente começou a rasgá-la lentamente e daí a
beleza do trabalho. Do jornal sendo rasgado e do som produzido,
vieram imagens que estão em mim até hoje. Da simplicidade da
construção de algo tão simples mas que, impossível distanciar os
olhos de alguém que está totalmente entregue a essa ação, de
corpo, alma, suor e respiração.
Não lembro o que eu fiz!
Primeiro curso de teatro, não
cheguei com fórmulas nem com molduras, nem querendo me amparar em
textos ou teóricos. Vinha tão somente eu vazia e fui me
completando, me deixando levar pelo vento que me inspira até hoje,
com todos aqueles sons, palavras, gestos e imagens e as
possibilidades de se fazer o simples.
Depois de um determinado tempo do
curso, a verba acabou e Ilo convidou a todos para continuarem os
experimentos na sede do grupo. Um lugar lindo no Itaim Bibi, cercado
de árvores, três espaços de encenação (teatro dos pés, teatro
das mãos e teatro dos olhos) e um coreto.
Encantamento.
O curso seguia. A quantidade de
pessoas foi diminuindo como em todo curso de duração mais
prolongada.
Certo dia, depois da divisão em
pequenos grupos, ensaiamos uma cena com apoio da Professora Fátima
Campidelli. Ilo quis assistir a todas e assim fomos, em pânico,
apresentar para ele, para os demais professores e para os outros
participantes do curso.
Semanas depois veio o convite
para integrar o elenco da remontagem de HISTÓRIAS DE LENÇOS E
VENTOS.
Este espetáculo que aconteceu a
primeira vez em 1973 foi um marco na dramaturgia para crianças.
Ilo recebeu um convite para
apresentar algo no Festival de Curitiba. Então, ele e grupo,
ensaiaram por doze dias. A cada dia Ilo escrevia um trecho do
espetáculo e Caique Botkay simultaneamente escrevia as músicas.
Com alguns objetos, papéis,
latas, panos, lenços...e alguns bonecos que nem foram utilizados,
surgia o espetáculo. O trabalho foi muito bem recebido e o
entusiamo fez com que continuassem no Rio de Janeiro as temporadas no
MAM onde passaram mais de cem mil pessoas durante todo aquele ano e
depois fizeram dois ou três meses no Teatro Opinião.
O nome definitivo do grupo veio
depois de uma matéria de jornal de duas páginas de Ana Maria
Machado, cujo título era “Vento forte no teatro para crianças do
Brasil”. Ela dizia no texto que o teatro para crianças no Brasil
estava dividido entre antes e depois de Lenços e Ventos.
Surgia o Ventoforte.
Lenços e Ventos conta a história
de Azulzinha, um lenço que simboliza a liberdade e sai voando.
Acaba presa em um Castelo do Rei Metal Mau (feito de latas) até que
Papel, o herói (uma folha de jornal onde eram pintados os olhos e a
boca) consegue salvá-la com a ajuda de todos os lenços do quintal.
À época da remontagem do espetáculo,
acontecia o Curso de Formação de Atores do Teatro Ventoforte. E lá
pude aprofundar o aprendizado.
Como explicar?
“O
teatro é realizado com o Imaginário, para desenvolver o imaginário,
e para isso acontecer estabeleceu-se a intrincada rede de relações
entre os estímulos através do corpo, da música e da dança, das
artes plásticas e dos objetos do cotidiano, o individual
estimulando o coletivo e vice-versa” (CAVINATO, 2003).
No
curso que acontecia de segunda a quarta feira, no período da noite,
tínhamos encontros às segundas e terças com Ilo, e quarta-feira
tínhamos aulas de canto com Ricardo Nogueira e danças brasileiras
com Tião Carvalho do Grupo Cupuaçu.
Caminhadas
pelo espaço em diferentes direções e velocidades iam lavando o
corpo e a mente das inquietações cotidianas e a música sempre
executada ao vivo acelerava este processo de imersão, de quase sonho
em que imagens e sensações podiam surgir nas improvisações, nos
diálogos corporais. Abria-se esse espaço para que a mente fluísse
em imagens e sons. O espaço para o ritual estava instalado.
Antes
e depois dos exercícios, a roda, no círculo ancestral todos falavam
e compartilhavam as vivências. Ilo observava sempre atento,
comentava imagens que também para ele apareciam, orientava antes,
durante e no fim.
Do
curso participavam atores, com e sem experiência, mas também
músicos, artistas de outras áreas, psicólogos, terapeutas.
Dois
anos de aprendizado concomitantemente ao espetáculo Lenços e
Ventos. Em busca de uma espontaneidade difícil de se encontrar e
quando encontrada como mantê-la com o frescor do primeiro dia? Essa
busca que permanece sempre, a cada novo trabalho, porque um ator
nunca está pronto.
Dois
anos de observação da natureza que rodeava os teatros, das plantas
e bichos, buscando nessa natureza as folhas, as pedras, o pé na
terra, as sementes que comporiam a poética de cada encontro.
Entre
os muitos temas: os quatro elementos da natureza, água, ar, fogo e
terra. E os sonhos.
Além
de propostas que incluíam cadernos de diários, desenhos, os mapas da
vida, tantos e tantos elementos que forjaram a atriz que sou
hoje.
A
base do trabalho é a criatividade e a imaginação. Além das festas
populares brasileiras que encantaram tanto este argentino radicado no
Brasil há mais de 40 anos. Ilo diz que seu teatro é improvisado,
mas não tão improvisado assim. É um trabalho artesanal e dos mais
antigos, a raiz da expressão do ser humano.
“O
teatro como forma de conhecimento, forma de desvendar enigmas, ajuda
a conhecer a realidade e a si mesmo” Ilo Krugli, in. Cavinato
(2003).
No
Ventoforte você não é só atriz ou ator, você também é artesão.
Faz os bonecos, costura as roupas, cria e recria, faz o café, pinta o cenário, limpa
o palco, da mesma forma que em alguns pouco grupos ainda todos fazem tudo.
“(...)
a integração das Artes tem o teatro como um núcleo. A imaginação
é considerada o centro irradiador de toda criação. Dança,
música, literatura, poesia, contos de tradição oral, contos
de autor, contos de fadas, mitos, artes plásticas, teatro de bonecos
e animação de formas são integrados na mediação
da aprendizagem simbólica e na formulação das
experiências interiores tornando-as concebíveis.” (CAVINATO,
2003)
Desta
experiência de fazer tudo, vivenciamos as artes integradas
cotidianamente nas criações de espetáculos e na observação como
estagiária das aulas para crianças e adolescentes que aconteciam no
Ventoforte aos sábados. Tudo isso me ajudou e ajuda muito neste Ser
e Estar do Piá, nas minhas pesquisas e com as crianças por ser o
Piá este espaço de criação compartilhada e em que as fronteiras
entre as linguagens são fluidas ou como em algumas crianças, esta fronteira
é inexistente pois ela brinca, canta, dança, conta histórias desde
os primeiros anos de vida.
“Acredito
muito nessa coisa de educação pela arte, sempre penso no tanto que
se poderia fazer colocando o processo da arte na frente até das
informações intelectuais. E quanta gente talentosa e criativa
apareceria. A educação oficial imobiliza, engessa. (…) Todos
nós temos o potencial da linguagem de expressão, que é
desenhar, falar, pintar, dançar, mas o que vemos é tudo
endurecido. (…) Tem o talento nato, mas talento também se
conquista” (2009)
Ilo
Krugli aprendeu a fazer bonecos aos 8 anos com sua professora que
aprendeu com o titiriteiro argentino Javier Villafãne Antes disso já fazia teatro nas escadarias de casa, ora colocando o
público na escada ora fazendo da escada, palco.
Disse que certa vez fez teatro
com bolinhas de gude em uma lata de metal (dessas de marmelada) e ao
ler isso lembro-me do poema do Manoel de Barros, A Lata.
Estas
latas têm que perder, por primeiro, todos os ranços (e
artifícios)
da indústria que as produziu. Segundamente, elas têm que adoecer na
terra. Adoecer de ferrugem e casca. Finalmente, só depois de trinta e
quatro anos elas merecerão de ser chão. Esse desmanche em natureza é
doloroso e necessário se elas quiserem fazer parte da sociedade dos
vermes. Depois desse desmanche em natureza, as latas podem até
namorar com as borboletas. Isso é muito comum. Diferentes de nós as
com o tempo rejuvenescem, se jogadas na terra. Chegam quase até
de serem pousadas de caracóis. Elas sabem, as latas, que precisam
chegar ao estágio de uma parede suja. Só assim serão procuradas pelos
caracóis. Sabem muito bem, estas latas, que precisam da intimidade com
o lodo obsceno das moscas. Ainda elas precisam de pensar em ter raízes.
Para que possam obter estames e pistilos. A fim de que um dia elas
possam se oferecer às abelhas. Elas precisam de ser um ensaio de árvore
a fim de comungar a natureza. O destino das latas pode também ser
pedra. Elas hão de ser cobertas de limo e musgo. As latas precisam
ganhar o prêmio de dar flores. Elas têm de participar dos passarinhos.
Eu sempre desejei que as minhas latas tivessem aptidão para
passarinhos. Como os rios têm, como as árvores têm. Elas ficam muito
orgulhosas quando passam do estágio de chutadas nas ruas para o
estágio de poesia. Acho esse orgulho das latas muito justificável e até
louvável.
da indústria que as produziu. Segundamente, elas têm que adoecer na
terra. Adoecer de ferrugem e casca. Finalmente, só depois de trinta e
quatro anos elas merecerão de ser chão. Esse desmanche em natureza é
doloroso e necessário se elas quiserem fazer parte da sociedade dos
vermes. Depois desse desmanche em natureza, as latas podem até
namorar com as borboletas. Isso é muito comum. Diferentes de nós as
com o tempo rejuvenescem, se jogadas na terra. Chegam quase até
de serem pousadas de caracóis. Elas sabem, as latas, que precisam
chegar ao estágio de uma parede suja. Só assim serão procuradas pelos
caracóis. Sabem muito bem, estas latas, que precisam da intimidade com
o lodo obsceno das moscas. Ainda elas precisam de pensar em ter raízes.
Para que possam obter estames e pistilos. A fim de que um dia elas
possam se oferecer às abelhas. Elas precisam de ser um ensaio de árvore
a fim de comungar a natureza. O destino das latas pode também ser
pedra. Elas hão de ser cobertas de limo e musgo. As latas precisam
ganhar o prêmio de dar flores. Elas têm de participar dos passarinhos.
Eu sempre desejei que as minhas latas tivessem aptidão para
passarinhos. Como os rios têm, como as árvores têm. Elas ficam muito
orgulhosas quando passam do estágio de chutadas nas ruas para o
estágio de poesia. Acho esse orgulho das latas muito justificável e até
louvável.
(Manoel
de Barros)
Do
seu Ventoforte já voaram peças, bonecos, para outros palcos, para
outros Estados e estados, para outros países. Já se criaram atrizes
e atores que floresceram.
Ilo
escreveu neste último ano um livro de poesia e segundo um amigo
tudo, absolutamente tudo foi tema e tornou-se vivo pelas mãos deste
artista. (Ainda não foi editado)
Assim
como em seus espetáculos, como Lenços e Ventos, que torcíamos
pela vitória do Papel, aquela folha de jornal que vira cinzas em
cena e ressuscita e consegue salvar sua amada Azulzinha, somos
levados pela imaginação e pela criatividade deste senhor poeta e
acreditar que tudo pode ter vida.
Na
baixa estatura corporal, mora um Gigante.
Por
ele e por seu teatro, muitos redescobriram o quintal de sua infância.
Relembraram. Reviveram.
Mas
não se engane ao pensar que Ilo Krugli só faz espetáculos para
crianças, nunca espetáculos infantis. Ele também faz e muito bem
espetáculos para adultos e para todas as idades como o Portal das
Maravilhas, em que falava da Inquisição e na sua costura de textos
coube uma homenagem à Mãe Coragem de Bertold Brecht, quando
acontece a cena da Muda (Eliane Weinfurter) tocando tambor e sobre a
ditadura do Chile: estava presente no último discurso de Allende. O
convidou para ir assistir ao espetáculo que estava fazendo e teve
como resposta: “Eu gosto muito de crianças, também sou uma
criança que às vezes gosta de jogos perigosos”. Logo em seguida
aconteceu o Golpe.
Fez
ainda Círculo de Giz Caucasiano de Bertold Brecht e prólogo de
Plínio Marcos, Tempestade de Shakespeare, entre outros espetáculos
para adultos. Não posso esquecer de citar os espetáculos em que
fazia homenagem a Federico Garcia Lorca, como Sete Corações- Poesia
Rasgada, Choro Lorca, Pequenas Histórias de Lorca.
Ilo
completou 85 anos no dia 10 de dezembro de 2015 e como menino dançou
cirandas e cantou com todos.
Deixo
aqui muito menos do que um ensaio e muito mais um memorial de
vivências que tive em doze anos de trabalho com este grupo.
O
trabalho do Ventoforte tem muito em comum com o que é feito no Piá,
desde muito tempo antes deste Programa existir, com relação ao
respeito à criança, as possibilidades de estruturação de cenas e
animação com pequenos objetos, bonecos, com o resgate dos quintais
das nossas infâncias, com a permissão à imaginação fluir e criar
e por isso a escolha deste tema, além da pequena homenagem ao meu
Mestre.
Acredito
que algumas pessoas não conheçam o Teatro Ventoforte e o seu
criador Ilo Krugli. Para estes, espero que esses mínimos relatos
possam aguçar a curiosidade em saber mais.
Para
os que conhecem ou já viveram o que vivi, segue esse afago feito com
as mãos e com o coração.
Para
saber mais:
ALBUQUERQUE,
Johana. Ilo Krugli In: ______.Enciclopédia
do teatro brasileiro contemporâneo.
São Paulo, 2000. Material elaborado em projeto de pesquisa para a
Fundação Vitae. Ficha curricular.
BUENO,
José Marcos Pires. Entrevista concedida a Johana Albuquerque. São
Paulo, 30 out. 2001.
COSTA,
Mônica R. Peça mostra três em um de Oscar Wilde.Folha
de S.Paulo,
São Paulo, 18 jun. 1995.Folhinha, p. A-2.
CRONOLOGIA
das Artes Cênicas em São Paulo 1975 - 1995. São Paulo: Centro
Cultural São Paulo,1996. v. 3.
KRUGLI,
Ilo; LARANJEIRAS, L. Carlos. Dez anos teatro ventoforte. Rio de
Janeiro,1984. Catálogo comemorativo.
______.
Grupo Ventoforte sopra poesia de Lorca.Folha
de S.Paulo,
São Paulo, 11ago. 1996.Folhinha, p. A-5.
BIBLIOGRAFIA
ABREU,
Ieda de. Poesia Rasgada / Ilo Krugli. SP. Imprensa Oficial de SP.
2009
CAVINATO,
Andrea. Uma experiência em Teatro e Educação: a história do
menino navegador Ilo Krugli e seu indomável Ventoforte. Dissertação
de Mestrado. 2003